Precisamos falar sobre o suicídio

10 de setembro, Dia Mundial de Prevenção do Suicídio

Victor Moraes
Revista Jabuticaba
11 min readSep 11, 2020

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Desde a antiguidade aos tempos modernos o suicídio se constitui como uma mazela social, no entanto, o debate sobre o tema se configura como um tabu. A ausência de condições materiais para reprodução da vida, de debates e de transparência sobre o tema corroboram para o crescimento dos alarmantes números trazidos pelo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2016.

Pôde-se constatar, que o suicídio é a 2ª principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos; além disso, cerca de 80% dos suicídios são cometidos em países de renda baixa ou média. Vale ressaltar que, de acordo com o mesmo relatório, 800 mil pessoas cometem suicídio por ano no planeta, de maneira análoga, poder-se-ia dizer que ocorre um suicídio a cada 40 segundos no mundo.

As motivações para escrita deste texto vêm com o intuito de difundir o debate do tema sobre diferentes interpretações, apresentar pensadores que discorreram sobre o tema dentro da psicologia, sociologia e antropologia e, por fim, é também objetivo do texto orientar outrem acerca de como ajudar alguém em uma situação de ideação suicida.

Le Suicidé, Édouard Manet, 1877.

O suicídio nas distintas culturas e períodos históricos

Na Antiguidade o suicídio era severamente penalizado socialmente e foi estudado nos distintos períodos históricos e contextos culturais pela antropologia. Em Tebas e Chipre, o suicida era privado do funeral e de qualquer honra fúnebre; em Atenas, no século IV, a mão do suicida era cortada e enterrada separadamente do resto do seu corpo para inibir que o suicida pudesse praticar algum tipo de vingança ou assassinar os vivos (o objetivo era supostamente destituir o suicida de um poder abstrato após a vida); em Roma, as pessoas que cometiam suicídio eram privadas de sepultura, podendo haver confisco de bens por parte do Estado.

Ainda no século IV, Santo Agostinho postulou que o suicídio era uma perversão detestável e demoníaca, afirma-se aqui que o “não matarás” presente na bíblia se estende a “não matarás a si próprio”, a igreja católica usava todas as formas para reprimir o suicídio. Outras religiões também condenam a prática suicida, como é o caso da religião judaica, em que o morto é sepultado separadamente.

Algumas comunidades tribais (primitivas) viam o sacrifício como uma forma de ofertar uma dádiva a um deus superior, o ritual era visto pelas sociedades de maneira benéfica por preparar a família e a comunidade para a falta que a ausência do indivíduo ocasionaria, nestas sociedades a morte é encarada como parte integrante do viver. De maneira paradoxal a estas sociedades primitivas ocidentais, as sociedades ocidentais modernas são diretamente influenciadas por religiões cristãs em sua maioria, desta forma, criou-se um grande tabu acerca do suicídio, passando a ser visto como um ato de incapacidade do homem de dominar eventos externos a ele, aqui a morte é encarada como um fracasso e não como uma parte integrante do processo de viver.

Paralelamente, a questão suicida é interpretada de maneira muito diferente pelos países orientais, interpretação esta que se coloca de maneira diametralmente oposta a que se tem no ocidente. No oriente, a prática de auto-sacrifício e autopurificação através do suicídio são atos comuns, principalmente na China, Japão, Índia e, em menor proporção, no Vietnã e na Coreia do Sul.

Na Índia a prática do suttee ainda é comum, ocorre quando um cônjuge falece e o outro é enterrado juntamente ao morto pela crença em uma vida juntos após a vida. Ainda neste país, por se tratar de uma sociedade em que a poligamia é mais aceita, ocorrem disputas entre os diferentes parceiros para serem enterrados juntamente ao morto.

No Japão a prática do Haraquiri (Prática de cortar o ventre com um sabre) sempre foi presente na cultura samurai. Neste sentido, a prática do seppuku (deixou de ser legal em 1868) se tornou parte integrante da cultura dos samurais, neste entendimento, em algum momento da vida o samurai deveria necessariamente cometer suicídio, para eles o cultivo desse ritual e dos movimentos têm grande importância pois consideram o suicídio a última obra de arte na vida; aqui a morte aparece como arte final. O haraquiri se difere do seppuku por preservar a forma e o movimento como os indivíduos deveriam realizar a passagem ao ato. Dois conceitos são arraigados na cultura japonesa: a honra (suicídio após uma derrota) e do serviço (suicídio para acompanhar um mestre).

