Ressaca Moral

Isac Chagas
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readApr 15, 2022
Photo by Yuris Alhumaydy on Unsplash

“And I don’t miss you
But I think of you and don’t know why
I still feel high.”

High” — Miley Cyrus

Eu não bebo, você sabe.

O gosto do álcool não me apetece — somente quando provado diretamente de outras bocas.

A indecência tem orientado cada uma das minhas atitudes e cada uma das escolhas duvidosas tenho feito ultimamente. Estive em lugares nos quais jamais imaginei estar. E, em uma tentativa desperada de encontrar uma solução — diferente das soluções triviais sugeridas por todos os psicólogos pelos quais passei, cujas sessões eram cobertas pela carência do meu plano; e dos inúmeros wheels de Instagrams motivacionais que os meus amigos compartilharam comigo nos últimos meses — comecei a depositar todas as minhas esperanças na vastidão do mundo e em um possível universo de possibilidades que, supostamente, poderia se abrir, com a condição de que eu estivesse disposto a oscilar na mesma frequência de tudo aquilo que eu desejava veementemente. Não posso mais permitir que você seja o meu primeiro pensamento de todas as manhãs.

O mundo é grande demais para eu, sequer, imaginar que você é o único com o poder de fazer o meu coração bater descompassadamente.

Finalmente, aprendi a criar expectativas unicamente em relação às coisas que eu posso controlar. Cortei o cabelo, passei a zero, porque era desconfortável demais conviver com a lembrança de que o ato de acariciar o meu cabelo te deixava exultante. Passei a frequentar o Villa-Lobos sozinho. Faço cada vez mais compras no débito, apenas para estar em oposição ao fato de você ser um grande defensor da realização de compras no cartão de crédito. Voltei a ir a shows. Agora eu faço, com outras pessoas, o que costumávamos fazer juntos.

Esses dias, estive naquela hamburgueria que costumava ser a sua favorita — e que, inoportunamente, passou a ser a minha também. Enquanto acessava o cardápio em QR Code, eu travava uma batalha com a minha consciência, tentando responder a mim mesmo se o que me trazia àquele lugar era o seu famoso smashburguer ou a lembrança do primeiro — e único — encontro que tivemos naquele lugar: era uma noite chuvosa de outono e você estava levemente resfriado e, a cada espirro, você se aproveitava graciosamente da situação, me perguntando se eu gostaria de cuidar de você.

Às vezes, eu fico acordado a noite toda, porque você nunca fala comigo em meus sonhos.

Inutilmente, eu te procurei no último show no qual eu estive. Uma vez que costumávamos gostar das mesmas bandas — e, uma vez que o acaso sempre conspirou a nosso favor, providenciando repentinos e desconfortáveis encontros — eu nutria uma esperança equivocada de me esbarrar contigo naquele interminável mar de gente. Gostaria também de ter te encontrado inesperadamente quando resolvi me aventurar nos bares da cidade: será que você seria capaz de me salvar de mim mesmo?

Sinto a sensação do fracasso esôfago adentro, como se eu estivesse ingerindo algo de teor alcoólico altamente elevado. Apesar de todo esse revés denotar que falhei miseravelmente em esquecê-lo, depois de todo esse tempo, também denota algum tipo de complacência em relação a tudo o que você representou no curto período de tempo no qual os poucos e bons momentos, surpreendentemente, aconteceram.

Me permiti experimentar o gosto de outras bebidas através de outras bocas que não fosse a sua. Agora eu contemplo o vazio enquanto sou acometido pela sensação de secura na boca. Quando a vertigem ocasionada pela ressaca moral cessar, talvez eu consiga lidar racionalmente com tudo isso.

O gosto do álcool não me apetece — somente quando provado diretamente da sua boca.

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Isac Chagas
Revista in-Cômoda

Decidi revisitar cada uma das eras da minha vida e irei documentar cada etapa desta minha jornada através dos meus textos. Cê me acompanha nesta aventura? :)