Ditadura Militar: arte, música, memória e protesto

A música que marca a trágica história do Brasil que muitos fazem questão de esquecer

Glenda Leão de Queiroz
Revista Jabuticaba
10 min readMay 19, 2020

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(Theo Lamar/Mundo Estranho)

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão

Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores
Geraldo Vandré

Escolhi começar esse texto com um trecho de uma das músicas mais conhecidas por remontar ao período ditatorial no Brasil por alguns motivos. São eles:

  1. Essa música se tornou o verdadeiro hino contra a Ditadura Militar;
  2. Ela tem o poder de comunicar com todas as esferas sociais;
  3. Sua letra é simples, porém, muito forte;
  4. Nos lembra que, apesar de tudo, somos fortes “braços dados ou não”;
  5. E, também, porque ela me emociona muito.

Desde a infância ouço histórias sobre a Ditadura Militar e me recordo de um momento específico, quando indo à missa de domingo com a minha vó Lourdinha, falei que o então presidente Fernando Henrique Cardoso era muito ruim, repetindo o que ouvi do meu vô Quito (sindicalista filiado à CUT) dias antes, durante um almoço.

Minha vó, religiosa que era, me repreendeu, dizendo: “Meu Deus do céu, menina. Nunca mais fala isso em voz alta. Misericórdia!” e naquele momento eu não entendi absolutamente nada.

O ano era 1997 e eu tinha por volta dos 6 anos de idade. Apenas 12 anos após o fim da Ditadura Militar que, de forma muito viva, ainda assombrava a memória de todos que sofreram direta ou indiretamente com aquele regime.

Hoje, 35 anos após o fim desse período sombrio, o qual muitos de nós acreditávamos nunca mais voltar, assistimos a Democracia vivendo à beira de um verdadeiro precipício.

Entre a fantasiosa “ameaça comunista”, Coronavírus e a perigosa família Bolsonaro, estamos nós — na platéia de um teatro dos horrores — perdidos.

Mas por que “Ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 1960, 1970, 1980?” (Regina Duarte, Secretária de Cultura — 2020).

Porque memória é história e deve permanecer viva.

A estratégia de marcar na memória coletiva os erros e horrores de uma época foi adotada por muitos países que vivenciaram tragédias históricas, a fim de não repeti-las.

Música de intervenção ou de protesto

Atrizes brasileiras em 1968, durante a passeata dos cem mil, em protesto contra a ditadura militar no Brasil, no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

A arte também é protesto e, a música que carrega “um cemitério de mortos nas costas”, homenageia a resistência de milhares de pessoas torturadas e assassinadas durante o período mais sombrio da história do Brasil, nos impedindo de esquecer.

Para muitos artistas, a música não deve apenas falar de coisas banais, mas também explorar letras na tentativa de mudar a realidade cruel em que grande parte do mundo vive, buscando através da música a liberdade para a humanidade.

A música com referência ideológica existe há muito tempo, mas foi a partir da década de 1960 que a música, como forma de protesto, ganhou popularidade.

Por isso, vamos utilizar da arte, mais especificamente da música, para recordar e não repetir os mesmos horrores — ou ser coniventes com eles:

E que as crianças cantem livres sobre os muros
E ensinem sonho ao que não pode amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro
Que não dormiu e preparou o amanhecer…

Que As Crianças Cantem Livres
Taiguara

Muito conhecido por suas canções românticas, Taiguara foi o artista com mais composições impedidas pela censura: 68 canções. Mesmo com tantas negativas, manteve seu esforço até o lançamento de Que As Crianças Cantem Livres, em 1973, ano em que se exilou em Londres.

Um paradoxo: apesar do conservadorismo e da truculência do regime, a produção cultural brasileira — música, cinema, teatro, literatura — durante a ditadura militar vem sendo lembrada sobretudo pelo engajamento político, pelo desejo de mudança e pelas críticas ao governo.