Uma outra prática também se tornou comum entre os países do oriente, o junshi (suicídio por acompanhamento), essa forma de suicídio está diretamente relacionada com hierarquias pois o suicida efetua a passagem ao ato para acompanhar um líder, mestre ou superior. Após a morte de um general de guerra, era comum que pessoas da tropa decidissem o acompanhar, outro exemplo pode ser evidenciado no budismo, o próprio Buda morreu por morte voluntária por considerar que o seu propósito na terra estava cumprido, tendo sido acompanhado por muitos praticantes. Ao passo que o suicídio se tornou uma forma de protesto à discriminação religiosa oriental, em 1963, no Vietnã do Sul alguns budistas embebedaram suas peles com petróleo e se incendiaram em frente a uma igreja católica em virtude da discriminação que a religião budista sofre nesta região.

Na Coreia do Sul e na China, o suicídio entre adolescentes e jovens estudantes é uma prática comum, o perfeccionismo, a exigência e a privação de lazer que os estudantes são submetidos nas instituições de ensino e em casa são suficientes para provocarem suicídios. Muitos são os relatos e registros deixados por pessoas que se consideravam incapazes e inferiores em virtude do seu desempenho intelectual, de modo que esse “insucesso” é um motivo de grande vergonha perante a sociedade e sua família.

Torna-se evidente que para melhor compreender o fenômeno do suicídio urge que se entenda as particularidades apresentadas por cada cultura dentro do todo universal. Porém, torna-se igualmente preponderante compreender a totalidade que envolve o fenômeno, neste sentido, a apreensão do período histórico específico e do panorama político também é fundamental. Em 1929, durante a grande crise, dois homens que possuíam conta conjunta saltaram do Hotel Ritz no Centro de Nova York de mãos dadas; durante a 2ª Guerra Mundial o Japão contou com o apoio de 5000 camicazes; Getúlio Vargas comete suicídio com uma bala no peito após ser virtualmente deposto.

A afirmação do direito de morrer em sociedade do Oriente contrapõe-se, deste modo, a sua negação total na vida ocidental. O sentido cultural do suicídio se perde e o que se impõem são mecanismos de se evitar a dor. Talvez o tabu imposto em sociedades do Ocidente sobre o fenômeno do suicídio tenha funcionado, ainda, como uma maneira de obliterar a percepção de uma falha da sociedade em garantir condições de vida razoáveis para o indivíduo. (Suicídio: testemunhos de adeus, Maria Luiza Dias)

Quando um assunto passa a ser debatido abertamente dentro da sociedade, criam-se possibilidades reais de resolução do problema ou pelo menos de uma mitigação deste, então “quebrar esse tabu” de evitar o assunto ou “demonizar” o debate já é um grande passo a ser dado, ainda que se configure como um pequeno passo diante da complexidade da problemática apresentada.

A ciência e o suicídio

A sociologia acredita que o suicídio não pode ser explicado unicamente pela interpretação de motivações individuais ou culturais, estando elas associadas às relações e fatos sociais, forças exteriores ao indivíduo ditadas pelo modelo de sociabilidade vigente em determinado período histórico. Foi a partir do século XIX que o suicídio passou a ser estudado como um problema social.

Marx em seu livro sobre o suicídio debate com Jaques Peuchet, responsável por conservar registros da polícia parisiense. Ambos acreditavam que sem uma ruptura com a ordem social vigente, não seria possível frear o fenômeno do suicídio, já que o modelo de sociabilidade no período histórico gera, em sua reprodução ampliada, uma grande massa de miseráveis capazes apenas de vender a sua força de trabalho, que ao se realizar gera um estranhamento, em que o homem se torna estranho a si mesmo. O suicídio é apenas mais um dos mil e um sintomas da luta de classes existente. Torna-se claro que, em Marx, o suicídio é um produto das contradições da sociedade capitalista.

