Entre quases
“Onde não puderes amar, não te demores.” (Frida Khalo)
Enquanto esperava o tempo passar, permanecia sentada no sofá absorvida pela televisão. O silêncio perturbador da solidão da obediência — ou do esquecimento. Obediente, permanecia à espera. Esquecida, permanecia em silêncio. Do lado de fora, a penumbra do crepúsculo de fim de tarde alcançava a janela. A luz natural esvanecia e a sombra tomava espaço no cômodo. Um fim se anunciava. O fim do dia. O fim de um fio de vida. Sentada como uma estátua, cabelos devidamente laqueados, véu posto. Do pescoço para cima, um monumento, a estrela da noite. Do pescoço para baixo, uma angústia, a incerteza da vida do outro lado daquela janela. Meio arrumada, meio largada, permanecia à espera. À espera dos outros, que arrumavam tudo. À espera de um milagre. Uma quase noiva em uma quase noite de um quase casamento. Um conjunto de quases hipnotizados pela luz artificial da tela que penetrava cada vez mais no espaço escurecido. Na tela, um homem acorrentado a um cano de ferro, dentro de um banheiro, afrontando um dilema: morre acorrentado porque quer o corpo imutilado ou corta um pedaço da perna para tentar ser livre? Nenhuma das escolhas o mantém inteiro. O mal já está feito, a corrente está posta. De repente, ali, de véu e grinalda, à espera do vestido e da maquiagem, eu soube que eu era ele.
“Estamos aqui, nesta noite, para celebrar a união entre Clara e Fabrício, esses jovens que resolveram se unir em sacramento”. Buchicho geral. “Padre, o nome dele é Benício”, sussurrei, disfarçando em pleno altar, com a multidão atrás de nós. “O casamento é a união de dois corpos em um só corpo, em uma só carne…”, minha atenção voltava-se à agitação que se formava na igreja a cada vez que o padre repetia “o amor entre Clara e Fabrício”, a “celebração de Clara e Vinícius”. O padre seguia se equivocando com o nome do meu noivo. Eu já não sabia se eu estava mesmo ali ou se presa a uma cena sem graça, quase premonitória. Deveríamos ser Clara e Benício, mas em poucos minutos de cerimônia já éramos outros. Meu noivo já era outros. E eu, que não sabia mais explicar, era Clara, mas não era. “Chegou o momento das alianças”. Seguindo o ritual, virei meu corpo e, diante de mim, uma multidão. No caminho central pelo qual eu mesma atravessara, de braços dados com meu pai, há minutos, desfilava em minha direção uma menina que eu mal conhecia, vizinha de uma tia, que estava ali por insistência de todos, porque eu não queria crianças na cerimônia, não me parecia necessário submeter meninas a esse espetáculo de adultos, eu mesma fui muitas vezes a criança das alianças, e me sentia mal, mas acatei, fazia parte da cena matrimonial, do ritual, “se for para casar, que seja direito”, disseram. A menina desfilava o tapete vermelho segurando um par de alianças douradas e reluzentes a olho nu. Olhos atentos à menina e às joias. Um daqueles círculos dourados entraria em meu anelar esquerdo. A minha corrente dourada. Eu teria que cortar o dedo algum dia? A luz ofuscante do lugar agora disputava espaço com aqueles minúsculos objetos para os quais todos olhavam. Coitada daquela criança. Coitada daquela mulher. “Clara, você aceita o Vinícius como seu legítimo esposo, na saúde…”, mas quem é esse, padre?, quem sou eu, afinal?, o que eu estou fazendo?. “O nome dele é Benício”, alterou-se um dos padrinhos do noivo, já impaciente diante da situação que se tornava ridícula, inacreditável. Era dezembro. Fazia muito calor naquela noite de quase verão. A paróquia, lotada, parecia sedenta, esperava pela festa, a festa prometida, o evento mais esperado da região. Duas famílias tradicionais, vastamente conhecidas, com três gerações, uniam-se em sacramento. Dois corpos em um. Duas famílias em uma. Fazia muito calor e era necessário beber, comer, sair dali. A praça ao redor testemunhava, com olhos curiosos, a cerimônia da noite. Vozes, buchichos, suores, leques. “Padre, o nome dele é Benício”. Eu, de mãos dadas com o homem que se pretendia meu marido, olhando em seus olhos, ouvia mais um engano do padre e, de repente, imaginei que o homem à minha frente era um desconhecido, suas linhas de expressão, o suor que pingava em seu rosto, o arrepio do cabelo, o verde dos olhos. O padre estava com a razão e todos ali me enganavam, ou talvez eu mesma não fosse mais eu desde que pisara ali, desde antes, “Clara, você aceita o Benício como seu legítimo esposo, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza?”. Sim, aceito, padre, aceito, testemunhas, aceito. Gritos, palmas, música e arroz para todos os lados.
