Entre Incas e Espanhóis

Como armas, germes e aço traçaram o destino de dois impérios

João A. Leite
Revista Jabuticaba
7 min readAug 28, 2020

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O que explica o desenvolvimento desigual entre os povos? Como algumas civilizações obtiveram certos recursos mais rapidamente que outras? Quais foram os determinantes das conquistas entre nações?

Responder qualquer uma destas perguntas requer uma vasta visita na história humana. É preciso conhecer profundamente muitos povos e os pormenores da sua forma de vida, sendo indispensável interligar diferentes áreas do saber, como biologia, história, economia, linguística, geografia e ramos das ciências exatas. Este considerável trabalho foi o que Jared Diamond, biólogo evolucionista, se propôs a fazer para tentar responder estas e mais algumas outras questões que você possivelmente se fez durante algum ponto das suas aulas de história.

Ao contrário do argumento racista defendido por muitas pessoas ao longo do século XX, o autor defende que o destino das nações não está relacionado às características “raciais”, nem mesmo a diferenças na capacidade cognitiva dos povos, sendo todos igualmente capazes e desenvolvidos dentro do ponto de vista de sua própria realidade social e ambiental. Neste sentido, o autor aponta que os principais determinantes das discrepâncias entre as sociedades humanas estão, na verdade, relacionados às três palavras que compõem o título de seu livro, “Armas, Germes e Aço”.

De acordo com Diamond, estes fatores foram responsáveis por desdobramentos que ajudam a explicar a posição de países tidos hoje como “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”. As armas representam o avanço tecnológico e seus determinantes, os germes estão relacionados às dinâmicas sociais e biológicas envolvidas em grandes populações aglomeradas e conectadas, enquanto o aço se relaciona com a disponibilidade dos mais diversos recursos naturais.

Para demonstrar a aplicação de algumas das ideias defendidas no livro, tomemos como exemplo o terrível encontro entre Incas e Espanhóis no início do século XVI. Quais fatores foram responsáveis pela vitória dos Espanhóis sobre os Incas? E por que não ocorreu o contrário? Vocês conseguem imaginar guerreiros do império Inca atravessando o atlântico e tomando as riquezas da península Ibérica?

La captura de Atahulpa, Juan Lepiani. Wikimedia Commons.

Naquela altura, o povo Inca consistia no maior império das Américas, com uma população estimada em mais de dez milhões de pessoas distribuídas ao longo dos Andes e da costa oeste da América do Sul. Ainda hoje, é possível encontrar vestígios de grandes cidades e terraços de cultivo onde outrora esta civilização exercia suas atividades econômicas, religiosas e sociais, comparável às obras de tantas outras grandes civilizações complexas.

É evidente que sociedades como os Impérios Inca e Espanhol são marcados pela presença de grandes populações. O mecanismo que explica o crescimento e manutenção do grande contingente de pessoas em uma civilização tem como elemento chave a grande produção de alimentos e geração de excedente. A lógica pode ser descrita da seguinte forma: um grupo de humanos consegue produzir alimento de forma eficiente, geralmente através de uma agricultura estabelecida em local fixo, o que permite que sua população cresça. Se sua produção for eficiente ao ponto de gerar excedente, é possível que haja um processo de divisão do trabalho, em que uma parte da população garante recursos de subsistência, enquanto a outra parte pode se dedicar a se especializar em atividades como ritos religiosos, estudos astronômicos, desenvolvimento da escrita, contabilidade e administração dos recursos da comunidade, produção de artesanato e novas tecnologias e treinamento para guerras e combates. Esta gama de atividades permite que um povo fortaleça sua identidade e expanda sua influência, seja através da dominação, do comércio ou assimilação de outros povos.

O processo descrito por este mecanismo foi observado em sociedades dos mais diversos cantos do mundo, contudo, o resultado concreto depende de fatores ambientais, como a posição geográfica, disponibilidade de espécies de plantas e animais domesticáveis e contato com outras populações.

Nesta linha, o continente Americano apresenta uma grande desvantagem em relação ao continente Eurasiano. Se o leitor observar um mapa-múndi, notará que a disposição da América é predominantemente vertical, enquanto a Eurásia possui uma grande faixa horizontal. As diferenças latitudinais são de extrema importância para explicar diferenças climáticas entre regiões. Enquanto o continente Americano se estende do círculo polar ártico ao trópico de capricórnio, a maior faixa de terra da Europa se concentra entre o círculo polar ártico e o trópico de câncer, ou seja, na zona temperada do norte.

Ao contrário do que pode sugerir a intuição, a grande diferença não é o fato de um lugar ser mais “frio” que o outro, mas sim no sucesso na adaptação de plantas e animais domesticados e transportados ao longo do continente (sim, a maioria dos vegetais que comemos hoje foram um dia selvagens e posteriormente domesticados¹). Logo, uma cultura encontrada na China talvez pudesse ter sucesso quando manejada em Portugal, enquanto uma espécie nativa do Canadá dificilmente teria sucesso no Panamá.

