Silêncio: um corpo-palavra

glaucia secco
Revista in-Cômoda
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6 min readMar 29, 2021

“Uma vida atravessada pela escrita e uma escrita atravessada pelas pessoas.”

Vencedora do Prêmio Nobel Svetlana Aleksiévitch
Vencedora do Prêmio Nobel, Svetlana Aleksiévitch

“Justo ali, na calidez da voz humana, no reflexo vivo do passado, está escondida uma alegria primitiva, e se desvela a intransponível tragicidade da vida. Seu caos e sua paixão. Seu caráter único e insondável. Ali, eles não foram submetidos a nenhuma elaboração. São originais.”

(Svetlana Aleksiévitch, escritora, 1985.)

Eu cresci rodeada de silêncios. Os espaços constantemente preenchidos por “sobre isso não se fala”. Desde muito cedo, soube que alguma coisa estava errada, alguma coisa me incomodava, mas a imposição dos silêncios diversos me impedia de escutar a própria voz. Por causa disso, também, cresci odiando segredos de todos os tipos (os meus e os dos outros).

Nesse processo de transmutação, desenvolvi uma grande curiosidade por tudo — e também certa habilidade investigativa. O conjunto dessas experiências aguçou a intuição quase como um dom mágico. Em muitos momentos da vida, me surpreendi com minha capacidade de dedução e antecipação das coisas. Mas, de alguma forma, por boicote ou proteção da dor que a antecipação traz, também aprendi a silenciar a intuição, a voz que sempre entoou de mim. Aprendi não só a evitá-la, como a fazer o extremo oposto daquilo que intuía, quase como se fosse um jogo, um teste, uma prova de fogo. E, claro, o resultado era desastroso: a intuição não só se provava verdadeira, bem como me lembrava de que não respeitá-la provocava ainda mais dores. Eu teimei em me anular em vários sentidos e silenciar minha voz em nome de um encaixe, de uma aceitação, de uma adequação, seja de familiares, seja de amigos, seja de amantes.

Diante desses silêncios, foi inevitável transformar minha permanência no mundo em um tabuleiro de palavras. Uma vida atravessada pela escrita e uma escrita atravessada pelas pessoas. A escrita sempre foi meu mecanismo de defesa e de ação contra as desventuras das experiências e os demônios particulares. Nunca foi plenamente uma invenção, sempre compôs parte do mosaico de interações que me permitem pertencer ao mundo. Não acredito, portanto, em uma escrita que não seja interpelada por minhas vivências e sensações diante dessas vivências.

Durante muito tempo, sabemos, um dos instrumentos mais imponentes de opressão contra as mulheres foi o silenciamento compulsório. Seja por meio do impedimento do acesso à educação letrada, seja por meio dos questionamentos constantes em torno de suas ideias, seja por meio, inclusive, da violência abrupta da morte, o mundo sistematicamente tentou (e tenta) amordaçar as mulheres das mais variadas formas.

A escritora e psicanalista Carmen da Silva

O machismo, oculto sob o verniz de discurso evoluído, trata de desmontar peça por peça uma personalidade de mulher mediante um trabalho tenaz de solapar-se a segurança, roubar-lhe a espontaneidade, colocá-la sempre em falta. (Carmen da Silva, escritora, 1984)

Nossas dores são questionadas, nossos pontos de vista sobre o mundo são rechaçados, nossos relatos de experiências são desconsiderados e rebatidos. O coral conservador e patriarcal que organiza a sociedade insiste em alocar as mulheres em um lugar de fragilidade e vitimização para lhes infligir regras de conduta insípidas, vazias, autoritárias, enquadratórias. Nós, mulheres, crescemos diante de gaiolas douradas sempre prontas a nos trancar se e quando aprendemos que somos dotadas de asas. Negar do que somos feitas é mais um processo de violência.