Era um dia, era claro
Quase meio
Era um canto falado
Sem ponteio
Violência, viola
Violeiro
Era morte redor
Mundo inteiro…

Ponteio
Edu Lobo e Capinam

A defesa exagerada da moral e dos bons costumes parece coisa nova, não é? Pois, não é!

Esse discurso não nasceu ontem e é utilizado para endossar a postura rigorosa do regime, ao julgarem profanos todos que se levantam contra sua autoridade.

Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada

Vaca Profana
Caetano Veloso e Gal Costa

A música de Caetano Veloso, interpretada divinamente por Gal Costa, foi censurada por ferir a moral e os bons costumes da época. A letra que, embora pareça inofensiva, falava de liberdade, de ser à frente do seu tempo, de destacar-se da maioria que cultivava pensamentos retrógrados.

A liberdade ameaça a autoridade. A liberdade é inimiga da censura. Vamos proibir a liberdade para defender a integridade moral do cidadão de bem.

O primeiro passo para uma ditadura é a censura da liberdade. A arte representa a liberdade de expressão, por isso, nada mais efetivo para o regime que impedir a arte. Exilá-la. Torturá-la.

Faixa com letra de Chico Buarque em protesto contra a ditadura. Foto: Reprodução

E, enquanto “a esperança dança na corda bamba de sombrinha”, seguimos cantando “pelas tabelas”, para não esquecer que, “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”.

1964: história, memória e trauma

Imagem: Reprodução

Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento

Cálice
Chico Buarque e Gilberto Gil (part. Milton Nascimento)

Segundo Bauman (2014), a memória dos erros (e dos horrores) não impedem outros erros, em condições diferentes, em épocas diferentes, por diferentes razões. Se a história pudesse realmente servir para impedir a recorrência de eventos desagradáveis, graças ao poder da memória, nós não teríamos tido, já de algum tempo para cá, guerras e genocídios, sequer racismo, marginalização e opressão.

Vamos analisar, a partir deste fragmento de texto, os eventos ocorridos no Brasil em 2016: O Impeachment sofrido pela então Presidenta do Brasil Dilma Rousseff, os votos na Câmara dos Deputados, homenagem ao Brilhante Ustra — coronel do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos atuantes na repressão política, durante o período da ditadura militar no Brasil e torturador condenado — dentre outros.

Já faz tempo eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais

Como Nossos Pais
Belchior

De acordo com Bauman (2014), se a memória do caos vivido entre 1964–1985 no Brasil servisse para impedir outros erros, não teríamos vivido os fatos supramencionados, nem ao menos teríamos o desprazer de assistir em rede nacional votos pelo impedimento de Dilma Rousseff com justificativas vis, como os inúmeros sims “por Deus e pela família”, muito menos homenagens ao torturador da mesma.

Não estou entrando no mérito do Impeachment, propriamente, mas no discurso usado como justificativa para tal.

Foto: Reprodução

Acontece que, muitas vezes, memória e trauma andam juntos e apesar de existirem documentos que nos provam que a Ditadura Militar significou apenas mortes, censura e opressão — Comissão Nacional da Verdade, o que ocorre na contramão da história é um fenômeno conhecido como negacionismo: escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. Trata-se de recusar a realidade empiricamente verificável, tomando como verdade não-verdades sem validação ou experiência histórica.

Esse fenômeno não está acontecendo apenas no Brasil e é utilizado como arma política — principalmente da direita e extrema direita — para deslegitimar eventos históricos nos quais essa mesma direita se encontra no epicentro das diversas tragédias ocorridas, como inquisidora.

E eu digo não
E eu digo não ao não
Eu digo:
É! — proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir…

É Proibido Proibir
Caetano Veloso

Presente no Brasil desde a década de 1970, o negacionismo é responsável por declarações, como “nunca houve Holocausto” ou como as do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, “nunca houve Golpe Militar em 1964”.

Negar os fatos históricos e a violência de temas do passado e do presente é uma ameaça ao conhecimento histórico e à democracia, portanto, deve ser combatida como tal.