“Como você veio parar aqui e ninguém se deu conta?”, redarguiu Olívia ao me ver sentada na varanda do terraço com uma garrafa na mão e o vestido arrastando no chão. “Essa festa é de todas aquelas pessoas, mas não é minha, Olí”. As palavras saltaram da minha boca como o oxigênio que me faltava e eu preenchia com vinho tinto. Eu era personagem principal de um sonho ecoado há séculos e séculos em histórias, regras de conduta, legitimações de moralidade, mas eu estava longe de ser a protagonista, pois fantoche da cena. “Estou casada, Olívia. É isso. Não precisam mais de mim. O ritual está feito. O pacto está selado”, as palavras saíam como uma arrebentação de alto teor alcoólico. Vestida de noiva, sentada naquela varanda, mais uma vez sozinha e em silêncio, via a vida passar diante de meus olhos. Todos pareciam felizes. Eu era só uma composição daquele cenário. Uma peça do jogo. “Clara, vamos sair daqui?”. Pensei na cena do filme, na corrente, na mutilação. Agora eu era a personagem: para sair dali viva, eu cortaria o laço, como se perdesse um membro. Se eu ficasse, poderia morrer mais um pouco. “Clara, vamos sair daqui?”. Embalada pela voz de Olívia e pela leveza que o vinho tinto proporciona, imaginei que estava sonâmbula e alguém tentava me acordar e me reencaminhar a direção. “Clara, vamos sair daqui?”. Vamos, Olívia, por favor!, não me pergunte, me sequestre, me leve para sempre, me tira daqui. “Não posso, Olí. Não é justo com o Benício. Não é justo com todas aquelas pessoas felizes”. “Vamos voltar para a festa, está na hora de jogar o buquê”.
“Como parto para ter um pouco de bem-estar, o tempo todo vivendo em desnível, ansiosa pela trabalho ou exaurida por ele, faminta ou empanturrada pela gula, sedenta ou transtornada pela bebida, o sempre tão dificilmente em equilíbrio, a plenitude pairando sobre uma navalha sempre prestes a cortá-la ao meio.“
(Suíte Tóquio, Giovana Madalosso.)
“Culpada! Consideramos a ré culpada” era só o que conseguia ouvir das palavras escritas naquele documento que chegou pelos correios vindo diretamente de um tribunal eclesiástico — ou da inquisição. Eu, bruxa. “O demandante afirma que a demandada não tinha plena consciência da seriedade e da importância do matrimônio. A demandada nutria em sua vida outras prioridades além do sacramento, dedica-se ao trabalho e aos estudos em detrimento do convívio com o demandante”. Com o papel em mãos, lia incrédula aquela sentença de culpa. A separação inevitável trazia um desfiladeiro de insultos. Eu era culpada por me dedicar aos estudos, por me dedicar ao trabalho, por priorizar minha liberdade. “Culpada!”.
Uma montanha de fabulações. Benício assentou sua identidade em uma montanha de fabulações. Entre amigos, era o centro das atenções. Concentrava em seus discursos as principais histórias do mais variados assuntos. Admirado por todos que o conheciam, vangloria-se de sua formação. Transitava entre dois mundos: o dos que não acessaram o ensino superior e o dos que acessaram o ensino superior. Quando estava entre os do primeiro, tornava-se referência em todos os assuntos. Quando estava entre os do segundo, buscava ativamente reconhecimento e paridade. De história em história, de experiências partilhas em experiências partilhadas, ele solidificava sua montanha de fabulações. Entre seus amigos, familiares e colegas de trabalho, era uma referência bibliográfica viva. Saiu da vida para se tornar um personagem. Perdeu-se no personagem. Era difícil admitir, portanto, que alguém poderia não amá-lo, não desejar sua companhia, não apreciar sua incontestável inteligência. Principalmente porque esse alguém era eu, sua esposa.
Não era incomum que eu me sentisse incomodada em eventos sociais. Com nossos familiares, a programação era quase sempre a mesma: almoço aos domingos, aniversários ou feriados. “E aí, quando vêm os rebentos?”. “Mas, Clara, você precisa trabalhar tanto?”. “Quando é que termina essa tua faculdade?”. Como os nossos amigos, variávamos entre churrascos e campeonatos de vídeo games. Eu assistia passivamente às intrigas inventadas nos espaços virtuais dos jogos para preencher os vazios da falta de assuntos estimulantes. Quanto mais assistia, mais me sentia opaca, oca, nula. Entre risos dissimulados e silêncios alongados, atravessei uma infinidade encontros desagradáveis, desconfortáveis e desconcertantes. Eu morava em uma história contada por outras pessoas.
