Desventuras em Paris e Londres

Uma viagem com George Orwell pela pobreza nas capitais europeias

João A. Leite
Revista Jabuticaba
5 min readJul 16, 2020

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Atenção: O enredo do livro “Na Pior em Paris e Londres” é revelado em detalhes neste texto.

Nunca mais vou pensar que todos os vagabundos são patifes bêbados, nem esperar que um mendigo se mostre agradecido quando eu lhe der esmola, nem ficar surpreso se homens desempregados carecerem de energia, nem contribuir para o exército da salvação, nem empenhar minhas roupas, nem recusar um folheto de propaganda, nem me deleitar com uma refeição em um restaurante chique. Já é um começo.

São com estas palavras que George Orwell finaliza a narrativa sua própria trajetória pela pobreza e por péssimas condições de vida em duas grandes capitais europeias. Apesar de todo o glamour associado a estas cidades, o autor traz à tona cenários inóspitos no fim da década de 1920, logo na década seguinte à primeira guerra mundial. O fato de a história ter se passado há quase cem anos atrás, não anula o fato de representar o sentimento humano de ser rebaixado aos níveis mais baixos de privação material e humilhação, acredito que reside aí um dos grandes méritos da obra.

A narrativa começa em Paris em meio a um pequeno caos num bairro pobre e distante, o autor se mudara para lá voluntariamente para respirar novos ares e se dedicar à escrita jornalística. A escolha por um lugar humildade se fez para estender suas reservas financeiras pelo maior tempo possível e para observar a vida como era por lá. Logo de cara, somos apresentados a alguns de seus colegas na pensão com péssimas condições de higiene onde residia. Apesar de toda aquela gente ser tratada apenas como pobre, Orwell, que naquele tempo ainda assinava seus escritos por seu nome real Eric Arthur Blair, nos transmite uma visão singular de cada indivíduo ali, descola o lastro de multidão e sinaliza a singularidade de cada personagem que apresenta.

Imagem encontrada em https://www.bbc.com/news/magazine-27937747

O fato de conviver com toda esta gente poderia ser apenas um experimento mesquinho, mas tudo muda quando o escritor tem boa parte de seu dinheiro furtado na calada da noite. Neste momento a vida virava de ponta-cabeça, não havia mais tempo para escolher onde buscar emprego, era preciso trabalhar onde quer que fosse para garantir algo quente para lhe encher a barriga e um teto para passar a noite. Foi assim que, pouco a pouco, Blair se tornava uma pessoa como aquelas com quem convivia.

Após penhorar boa parte de suas roupas diante da miséria eminente, o escritor buscou Boris, um velho amigo Russo que também vivia em Paris. Sem muita surpresa, descobriu que ele também estava na pior. Juntos, os amigos passaram a se apoiar e a buscar trabalho. Após atingirem preocupantes quadros de saúde e desnutrição, conseguiram trabalho em restaurantes e descobriram a exaustiva rotina de trabalho nas cozinhas, que exigia inescrupulosamente que trabalhassem durante mais da metade do dia. O dinheiro era pouco, mas pelo menos havia comida¹.

As coisas pareciam prestes a melhorar um pouco vir após receber o convite de um conhecido para escrever para um jornal em Londres. Orwell reuniu suas últimas economias e se mudou de volta para a Inglaterra, apenas para ser surpreendido ao saber que seus novos patrões haviam viajado e ele teria que esperar por um tempo até conseguir trabalho e dinheiro.

Enquanto havia suas últimas reservas, foi possível comer e dormir com algum resquício de dignidade, mas com o avanço dos dias não houve outra opção a não ser adotar as ruas como lar. Na vida das ruas londrinas, outros mendigos tiveram suas histórias apresentadas e são todas tocantes, muitos deles acabam naquela vida subitamente, sem terem tomado nenhuma decisão ou atitude que os levasse por aquele caminho.

A vida enfrentada por eles é extremamente difícil. Naquele tempo, Londres possuía leis contra a vadiagem que impediam até mesmo que eles se sentassem ou deitassem no passeio, ou mesmo pedissem dinheiro nas ruas. Muitos tentavam buscar emprego, mas devido ao seu estado de saúde e aparência, acabavam sempre rejeitados e, quando não era este o caso, era trabalho demais por tão pouco dinheiro, que no fim das contas trabalhar os tornava ainda mais miseráveis. Isso tudo gerava um ciclo vicioso de mais pobreza e menos esperança. Quanto mais pobreza, mas difícil fica de escapar da miséria.

Dois dos colegas da vida de Orwell nas ruas me chamaram bastante a atenção. Um deles é um irlandês que culpava com grande rancor os estrangeiros pela falta de emprego no país. Nada mais irônico do que observar pensamentos como este sendo no Reino Unido ainda em 2020, ano em que o Brexit se concretizou com apoiadores de muitos britânicos que defendem esta mesma tese.

O segundo colega se chamava Bozo, era um sujeito extremamente espirituoso apesar de todas as mazelas, ele deixou falas como:

“[…] As estrelas são um espetáculo gratuito: não custa nada usar os olhos.”

“Bem, a gente tem de se interessar por alguma coisa. Só porque um homem vive na rua não significa que não possa pensar em algo mais do que chá-com-duas-fatias.”

Depois de bons dias vivendo em busca de restos de tabaco pelas calçadas, se alimentar de chá e duas fatias de pão como refeição principal do dia e caminhar milhas e milhas pela cidade buscando albergues² baratos para dormir, os patrões do prometido emprego retornaram e foi possível deixar as ruas.

Ao fim desta vivência, Orwell propõe reflexões muito diretas sobre o que a pobreza faz com a personalidade, não irei falar sobre todas pois acredito que esta é a parte mais relevante na narrativa e não quero estragar leituras futuras. Para quem já leu outras obras do autor, a leitura deste livro é indispensável, a experiência relatada certamente influenciou bastante sua visão de mundo que embasou seus ensaios e livros nos anos seguintes.

Em desfecho, não posso deixar de dizer a forma como a escrita deste livro dialoga com uma de suas reflexões mais importantes, ao optar por uma escrita direta e sem apelos emocionais fortes, Orwell se expressa de forma quase indiferente em certos momentos que deixariam qualquer leitor chocado. Analogamente, muitos dos que vivem na pior precisam conviver com dois tipos de indiferença, a das outras pessoas perante sua condição e a sua própria indiferença quanto ao amanhã. Se o mais curto horizonte de tempo se faz incerto, que diferença faz o presente? Quando não se sabe se haverá comida ou um teto para o amanhã, muitas das questões do presente se tornam irrelevantes e emerge um senso de desprendimento de certas convenções sociais.

1 — Um curioso fato da narrativa é a exposição das condições sanitárias deprimentes das cozinhas francesas, apesar de toda fama da culinária local, os bastidores não eram tão louváveis assim.

2 — A condição dos albergues de Londres eram deploráveis. Em alguns as pessoas dormiam no chão seco, em outros a cama era mais macia, mas fria. O mais chocante foi o que os mendigos dormiam em um banco em frente a um fio onde poderiam apoiar os braços e repousar a cabeça, mas às 4h o “camareiro” cortava o fio e se divertia com seu show de sadismo.

Este texto faz parte do projeto Revista Jabuticaba e se insere na seção dedicada a análises e resenhas de livros e outras obras.

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João A. Leite
Revista Jabuticaba

Mineiro e bacharel em ciências econômicas pela UFJF. Externalizo aqui alguns pensamentos, análises e reflexões que ebolem na minha mente inquieta.