Sobre essa sensação (in)cômoda

Anita Regina Lis
Revista in-Cômoda
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4 min readJul 28, 2021

a escrita tem um papel fundamental pra mim. através dela traço um diálogo comigo mesma. por vezes, através desse diálogo comigo mesma, faço ponte com o mundo. ser compreendida — sentida a partir de um texto, ou dum poema, acalenta a solidão — que é coisa sempre da pele pra dentro (e até hoje não sei se essa definição partiu de mim ou de você). a escrita é onde sempre me refugio. dentro da minha escrita cabe o meu mundo todo.

depois, nunca fui pessoa de mais-ou-menos. sempre sou mais ou, menos. sempre (in)fluxo. fronteiriça. minhas alegrias: esfuziantes, não cabem. minhas tristezas: profundas, dilacerantes, não cabem. meu amor: imensurável (não cabe).

escrevendo, venho descobrindo, não ao acaso, que isso de sentir demais (ou de menos), isso que tantas vezes foi rechaçado, apontado como defeito, isso que me coloca à beira, isso que não defino é o que me faz poeta. tenho feito meu maior bem do meu maior mal. porque isso não é sobre escrever versos. não só. isso é sobre mastigar o mundo com carne e ossos, ruminar, e devolver algo como “beleza”. burilar minhas dores e fazer que ecoem.

(e gosto desse ar meio sombrio de quase inverno que faz a noite descer às 4h da tarde…)

lembro dos meus primeiros rabiscos naquelas agendas que a gente fazia diário e colava tudo que acontecia no dia nelas (e ao escrever isso te lembrei de novo agora). mas o que continha ali era segredo. certa vez me violaram. pegaram minha agenda. leram meus segredos. parei de escrever. (e mal sabia eu que sendo mulher as violações aconteceriam todo tempo e de tantas formas diferentes…)

depois, a primeira vez que ingressei na terapia, escrevia para anotar os sonhos. depois, os pensamentos pós-terapia. mas eu queria mais. e ainda queria guardar segredo. comecei a brincar de escrever poema. tudo passou a virar poesia. escrevia de mim pra mim. não mostrava. mas eu queria mais. foi quando surgiu aquele concurso anônimo e eu fui. fui com a sensação de subversão. sem qualquer pretensão. fui notificada por e-mail, que só vi trinta dias depois de enviado, que consegui primeiro e terceiro lugar com os dois textos que enviei. e nesse momento, eu quis bem mais. eu queria voz, mas ainda não sabia disso.

tempos depois, hoje em dia, tomei gosto por aparecer assim, sangrando em público. se uma coisa dói, escrevo. é como se assim, eu pudesse dizer: “olha só o que vocês fizeram comigo. satisfeitos?!”. porque essa ferida, hoje sei, não é só minha. é uma ferida estrutural tão profunda, tão purulenta, tão aparente, e, mesmo assim, muitos ainda insistem em não ver. e preciso mostrar. por mim, por todas que vieram antes de mim. por todas que virão depois.

há um tempo (desde o começo da pandemia, pra ser mais específica), coloquei lentes de enxergar. e vejo. e o que vejo é dolorido. mas preciso continuar vendo. a história de outras mulheres têm me atravessado os sentidos e os saberes. eu quero continuar vendo. eu sinto [muito] sobre tudo que vejo. um dia desses quero poder traduzir isso na escrita. ainda não posso. ainda não consigo. mas já sinto as dores do parto.

(e penso — enquanto lavo o maço de couve que a vizinha colheu e gentilmente me deu — que é justamente por isso que o teu cala boca me doeu e ainda me dói ardido assim. porque, por tanto tempo ensaiei te contar, e quando finalmente tive coragem, você não entendeu. e mais: me silenciou também. e acho que fui eu que esperei demais. porque essa ferida, só quem carrega é que sabe onde dói. fui infeliz quando disse que, talvez, você só venha entender sobre o que tento dizer, quando, um dia, tua filha te falar disso. eu não queria que fosse assim. que fosse sentença. mas é que infelizmente, cedo ou tarde, ela vai te falar disso. essa ferida, que tentei te dizer, pulsa inflamada em todas nós. eu queria que não. eu queria que muitas coisas fossem diferentes. não são. eu sou o que eu sou. hoje. e esse texto não é pra você nem foi escrito pra te dizer nada…)

acho que deveria pensar melhor se é isso mesmo que quero publicar. acho que deveria conversar mais com o texto antes. mas acontece que em mim, tudo tem sido urgente. e, depois, sei que nada se perderá no tempo, assim como não se perderão essas linhas escritas, nem as emoções sentidas, tampouco o afeto se perderá. tudo eternizado na fração de tempo que ocupa. pois nada é capaz de mudar o que já aconteceu. nesse arroubo, tenho a audácia de me lançar assim no mundo. cru. assim, falante e escrevente. nisso sou como Clarice: “eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo”. e contudo, não lamento [mais] minha suposta “inadequação”. sofro de muitezas.

(aproveito pra te contar, que depois de tudo, escrevi um poema longuíssimo, chamado “eu nunca tive culpa pelos abusos que sofri”. tenho quase certeza que se você lesse entenderia. confesso que esperei por uma virada cinematográfica pra nós dois, mas tudo bem. ao menos teve um “pedido de desculpas”. no fim, as coisas são o que são. as pessoas são o que são. as pessoas sentem o que sentem. e por isso mesmo esse gosto meio amargo também tempera cada palavra que sai de mim nesses tempos…)

e acontece, vez ou outra, de secar. não poder escrever nada. e é porque nem sempre falar é fácil. vez ou outra deixo de acreditar que dizer significa algo. e me calo, como quem diz. é o que sinto agora, quando escrevo. passa das 18h. essa hora melancólica. essa sensação que me toma. a noite caindo em mim. eu aquietando na frieza do concreto que me protege. penso em tantas pessoas sem lar. tantos sonhos ao relento. aos poucos também eu vou endurecendo. entardecendo calada. abrigada em minha solidão. aproveito o momento e ouço que John Frusciante ‘tá tocando Song To Sing When I’m Lonely só pra mim.

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(13/06/2020)

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Anita Regina Lis
Revista in-Cômoda

se eu sinto, escrevo. e sobre isso, quase não há mistério.