“Eu quero me separar de você”. As palavras saíram como uma barragem que se rompe e destrói tudo em volta. Eu falei de uma vez só. “Eu quero me separar de você”. Não, não há uma explicação lógica, racional, Benício. Eu simplesmente não quero mais morar com você, dormir com você, transar com você. Eu não quero mais conviver com sua família neurótica. Eu estudo, eu trabalho, eu pago as minhas contas. Eu não te quero mais. “Eu quero me separar de você”. E não é de hoje.
Cresci em uma família numerosa. Todos morando muito próximos, em uma espécie de conurbação genealógica. A cada esquina, tios, primos e agregados, um labirinto de parentes. Aparentemente, há alguma vantagem em ter toda a família constantemente por perto: nos protegemos e colaboramos uns com os outros. Mas o que parece proteção, na verdade pode ser controle. De controle em controle, cresci em conurbação com meus parentes. Nessa lógica de controle, a vigilância sempre fora uma constante. Na prática juvenil, isso significava burlar as regras para beijar na boca e fazer sexo. Beijar na boca em becos escuros e fazer sexo em motéis de rodovias. Evitar o flagrante. Namoros longos sempre funcionaram, então, como uma ponte para alcançar um mínimo de liberdade com o corpo e os prazeres. Ter um namorado significava uma espécie de justificativa para experimentar os desejos pulsantes de um corpo juvenil. Mas isso exigia certa exclusividade. Passar de corpo em corpo não era adequado. A tradição familiar era a dos namorados únicos e casamentos eternos. Eu quase segui a regra. Eu quase caí na armadilha.
“Eu achei que queria ser feita de coisas de garotinhas. Bailes escolares, beijos à porta, dedos quase tocando o ar. Achei que queria ser feita de suas promessas. Com gosto de marfim, morango, até mesmo chocolate. Achei que eu queria ser feita de um fim de contos de fada, no qual eu não distinguiria fantasia de realidade. Todos sonhos. Então, sonhei que era tua, pois sabia que você me protegeria das coisas de adulta. Aranhas gigantes, desastres naturais, e não naturais também. Nunca me senti tão segura quanto naquela gaiola contigo. Mas comecei a acordar e vi as barras douradas ao redor. Eu não me lembrava de como foi no sonho. Eu era a ave ou a gaiola? Eu era eu mesma ou uma de minhas mães? Eu estava segura ou sufocando? Pois a ave está na gaiola. E a gaiola está numa cidade. E a cidade é feita de farinha que cega, e de belas mentiras. E talvez não possamos evitar o que sonhamos, assim como não evitamos as coisas de que somos feitos, ou talvez possamos. Se enxergarmos as mentiras, veremos várias outras coisas também. Veremos a porta. Uma saída. E poderemos fugir voando.”
Caro ex-marido,
Recebi sua carta convocatória curiosa. Devo-lhe uma reposta. Receba-a.
Caro ex-marido, mulheres independentes não são dignas de sua caríssima consideração? Parece que não. Parece que minha escolha por independência intelectual e financeira lhe é motivo de escárnio e estupefação. “Como pode uma mulher não gostar de um cara tão legal como eu?”; “Como pode uma mulher dar mais importância aos estudos e ao trabalho do que a nosso casamento?”; “Como pode uma mulher descartar a liberdade que eu lhe ofereço? Só porque eu exijo dependência emocional e devoção a mim?”; “Eu sei que você se casou só para sair da casa de seus pais. Eu te tirei de casa e agora você vem me dizer que sua pós-graduação e seu trabalho são mais importantes do que eu? Ingrata!”. Seus pensamentos, pulsantes através das palavras, apenas ratificaram-me algumas certezas.
Caro ex-marido, eu não nasci para a rédea. Sou bicho solto, bicho sedento, bicho pensante, bicho pulsante. A rede em que você tentou me amalgamar não me cabe, não me serve, não me satisfaz. Eu preciso de ar, de prazer e de liberdade. Eu sempre fui muito mais inteligente do que você. Eu sempre li muito mais do que você. Eu sempre dirigi muito melhor do que você. Eu sempre escrevi muito melhor do que você. Eu sempre fui muito melhor do que você em muitas coisas. Mas o que era um padrão em conversas coletivas? “Nossa, Clara, como você é uma garota de sorte! O Benício é tão inteligente!”; “Nossa, o Benício é tão prestativo! Até te ajuda a estudar, Clara!”; “Benício, você deixa a Clara dirigir o seu carro novo? Isso é que é amor!”; “Uau! O Benício é funcionário público, né? Você trabalha por distração, Clara?”. E você, ex-marido, apenas se limitava a responder: “Obrigado!”; “Ela tem dificuldade em ciências exatas, mas se apaixonou por um estudioso da área! Ela tem sorte.” “Ela dirige, sim. Eu não tenho medo de viver perigosamente.”; “Ela sabe que não precisa mais trabalhar tanto.”. A fragilidade de seu poder sobre mim causava-lhe pânico, ex-marido, por isso era evidente sua necessidade de manter o menosprezo que todos insistiam em vestir-me.