Cena da série americana Little Fires Everywhere

“Se enxergarmos as mentiras, a cidade e a gaiola que nos encerra, veremos várias outras coisas também. Veremos a porta. Uma saída. E podemos fugir voando.” (Little Fires Everywhere, 2020)

Quando eu era mais jovem, buscava nas revoltas, no grito, nos embates em voz alta uma possibilidade de compreensão, de aceitação, de paridade. O vigor juvenil me impulsionava pela raiva que me habitava e, ao mesmo tempo, me protegia do mundo. Falar era como soltar uma arrebentação que se mantinha contida por um bloqueio mal arranjado, frágil, sem enraizamento. E assim foi se dando meu contato com as pessoas: na intensidade da bravura. Por medo e insegurança, desconfiava das amenidades e das simplificações. Minha vazão eram as perguntas e as opiniões. “Essa menina tem uma língua afiada”, diziam. Perguntar e opinar sobre as situações me trouxeram muitos desconfortos ao longo do tempo.

Crescer rodeada de silêncios e silenciamentos preencheu-me de uma grande necessidade de saber, de entender, de ler, de escrever. Somente as palavras eram capazes de apaziguar a angústia de conviver no silêncio da vigilância de condutas. Depois de adulta, passei a publicar as palavras, como forma de escoá-las e, como sempre, de encontrar pares. Mas nunca se pode escrever em vão. Palavras têm temperatura, cheiro, sabor, textura, e, assim como a comida, agrada a uns e desagrada a outros. Há quem prefira sempre as mesmas temperaturas. Há quem se afaste pelo cheiro, não se permite chegar mais perto. Há quem possua restrições com os sabores. Há quem não suporte algumas texturas, mantêm um paladar mais infantil.

Em mim, por exemplo, a ausência de palavras dói muito mais do que qualquer palavra, é como faltar comida. Não tenho limitações com as temperaturas, os cheiros, os sabores, tampouco as texturas que as comidas e as palavras carregam. Eu gosto é de experimentá-las, senti-las, compreendê-las. Palavras e comidas me transportam a novas perspectivas de mundo. Ambas passam pelas mãos (no preparo e na escrita) e pela boca (na deglutição e na fala). Eu toco, eu cozinho, eu escrevo, eu como, eu falo, eu sorvo as palavras e as comidas, fontes inesgotáveis de alimentação do corpo e da alma.

A escritora feminista e filósofa Simone de Beauvoir

Não se pode escrever nada com indiferença. (Simone de Beauvoir, escritora feminista)

A ausência de palavras, principalmente o cerceamento delas, é, para mim, fome, inanição. Não escrever, não falar promovem em meu corpo e em minha alma um processo de destruição por ausência de alimento, por ausência de fonte de vida. Calar-me é matar-me de fome.

“Suportar o silêncio e dar tempo à pergunta” tornou-se um mantra para mim. Entro em 2021 ampliando os espaços para as perguntas e as opiniões que ecoam do silêncio, da fome que me habita, que habita todos (os) nós.

Evocando as palavras-alimento das escritoras que me acompanham, mantenho-me firme no propósito de seguir adiante, de cozinhar mais palavras, transformá-las em comida — para mim e para quem me lê. Só perderei as palavras se estiver morta.

A escritora feminista e historiadora Rebecca Solnit

Nós precisamos das palavras, mas é melhor utilizá-las sabendo que são recipientes sempre despojando seu conteúdo para fora, quebrando e se abrindo. Alguma coisa está sempre mais além. (Rebecca Solnit, escritora feminista, 2020. Recordações da minha inexistência.)

A liberdade de ser, de pensar, de fazer escolhas é inegociável. Porque só com isso somos inteiros. Porque só com isso a vida faz sentido. A liberdade de ser quem sou é o que tenho de mais importante. Se posso fazer um pedido para a década que se inicia, peço-me respeito aos meus desejos, à minha intuição e à energia da minha alma. Ninguém tem o direito de violar a nossa essência. Ninguém tem o direito de calar a nossa voz. Ninguém tem o direito de nos matar de fome. Ninguém tem o direito de nos matar.

Fonte da imagem: http://pm1.narvii.com/7361/6ba638992916e7787288639ca6699bbf86220613r1-640-785v2_uhq.jpg

Gal.

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glaucia secco
Revista in-Cômoda

geminiana. feminista. antifascista. professora. escritora. doutoranda em literatura. fascinada por pessoas inteligentes.