Seguindo o raciocínio de Bauman (2014), posso inferir que a memória em si, realmente, não é capaz de evitar que cometamos erros — uma vez que essa memória é frágil e pode ser facilmente manipulada, mas digo que é impossível olhar para dados, números e documentos históricos, e não conseguir extrair deles algo que nos ensine a lidar com velhas ameaças de roupas e sapatos novos.

A única forma de cometer (não erros de natureza distinta, mas) os mesmos erros é revisitando a história, não para responder novas questões, mas para negá-la.

Imagem de Caetano no momento de seu discurso no III Festival Internacional da Canção em 1968 à esquerda e à direita imagem do público recebendo sua palavras com vaias. Foto: Reprodução

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada(…)”

Caetano Veloso
Discurso III Festival Internacional da Canção (Fase Nacional), em 68 — TV Globo.

Em meio a vaias, Caetano proferiu um discurso sobre a facilidade que a juventude tem de cambiar de lados, de obedecer e até reproduzir a mesma violência destinada à ela. Nesse mesmo discurso, Caetano provoca: “(…)E vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!” Indicando que a juventude daquela época (e acredito que cabe à de hoje, também) estava mais preocupada com o vir a ser, com o que é considerado cool e descolado, do que com o real cenário político, de fato.

O fascismo oprime determinados grupos e classes minoritárias

Livro: Os Cartazes Desta História. Imagem: Compilação feita pelo Instituto Vladmimir Herzog

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver, cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!

Alucinação
Belchior

Repare na letra de Alucinação de Belchior: as representações dos grupos mais perseguidos nos anos de chumbo da Ditadura Militar, são um preto, um pobre, uma estudante, uma mulher sozinha, um rapaz delicado e alegre.

O discurso fascista nega tudo aquilo que é considerado fora do padrão estético, social, cultural e político das classes majoritárias, marginalizando grupos específicos e colocando-os como subversivos e vilões da história.

A perseguição a esses grupos se dá pela supervalorização da moral e dos bons costumes, discurso que, ao ser aderido pelas classes média e alta, endossa atitudes, como tortura e assassinato, cometidas pelo regime, dando à luz a falsa sensação de segurança, reforçada por falas como “na época em que os militares comandavam o Brasil não tinha bandidagem, nem pouca vergonha”.

Passeata dos Cem Mil, 1968 — Foto: Evandro Teixeira

Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão
Acorda amor

Acorda Amor
Chico Buarque

Segundo Chico Buarque, na letra de Acorda Amor, chamar um ladrão era melhor que enfrentar a “dura, numa muito escura viatura” — ou sugere ainda que a autoridade da época era mais criminosa que ladrões — e que o que para muitos era medo, para poucos era segurança. E quando falo poucos, me refiro à classe média branca que ainda insiste em querer controlar a história.

A partir de tudo que foi dito aqui, concluo que é imprescindível a colaboração artística para marcar na memória coletiva fatos históricos, também é inegável a qualidade das produções musicais da época: foram deixados pelos artistas centenas de tesouros, baús ricos de memória e história viva.

E como disse Chico Buarque:

“mesmo calada a boca, resta o peito (…) mesmo calado o peito, resta a cuca”.

A intenção aqui é de mostrar que, para além da história escrita, a arte também tem papel fundamental na luta contra o fascismo, e que o ontem deve permanecer vivo, a fim de honrar as memórias e as vidas que foram arrancadas com fim único e exclusivo de nos controlar através do medo.

Além disso, existem muitas músicas importantes que não entraram neste texto, mas que reuni (um boa parte delas) em uma playlist no Spotify: (Clique aqui).

Se você gostou deste texto e quer ler mais sobre o assunto, deixe seu comentário, pergunta ou sugestão para um novo post.

Até breve!

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Glenda Leão de Queiroz
Revista Jabuticaba

Publicitária, gestora de mercado e escritora que acredita que liberdade é não ter medo.