O que é afinal uma sociedade onde encontramos a solidão, a mais profunda no meio de milhões de seres humanos, onde podemos ser tomados por um desejo implacável de morte sem que ninguém o perceba? Esta sociedade não é uma sociedade; é, como o diz Rousseau, um deserto povoado de animais ferozes (Sobre o suicídio, Karl Marx)

Em 1897, Émile Durkheim publica sua principal obra: O Suicídio. O autor positivista ganhou mais evidência pela elaboração de 3 tipologias relativas ao suicídio dentro da obra, sendo elas: o suicídio egoísta, o altruísta e o anômico; ainda haveria uma quarta tipologia , denominada de suicídio fatalista, que o autor não discorre de maneira atenciosa.

O suicídio egoísta consistiria no individualismo excessivo, o indivíduo não se vê integrado com a sociedade e ocorre uma falta profunda do interesse pela comunidade e por estabelecer relações; o autor usa como exemplo ilustrativo o suicídio de um sujeito deprimido. O suicídio altruísta consistiria em um excessivo altruísmo ou sentimento de dever, este tipo de suicídio é visto de maneira heroica em muitas sociedades em que o autor usa como exemplo e que já foram supracitadas (sociedades primitivas, haraquiri, etc.). O suicídio anômico inere a mudanças bruscas na sociedade, como a revolução industrial, em que os indivíduos não conseguem se adequar aos novos padrões de sociabilidade estabelecidos. Para ele, qualquer perturbação na ordem social causaria uma maior inclinação das pessoas ao suicídio, como em momentos de crise.

A última tipologia elaborada, não muito bem debatida, consiste no suicídio fatalista, onde as paixões e os desejos do indivíduo são castrados por uma disciplina laboral violentamente opressiva, o exemplo utilizado seria o suicídio de escravos que viam no suicídio uma das únicas formas de libertação da sua condição de existência e como uma forma de afrontar o senhor de escravos. Ademais, Durkheim se apoia sobre o estudo positivista realizado por Brierre de Boismont, tal estudo só corroborava para análises e conclusões caricatas e burlescas que pouco ajudavam a compreender o fenômeno do suicídio, contribuindo para a desinformação sobre o tema.

Boismont concentrava sua pesquisa nas áreas de medicina, estatística e filosofia; em seu livro ele analisa escritos deixados por 1507 suicidas, o caráter positivista da sua obra,chega a resultados no mínimo questionáveis ou pouco consistentes.

Para ele, as principais causa do suicídio, de ordem da maior frequência para menor frequência, são: loucura, embriaguez, doenças, desgostos domésticos, desgostos com contrariedades, problemas com dinheiro, fortuna e cobiça, caráter fraco, exaltado, triste ou hipocondríaco, remorso, temor a desonra ou perseguições judiciais, má conduta, preguiça, delírio agudo, ciúmes, falta de trabalho, orgulho ou vaidade, motivos diversos e motivos desconhecidos.

Assim sendo, Boismont recomenda o tratamento do suicida através do isolamento e de meios coercitivos, a hidroterapia, o emprego de morfina, a alimentação forçada por meio de sonda, no caso do indivíduo que se recusa a comer, trabalho intelectual ou manual.

Por outro lado, a psicanálise buscou compreender o suicídio através das motivações individuais de cada indivíduo, dissociando-o da totalidade que a ciência social busca trazer em suas análises. Freud se defronta com o suicídio em alguns textos, para ele todas as pessoas são possuidoras de objetos, estes são dotados de investimentos libidinais (afeição), quando estes objetos deixam de existir fisicamente, o indivíduo passa necessariamente por um processo de luto, tal processo nem sempre pode se completar e, por conseguinte, tem-se um quadro melancólico. São exemplos de objetos perdidos: separação ou termino de um relacionamento, morte de um ente querido, perda da pátria (exílio), demissão de um emprego, etc. O grande problema, para o autor, consiste no fato de que o objeto apenas se perde fisicamente, mas deixa uma marca na psique do indivíduo, que possui uma identificação narcísica com o objeto, de modo que a perda do objeto representa a perda de uma parte de si mesmo, ao passo que o objeto nunca se perde totalmente, apenas fisicamente.