A proximidade entre Ásia, Europa e a faixa norte da África permitiu uma rica migração de espécies de vegetais e animais, enquanto a América permaneceu restrita às espécies de um único continente. Somado a isso, a “sorte” de ter espécies candidatas à domesticação é parte importante da explicação. O livro aponta que o primeiro grupo de continentes dispunha de 33 espécies de pastagens de sementes grandes, enquanto as Américas continham apenas 11. A mesma disparidade é observada em relação aos mamíferos domesticáveis (herbívoros ou onívoros, com peso médio superior a 45 kg), havendo 72 candidatos na Eurásia e 24 nas Américas, sendo que deste total foram domesticados respectivamente 13 e 1 espécies.

Além disso, a América também possui consideráveis obstáculos geográficos que dificultam o tráfego e contato civilizatórios de longas distâncias, enquanto a região mediterrânea promoveu os mais diversos encontros civilizatórios ao longo de muitos séculos. De acordo com o autor, o isolamento de povos dificulta a introdução de fontes de alimento diversificadas e de inovações tecnológicas, levando muitas vezes a significativas disparidades na forma como estes povos moldam o ambiente ao seu redor.

As condições ambientais apresentadas até aqui pouco dependem de seres humanos, são uma mistura de sorte e acaso que moldaram parte do destino de bandos que vagavam a coletar e caçar pela face da terra, sem fazer ideia de que a escolha de se fixar em determinado lugar poderia comprometer o futuro de seu povo no longo prazo.

Compreender estes fatores iniciais e aplicados ao mecanismo de crescimento populacional ajuda a compreender um episódio muito marcante na história da América Latina:

como menos de 200 espanhóis derrotaram mais de 80 mil incas e capturaram o recém declarado imperador inca, Atahualpa, no massacre em Cajamarca de 1532?

Naquele momento, o império espanhol que invadia a América era resultado de uma complexa interação entre povos que guerrearam, se miscigenaram e estabeleceram relações comerciais ao longo de séculos. Como consequência, os espanhóis ostentavam tecnologias na produção de armas e ferramentas, cultivavam diversas culturas vegetais, criavam animais domesticados originários de outras regiões e os usavam como fonte de alimento, transporte e equipamento de guerra, além de já utilizarem a escrita para registrar conhecimento ao longo do tempo e transmitir informações. Seu sucesso produtivo propiciava a manutenção de uma grande população que sofria constantemente com germes, reflexo das condições de vida em aglomerações e do frequente contato com outras regiões, fazendo com que surtos locais de doenças se tornassem verdadeiras epidemias.

Ao desembarcar nas Américas, os europeus logo espalharam seus germes entre os nativos que não possuíam imunidade contra os germes do “velho mundo”, como a gripe, a varíola e sarampo, que silenciosamente se espalhavam continente adentro, causando mortes e desestruturação sociais aos índios. Reflexo disso é que o imperador inca que governava naquele momento morreu doente antes mesmo de ver a cara pálida dos espanhóis, dando início a uma guerra civil de sucessão em seu império.

É neste contexto em que Atahualpa, um dos que reclamava o trono para si, marchava com seu império fragmentado quando foram surpreendidos pela emboscada dos homens brancos vestidos em aço, portando armas de fogo e montando bestas nunca antes vistos naquelas terras. O efeito psicológico do estrondo dos tiros, da visão daqueles homens metálicos montados em cavalos que aceleravam sua movimentação e atropelavam pessoas foi suficiente para desestabilizar o exército que pouco pode resistir diante de toda aquela situação. Eram armas, germes e aço dando fim ao grandioso império Inca.

Este foi apenas um exemplo para ilustrar as ideias apresentadas por Diamond em seu livro. As razões que levaram ao trágico fim dos incas também afetaram outros povos originários das Américas e se repetiram em outras regiões do mundo em contextos diferentes.

Desta forma, fica nítido que não foram fatores raciais os responsáveis pelas diferenças de desenvolvimento que levaram à derrota e dominação de alguns povos. A obra aborda muitos outros exemplos ao redor do mundo e apresenta outros fatores que também influenciaram os rumos da história humana. Sem sombra de dúvidas, a leitura é válida para todos aqueles que se interessam por compreender a história da humanidade.

Este texto foi escrito por mim em parceria com Mateus Moreira de Jesus Ferreira e faz parte do projeto Revista Jabuticaba, inserido na seção especial dedicada a resenhas, resumos e análises sobre livros e outras obras.

Se você tem vontade de escrever sobre temas sociais inseridos em livros acadêmicos, romances, filmes e músicas, entre em contato comigo!

1- O processo de domesticação ocorre quando uma espécie passa a ter seu processo de reprodução controlado por seres humanos, desta forma é possível selecionar características específicas de forma artificial, modificando a especie selvagem original gradualmente. Um exemplo concreto é o processo de evolução do milho e dos cães, tal como conhecemos hoje.

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João A. Leite
Revista Jabuticaba

Mineiro e bacharel em ciências econômicas pela UFJF. Externalizo aqui alguns pensamentos, análises e reflexões que ebolem na minha mente inquieta.