O Jovem Rei

:: leitura e críticas

Andre Ribeiro
Revista in-Cômoda
7 min readJan 9, 2017

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Arespeito das inquietudes foi me dito que de nada vale vestir uma camisa apertada se, por motivo qualquer, é preciso tirá-la depois. Decerto somos muitas personas. Mas quantas vezes representamos demais o mesmo personagem a ponto daqueles a nossa volta nos reconhecer apenas por este: um prisioneiro em uma pequena prisão sem portas. Para ilustrar melhor buscamos nas letras a imagem desenvolvida. E há uma personagem belíssima num dos contos de Oscar Wilde; um Jovem Rei que no dia de sua coroação sonha por três vezes, um mesmo sonho, convertido em pesadelo quando acordado, em três variações de um único sofrimento profundo e demasiado humano: a consciência da própria existência em detrimento das outras. Em seus sonhos ele vê a origem de seus adornos reais, coroa, pérola, rubi, serem produzidos às custas de muitas vidas cujos propósitos eram lhes outorgar o direito de viver uma vida única e divina. Os outros morriam para que o Jovem Rei pudesse existir apropriadamente. De certo modo, aqueles existiam apenas para dar absoluta visibilidade a vida do Jovem Rei em detrimento (obscurecimento) das suas. Quando através dos sonhos o Jovem Rei se vê enredado nas histórias funestas de cada escravo morto para lhe produzir as riquezas, mediante as quais, se vê subitamente esclarecido, congela-se o sangue nas veias; eis que quer logo se despir daquele manto maldito, daquela coroa de falsos espinhos, daquele cetro funesto. Num rompante místico recusa a todas essas coisas e torna a vestir seus andrajos de origem, pois que fora uma dia um simples camponês; trança uma coroa de ramos de urze selvagem, e assim trajado sai do palácio. Nota-se que ao deixar para trás toda opulência insuportável os cortesões, os escravos, os camponeses, os religiosos, todos invariavelmente o reconheciam, não obstante isso: julgavam-no ensandecido pelas vestes de trapilhos. E quando o Jovem Rei se dispõe a contar-lhes os três sonhos horrendos, para justificar sua conduta, diante dos quais havia desperto para o mau da existência, é repreendido solenemente, a ponto de interpelado por um homem na multidão, ser duramente afrontado.

“Senhor, não sabeis que a existência dos pobres depende do luxo dos ricos? A vossa pompa alimenta-nos, os vossos vícios dão-nos saúde. É duro trabalhar para um patrão, mas não ter patrão é mais duro ainda. Pensais que os corvos nos hão-de nutrir? Que remédio tendes para estas coisas? Direis ao que compra: «o preço é este» e o mesmo imporeis ao vendedor? Não creio. Voltai, portanto, ao Paço, vesti a vossa púrpura e as vossas cambraias finas. Que vos importam a nossa condição e os nossos sofrimentos?”

~ O que se percebe nesta voz anônima é a forma interrompida e voluntária com que os coadjuvantes se deixam subjugar na consciência do escolhido, como se este, uma vez eleito, por reconhecimento geral, não pudesse moldar a própria consciência senão de acordo com o esquecimento das coisas sórdidas, as mais humanas. Tomar consciência dos sofrimentos implícitos em sua condição de existência era ainda mais doloroso do que o sonho, porquanto todos o obrigassem a permanecer em falso júbilo, interditando-lhe a possibilidade de repartir sua tristeza e dor. “Que sofra por nós, inconscientes que somos, pois assim é a nossa vida”. Poderia ser esta uma das frases lacônicas no conto, simbolicamente expressa por um bispo que intercede junto ao Jovem Rei na cena da Catedral.

“E quanto aos vossos sonhos, não penseis mais neles. O peso deste mundo é demasiadamente grande para que um só homem suporte, e as tristezas do mundo excessivamente pesadas para que as sofra um só coração. — Dizeis isso nesta casa? — redarguiu o antigo pastor.”

~ Ao invés de maltratar a personagem tornando-a inócua, vítima de uma dura forma de persistência existencial, Wylde nos indica um desfecho fantástico para concluir a ação do personagem no júbilo vindo das alturas, quando o prelado diz, ao vê-lo embebido pela luz que se projetava através dos vitrais do altar, enquanto a turba revoltosa invade o local em busca do agravante real,

“E o povo ajoelhou estarrecido, e os nobres embainharam as espadas e prestaram vassalagem, e o rosto do bispo empalideceu, e as mãos tremeram-lhe. — Maior do que eu, outro vos coroou — disse, prosternando-se. E o reizinho desceu do altar-mor e seguiu para o palácio através da multidão. Mas ninguém se atreveu a contemplar-lhe a face, porque a sua face era como a dum anjo.”

Tomando essa cena por outra. Uma classe admira o indivíduo ilustre que agora vos fala. Entre argumentos e frases fantásticas seduz a todos com sua habilidade de discursar eloquentemente com assimétrica indiferença. Eleva o raciocínio às alturas, dá as voltas no pensamento, e todos carentes do mundo que lhes falta o veem exalando entendimentos, dado a compreender que se encontra coroado pela vida oportunamente realizada. Veja como se agita, a ele e as palavras, e as dispara sobre a passividade inerte dos que resignam-se no próprio silencio estrutural de suas faltas de significado para se empenhar com espartana atenção àquele que fala, e toma emprestado a consciência, por todos. E nenhum momento se vê nessa multidão enjaulada entre quatro paredes servirem-se da fortuna, pretensamente ofertada, e perguntar pelo indivíduo atrás do discurso: “e como é de fato você? Como vive e respira todos os dias estas coisas incríveis, conquistadas que foram a ferro e fogo?” Absolutamente ninguém faz essas perguntas. Prefere-se enxergar a fábula, ser inspirado pelo extraordinário, ainda que soberba ilusão, do que conscientizar-se da pequenez do humano tornado gigante na terra. Quero localizar agora a questão noutra cena.