Caro ex-marido, você foi um babaca. Durante uns bons anos, posou de bom moço, homem raro e namorado — e, posteriormente, — marido apaixonado. No fundo, entretanto, o que você buscava era conseguir me colocar rédeas. Meu pai nunca conseguiu. Minha mãe nunca conseguiu. Mas você, por se achar o próprio príncipe encantando, acreditou no conto de fadas de me levar em um cavalo branco e me encarcerar em um castelo a seu bel prazer. Você cativou meu coração para enterrar-me em um cativeiro. Que história é essa de que eu sou “psicologicamente despreparada para lidar com as obrigações do matrimônio”, como me acusa em sua carta inquisitória? Nunca passou pela sua cabeça que meu desamor tem a ver com sua dificuldade em viver grandes aventuras da vida real (viajar, beber, dançar, rir alto, ler literatura)? Nunca passou pela sua cabeça que meu desamor vem da sua infantilidade em passar horas de frente a um vídeo game quando poderíamos fazer programas de adultos? Nunca passou pela sua cabeça que meu desamor vem do sexo ruim que sempre praticamos? Nunca passou pela sua cabeça que meu desamor nasceu do desencanto de seu vazio literário? Nunca passou pela sua cabeça que meu desamor vem de sua vida perfeita demais?
Caro ex-marido, você é chato. Você é pedante. Você é insosso, mas não burro, suponho, e deve estar se perguntando: por que você ficou comigo por tanto tempo, Clara? Eu fiquei porque eu te amava, muito mais do que você a mim. Agora eu sei. Eu sabia que era mais inteligente do que você, mas não me importava, achava divertia sua forma de ignorar a literatura, a política, a boa música, mas de adorar passar horas com os números do Matemática Elementar. Eu sabia que você era chato, mas não me importava, distraía-me com nossas longas conversas inúteis sobre coisas irrelevantes que, na verdade, camuflavam nosso silêncio para o que realmente era importante. Eu fingia que estava tudo bem, porque eu (ainda) te amava. Eu sabia que o emprego novo estava te tornando soberbo, mas eu (ainda) te amava. Eu sabia que meu diploma, meu emprego e minhas escolhas profissionais eram pouco importantes — e quiçá inferiores — para você, mas eu não me importava porque eu (ainda) te amava. Você insistiu nessa mediocridade soberba e castelar de vida. Mas eu nunca quis ser princesa. Eu nasci para ser amazonas. Por muito tempo, acreditei que você seria um Dom Quixote, mas você era só um príncipe encantado. Um Don Juan postiço. E aí, o amor acabou. E aí, a amazonas derrubou a porta do castelo e saiu pelo mundo com o cabelo esvoaçante. Você estava certo em um ponto: minha vida intelectual, minha vida profissional e minha liberdade sempre foram muito mais importantes do que você. Ainda bem. Todo esse meu conjunto de escolhas me permitiram ser uma profissional de qualidade, uma intelectual ativa e um mulher livre e independente de qualquer pessoa, inclusive — e principalmente — de você.
Sabe o que já me aconteceu depois que eu abandonei o castelo? Me tornei mestra. Passei para o doutorado. Tornei-me funcionária pública federal. Descobri o orgasmo. Descobri os orgasmos múltiplos. Conheci algumas pessoas melhores e piores do que você. Aprendi a dançar salsa, merengue, forró e coco. Mudei de casa uns pares de vezes. Permiti-me viver a intensidade das paixões e do amor sem rédeas. Viajei pelo mundo. Aprendi a diferenciar os sabores das uvas nos vinhos tintos. Rompi paradigmas familiares. Saí da zona de conforto. Rompi a corrente.
Não, ex-marido, eu nunca quis a vida medíocre que você sonhou.
Conforme-se com isso. Lide com isso.
Esqueça-me.
Adeus,
Clara.
O casamento tradicional marcou a minha vida para sempre. E essas palavras têm uma dimensão mais ampla do que eu poderia almejar. Nunca mais eu me senti inteira. Sair espontaneamente de um matrimônio me deixou mutilada, como se, semelhante ao personagem daquele filme a que eu, quase noiva, assisti no dia da cerimônia, se materializasse em meu corpo, em um prenúncio sem graça da vida. Incapaz de me livrar adequadamente da corrente, precisei serrar meu pé e seguir a vida mutilada, marcada como um animal domesticado ao abate.
Uma quase mulher.
Ou um quase destino.