Um Ônibus para o Ponto Final

Lucas Arcelino
3 min readNov 6, 2022

“(…) mais maravilhosa que a sabedoria de velhos homens e a sabedoria dos livros é a sabedoria secreta do mar. Azul, verde, cinza, escuro ou límpido; calmo, agitado ou turbulento; o mar não é silencioso.” — H.P. Lovecraft

O ônibus estava estranhamente vazio naquele fim de tarde cinzento. Joel cumprimentou silenciosamente o motorista ao subir, e notou o seu cansaço na expressão mecânica que recebeu em resposta. O condutor parecia mais uma peça daquele transporte coletivo, uma engrenagem de nervos, carne e sangue, integrada ao sistema rodoviário da cidade como um resistor de circuitos.

Havia uma pluralidade atípica de escolhas de acento; usualmente os espaços eram disputados ombro a ombro, em uma amálgama de corpos em trânsito, sob uma narcose coletiva advinda da fadiga. Joel se dirigiu até a janela alta, com boa iluminação, já que era mais próxima da fluorescente no teto do coletivo. Sua decisão guardava a intenção da leitura, pois era raro conseguir condições tão propícias no transporte de volta para casa.

Retirou o livro de capa desgastada e folhas amareladas da mochila, excitado pela esperança de fuga, para recarregar as baterias mentais que somente a imaginação pode recuperar depois de um dia de trabalho pesado. Abriu na primeira página, e antes de ler qualquer palavra, aproximou o objeto do rosto a fim de sentir seu aroma, como se algo de místico emanasse do papel pelo ar.

Era uma coletânea de contos, que foi parar em suas mãos ao acaso. Teve a sorte de passar na frente de um sebo que estava se desfazendo de obras velhas, sem mais valor de venda, e o livro maltratado, com um belo navio branco ornamentando sua capa, lhe chamou a atenção. O pegou com a intenção de lê-lo no final de semana, mas as condições inusitadas lhe fizeram adiantar seus planos.

As primeiras páginas retiveram de imediato sua atenção, como se aos poucos uma aquarela varasse de cor o cinza do dia. Nas paisagens urbanas que, como intrusas, invadiam sua visão periférica, brotavam magicamente o azul do mar, o prateado da lua, e o branco do navio. Um branco tão absoluto quanto a escuridão do profundo oceano.

Não tardou para que os prédios e ruas ruíssem, e o próprio ônibus flutuasse sobre as águas revoltas de um assombroso sem fim, movido por alvas velas infladas pelo vento. Percebeu que estava diante de um velho, com uma longa barba, e um olhar cândido. Aquela figura o fez sentir que poderia descobrir maravilhas e maldições se escolhesse continuar se entregando.

Teve o ímpeto de parar, como se o espírito da prudência o advertisse, mas já estava com os pés molhados e o cheiro de água salgada impregnava suas narinas. Foi ao velho e o seguiu. O horizonte convidativo brilhava tal qual labaredas ardentes, e a promessa do desconhecido acelerava o coração de Joel, impulsionando-o para além.

Viveu então mil vidas, ao encalço do velho, percorrendo terras perdidas e misteriosas. Foi para onde os sonhos descansam, onde os desejos despertam, onde a alma se interroga, onde o ser se perfaz. Mas ainda havia horizonte, ainda havia mar, então não pôde parar.

O ônibus continuou desbravando os meridianos e paralelos sobre as águas do ser no mundo. Uma sensação de haver ido longe demais começou a descer a espinha de Joel, mas agora ele estava preso naquele mecanismo, era ele a engrenagem de nervos, carne e sangue. Sabia que o fim era iminente, buscou ao redor o velho, não o encontrou.

Estava diante do abismo onde os mares deságuam, um tremor espalhou-se e não sabia se era a água ao seu redor ou os ossos dentro de si. O barulho do desaguar cabal atordoou seus sentidos, e o medo era tão real que podia encará-lo como a um espelho. No espelho Joel viu o velho, e só depois notou a si no reflexo, portando longas barbas. Abriu a boca para gritar aos céus suas últimas palavras, mas só conseguiu cuspir areia, sal e qualquer bobagem verborrágica. Caiu em direção à realidade, tinha chegado ao ponto final.

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