Luís me dizia — não quero vestir a camisa e me ver preso nela. Isso me aflige demais. Causa temor! Proativo como ninguém não estava à vontade com a lógica do sacrifício, oficiado nos ritos e seduções dos outros — Os outros querem que eu diga o que eles mesmos devem fazer. Me querem nessa posição indefinidamente, até quando lhes for oportuno tirar de mim o que podem. Pensativos, caminhávamos numa galeria de arte, entre quadros e falsas molduras de luz, fomos deitando o olhar nas pinturas em tecido rústico, e ali encontramos alguma ressonância. Foi apontando ao canto mau iluminado em que uma mistura de tecido crú, respingos de tinta azul em transição ao extremo do quadro, a fundir-se com a textura rugosa da parede da galeria, que por fim confessou:

— Nossa como me sinto bem aqui dentro. Todo esse silêncio, e este azul, pouca luz… não sou ninguém a ser notado. É desencanto profundo! Que tal essa imagem? Diz a mim abstraindo o olhar no canto da pintura. Fico instigado a comentar sua quase epifania mas escolho o silêncio.

— É bem tranquilo mesmo! E quase ninguém por aqui para ver a exposição, digo por minha vez meditando pretensiosamente, enquanto vejo descolorir o azul da mostra 'Céu e Nós’.

~ Andamos um bom tempo, não inteiramente em silêncio, quando as palavras brotando de uma consciência feita para consagrar o momento, o fizeram dizer, e a mim cabendo concordar, até sairmos da galeria. — Como podemos viver sob o julgo do outro? Note que todos os nossos colegas artistas buscam se filiar a quem lhes convém no momento. Se lhes é oportuno estudar com fulano que é o nome da ocasião não se acanham em dizer. Em nada se envergonham de justificar suas pretensões no prestígio alheio que querem atingir por proximidade e emulação. São uns verdadeiros epígonos sem consideração ou fidelidade qualquer. Viajam pra cima e pra baixo. Vão as quaisquer palestras e festivais apenas para se deixarem esquecer acerca do porque fazem o que fazem. Ou isso: para ser com todos e ser nenhum; ser uma distorção inerte no processo de criação artística na vida. Que infâmia, não…!

~ A esperança é sem dúvida a última que morre, pensei sem externar. Disse que concordava, e que via nesse tipo de conduta uma fantasia gestada na indiferença. Porque se de um lado admiravam tantos, e por tão estúpidos motivos "Como fala bem! Este deverá ser um grande compositor!", por outro se viam naquilo, como num conto em que tudo chega a um fim ideal, suspenso no tempo. O personagem tendo passado de um instante a outro encerrará seu destino nalgum evento fantástico. Mas não é caso da vida do lado de cá, onde a indecisão, a falta de referências, as inseguranças, assumem o espectro de todas as medidas. — Rogar a própria condição de vida a ficção do Outro, afinal, constitui uma inocente perda de significado e tempo; não é? Disse num tom relativamente aborrecido — Como houvesse muitos que antes de ver a pessoa desfeita prefiram ver a persona, às vezes, mau representada, ou forçada a personagem aos extremos, se deixa de observar que no centro da sala vos fala um prisioneiro de si mesmos. Este constrói sua existência entre as paredes de pouca cor. A camisa lhes aperta tanto que já não é mais possível tirá-la ou rasgá-la de vez. Ao contrário do Jovem Rei não haverá aqui um banho divino de luz, mas a versão opaca de uma existência condenada na ilusão de todos nós, que na voz do último dia ganharia derradeira coloratura “Já se vão cinco semanas que convivo com tal pensamento, sempre só com ele, sempre petrificado por sua presença, sempre encurvado sob seu peso.” (Victor Hugo).

— Uma consideração, talvez… disse por fim. — Tanto melhor deixar-se despir das roupas e adornos alheios, que nos veste a admiração, do que crer na imagem fantástica de si, repousada na voz inconsciente dos Outros. À música basta você. E assim baixamos nossas expectativas, e fomos afora tomar mais um daqueles cafés sem meias palavras.

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{comentário} a arte da conversa solta na criação artística musical é a melhor de todas as hipóteses, porque não sendo tácita ou categórica, não se esconde atrás do jogo convencional e violento das palavras, nem remete a um indivíduo incrível, soberbo, que se tende a se firmar entrelinhas. Não somos feitos de ilusões narcísicas mas de formas de reposição do humano, do frágil e encantador, cuja estiagem no tempo é rica em variações e belezas desprendidas das arrogâncias do destino invariável. Quis ilustrar uma conversa entre mim e um colega, pois assíduo que somos, a nos frequentar em mútuo respeito, dado que para a vida e criação artística juntas carecem ainda registros de inocência, compus as cenas acima. Belo encontros e sorte essa de poder criar livremente, sem o sobrepeso das convenções alucinantes!

#critica #literatura

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