A grande contribuição do Freud nesta temática consiste no entendimento de que o suicida em nenhum momento está tentando tirar a própria vida, mas é alguém que busca dar fim a vivências insuportáveis ou se desenvencilhar completamente de objetos perdidos que não é capaz de desinvestir libidinalmente. No luto normal, o sujeito consegue desinvestir libidinalmente do objeto perdido, de modo a conseguir afeiçoar outros objetos. Porém, muitas vezes o sujeito ainda se identifica com o objeto e ele permanece vivo em sua subjetividade, desse modo, o objeto, que já não existe fisicamente, retorna através de lembranças, momentos, musicas, hábitos, etc.

O luto não consegue se concluir mediante tais condições e, com isso, inicia-se um estado melancólico. O sujeito, por não conseguir se desvencilhar completamente do objeto afeiçoado pode, neste estágio, desferir agressões contra ele mesmo na intenção de atingir o objeto que apenas existe no sujeito e que está colado a ele, havendo uma cisão entre o objeto e o sujeito dentro dele mesmo, culminando na automutilação e no suicídio. Vale ressaltar que, para o autor, a vida humana é permeada de duas pulsões: Eros (pulsão de vida) e Tanatos (pulsão de morte); o suicídio é compreendido aqui como exemplo máximo de manifestação da pulsão de morte.

A melancolia caracteriza-se psiquicamente por um desânimo profundamente doloroso, por uma suspensão do interesse pelo mundo externo, pela perda da capacidade de amar, pela inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima com depreciação de si mesmo. (Luto e Melancolia, Sigmund Freud)

Karl Menninger, médico psiquiatra americano, autor da obra Eros e Tanatos: o homem contra si próprio, postula: em lugar de combater seus inimigos, tais pessoas combatem (destroem) a si próprios. Assim, para psicanálise o suicídio é um homicídio, onde o indivíduo que mata é também a vítima, a sombra do objeto cai sob o sujeito.

O esforço realizado até aqui buscou tratar, de maneira introdutória, as diferentes percepções das sociedades sobre o fenômeno do suicídio em diferentes períodos históricos e culturais, ao passo que traz para o debate as primeiras elaborações científicas sobre o suicídio. Hodiernamente existem inúmeras pesquisas nas áreas de Psicologia, Antropologia e Sociologia que tratam o tema de maneira mais atual e que buscam preencher lacunas deixadas pelos precursores que se propuseram a pensar sobre o suicídio, entretanto estes estudos estão para além do escopo do texto, que busca apenas introduzir o debate.

O que fazer e como ajudar?

Para tratar deste tópico, parte-se das orientações estabelecidas pelo Ministério da Saúde para política de combate ao suicídio. Busque, em um momento calmo e apropriado, iniciar um diálogo buscando ouvir atentamente a pessoa que possui ideações suicidas, sem nenhum tipo de julgamento, incentive a pessoa a buscar acompanhamento profissional para saúde mental (CAPS,CVV,UBs,…), caso a pessoa esteja em perigo eminente de morte busque ficar próximo dela e não deixá-la sozinha. Caso não se sinta confortável para ter esta conversa com o sujeito em estado de sofrimento mental elevado, busque direcionar o sujeito a procurar o Centro de Valorização da Vida.

Muitas pessoas que possuem ideações suicidas ou que conhecem alguém em estado de sofrimento emocional profundo não sabem onde procurar apoio em momentos de crise e de forte ideação . O CVV (Centro de Valorização da Vida) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone (188), e-mail e chat 24 horas todos os dias. É uma organização da sociedade civil sem finalidades lucrativas, de caráter filantrópico (criada em 1962), reconhecida como Entidade de Utilidade Pública Federal (1973, Decreto-Lei 73.348) na política de prevenção ao suicídio.

Vale ressaltar que qualquer pessoa com mais de 18 anos pode se candidatar para se tornar plantonista no CVV, desde que aprovado no programa de seleção de voluntários e aprovado no treinamento, deste modo, caso você, caro leitor, esteja em um bom momento emocional consigo mesmo e deseja ajudar na política nacional de prevenção ao suicídio, candidata-se no CVV.

Esse texto faz parte do projeto Revista Jabuticaba.

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