Solitários

mariogarciajr
Revista in-Cômoda
Published in
3 min readMar 22, 2019

O coração acelera e bombeia. O pulso estremece e impulsiona. Os dedos tremem. A caneta desliza e fere de tinta a textura oca do papel pautado. É a seiva das minhas veias que estão a desenhar e desenrolar as letras extensas deste cordel.

A solidão é como uma doença crônica. Não tem cura. Mas você se acostuma a conviver com ela. A solidão é como uma música ruim que toca sem parar. De tanto ouvir, você começa a achar normal. A solidão é como uma droga qualquer. De repente você se vê viciado naquilo.

Eu nunca fui de pedir nada para a vida. Sempre aceitei tudo o que me foi dado. Não pedi para ser um solitário. Mas já que recebi esta herança, não vou reclamar. Até gosto. Não vou pedir ajuda. Não estou tão down. Nem vou seguir a estrada solitária que sempre me guia até nossas lembranças. Não desta vez. Ou quem sabe, talvez.

Até ontem, estaria gritando por socorro. Mas agora, esses dias se foram e eu me sinto mais seguro. Aqui, preso neste castelo sem torre. Onde não se vive, mas também não se morre. Só é possível sentir o tempo passar por entre os dedos. Em ventanias velozes que assanham meus cabelos. Em torrentes que batem em cheio no meu peito. Apenas espreito. Mas não quero me envolver. Sinto que tudo está sem meio. Como duas pontas de uma mesma história sem texto para preencher. Debruço-me na janela sem parapeito e assisto a vida acontecer.

Ah, olha para aquelas pessoas solitárias. Elas fingem felicidade. Deliram desejos. Mas não passam de personagens descartadas de um livro sem fim, sem páginas, sem capa. Não se olham. Não se tocam. Não percebem que já passaram do fim. Não entendem que nem toda escolha traz a opção de um sim. Que é muito mais fácil se iludir. Ah, olha para essas pessoas solitárias. Elas só querem chegar em casa. Tomar um banho morno e adormecerem no sofá da sala. Não percebem que estão construindo vidas vazias, colunas feitas de penas que não sustentam nada. Elas seguem se conformando com o arroz que sobra de um casamento. Preferindo o prazer sonâmbulo de um sonho às sensações reais de alegria, esperança ou sofrimento. Ah, todas essas pessoas solitárias. Elas não suportam a vida palpável. Elas não conseguem sentir nada.

Solitários vivem em um sonho. Usam rostos emprestados de vasos de flores escondidos, deixados de lado. Eles não pertencem a lugar nenhum. Um padre escreve um sermão que ninguém vai ouvir. Ninguém quer sentir. Palavras jogadas ao vento aos que só querem existir. E nunca pediram para estar aqui. Daqui da janela sem tela do meu apartamento vejo uma mulher passando mal enquanto passa a roupa de mais um estranho sem capacidade de manter seu relacionamento. Na esquina tem um homem morrendo aos poucos enquanto segue varrendo tocos da calçada sempre suja. Na quadra da praça, um menino chuta a bola sozinho enquanto joga para fora a possibilidade de uma nova amizade. O padre continua escrevendo o sermão. No quarto dos fundos do quintal da igreja onde foi enterrada Eleanor Rigby. A vizinha que não tinha parentes e que foi sepultada na paz silenciosa de um amém. Não apareceu ninguém. Este é o fim que vejo para mim também.

Agora todos os solitários me fazem reverência, me olham com um olhar de cumplicidade e terna insistência. Sou um deles porque você partiu. Me deixou só sem a sua convivência. Aterrou meus planos, abreviou meus anos e preencheu toda a casa, móveis, eletros, vãos e canos com uma dor oca, triste e claustrofóbica. De uma retórica retumbante e mórbida. Onde me afundo em pedaços. Me afogo de pés descalços ansiando por um choque qualquer. De voltagem capaz de me fazer gritar tão alto, que eu consiga derrubar o muro encardido de solidão e chegar ao castelo em que você vive sua nova ilusão. É só um grito em forma de pedido de ajuda, pena e perdão. Sim, você pode dizer não. Sim, eu vou seguir o meu caminho em vão.

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