Rede Tamanduá — Uma experiência de desenvolvimento local

Ana Letícia Pastore
Revista Jabuticaba
Published in
6 min readJul 23, 2020

Ao se falar em desenvolvimento regional, estratégias de desenvolvimento local são partes coadjuvantes e essenciais.

Imagine uma estratégia que consiga integrar o rural ao urbano, agricultores, ONGs, movimentos sociais e Universidade? Tudo isso utilizando tecnologias sociais aliadas ao conhecimento popular?

Em Governador Valadares, estas estratégias foram colocadas em prática no projeto nomeado: Rede Tamanduá de Prosumidores Agroecológicos. O conceito de “prosumidores” é simples, retratam os consumidores que são pró-ativos no seu consumo, que se interessem pela origem e a forma de cultivo do produto, neste caso, o alimento que consomem. A palavra “rede” representa a atuação de prosumidores, agricultores, técnicos e universidade em conjunto e a palavra “agroecológicos” está relacionada modo de viver dos agricultores, sendo todos agricultores familiares agroecológicos.

Antes de entrar em detalhes sobre o funcionamento do projeto, é importante relembrarmos um pouco as características socieconômicas de Governador Valadares, assim como alguns elementos históricos do local.

A cidade

Conforme dados do IBGE, a população estimada em 2019 foi de 279.885 pessoas, sendo a 9ª cidade mais populosa do estado. Localizada no leste de Minas, Governador Valadares é a cidade polo do Território Médio Rio Doce.

Mapa das regiões de Minas Gerais. Ao leste, no Vale do Rio Doce está localizada Governador Valadares.

Com PIB per capita equivalente a R$ 20.957,24 (213º no estado) e salário médio dos trabalhadores formais igual a 2,1 salários mínimos, a cidade ainda possui 35,3% da população com ganhos inferiores a 0,5 salário mínimo. Dados que demonstram a vulnerabilidade econômica da região.

História

“- Moço, esse rio tem dono?
- Não..
- Intonce, por aqui eu me fico — arrematou o “pau-de-arara” sem se dar por achado com as risadas da roda de comerciantes onde fizera a estranha pergunta.
E ficou mesmo. Ele e milhares de outros, toda uma região de escorraçados do latifúndio e de tangidos pela seca do Nordeste dramático. Haviam descoberto uma terra onde os rios não tinham dono. Matas imensas a perder de vista, frondosas como o quê. Água em cada quebrada. E sem dono. Sem dono o rio, sem dono a terra.”

Em sua colonização, na década de 40, a região contou com a presença de famílias designadas, hoje, como agricultores familiares. Como descrito no trecho acima, retirado do livro “Nas terras do rio sem dono”, de Carlos Olavo da Cunha, os novos moradores das margens do Rio Doce desejavam apenas um lugar para exercitarem seu ofício: o campesinato.

Não tardou para que a história do Vale do Rio Doce se juntasse a tantas outras histórias de regiões do Brasil e abarcasse em seu curso a grilagem e a expulsão dos camponeses da terra. Com isto, o desflorestamento, a monocultura e a pecuária passaram a ser predominantes na região.

Todas essas informações são essenciais para que a Rede Tamanduá seja compreendida não somente como um circuito de comercialização, mas sim como uma estratégia de integração, desenvolvimento local e, sobretudo, de resistência camponesa.

A Rede Tamanduá de Prosumidores Agroecológicos

Alimentos etiquetados para que se possa saber sua origem e a família agricultora. Fonte: acervo institucional

Fundada no início de 2018, a Rede Tamanduá era um sonho antigo dos agricultores familiares da região.

“Os agricultores diziam que queriam trabalhar com entregas de cestas, haviam muitos produtos que eles não conseguiam inserir no mercado tradicional, porque, muitas vezes, pro mercado convencional não tem valor”

Como dito por uma das integrantes na idealização e execução do projeto, a Rede Tamanduá visava, sobretudo, a comercialização de produtos não convencionais para o mercado. Aqueles cultivados nos quintais e hortas familiares, sem o uso de venenos e adubos químicos.

E por falar em veneno, as famílias integrantes do projeto partem de princípios estritamente agroecológicos, que não serão abordados com profundidade agora, mas que vão além do uso de veneno, tratam também do trabalho justo e solidário.

Reila e Raquel, prosumidoras da Rede Tamanduá. Fonte: acervo institucional

Uma parceria entre agricultores, o Centro Agroecológico Tamanduá, a Cooperativa Regional de Economia Solidária (CRESAFA), a Universidade Federal de Juiz de Fora e prosumidores

Desde sua criação, a Rede Tamanduá conta com o apoio de diversos atores: o Centro Agroecológico Tamanduá (CAT), organização não governamental presente na cidade desde 1989, o Núcleo de Agroecologia de Governador Valadares, grupo de extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora/GV, e a Cooperativa Regional de Economia Solidária da Agricultura Familiar. Todas as organizações pelo suporte técnico e científico necessário para execução do projeto.

A integração entre prosumidores e agricultores também é um dos fundamentos da Rede. A importância de saber de onde vem o alimento vai além da etiqueta. Com frequência, são realizados intercâmbios entre agricultores e prosumidores.

Em datas agendadas, os prosumidores são convidados a visitarem a propriedade rural de uma família parte da Rede, onde é possível conhecer melhor quem são os agricultores, para além do responsável pelas entregas, a forma de plantio e, certamente, tomar um café com biscoito.

Não existem pré-requisitos para ser um prosumidor da Rede Tamanduá. O controle é feito dada a limitação física e técnica das organizações responsáveis e, por isso, o projeto tem, atualmente, cerca de 150 prosumidores cadastrados. Já as famílias agricultoras já foram e ainda são assistidas pelo Centro Agroecológico Tamanduá.

Funcionamento

Nesse momento você deve estar se perguntando: afinal, o que é a Rede? É uma feira?

É quase!

Brincadeiras à parte, a Rede tem o seu método de funcionamento inspirado no funcionamento de outras redes de produtos agroecológicos. Todas as semanas realiza-se a atualização da planilha de produtos, nela os agricultores dizem o que tem, o que deixaram de ter e o que há de novo para a próxima semana. Feita a atualização junto aos agricultores, a planilha é enviada para os e-mails e grupo de WhatsApp dos prosumidores, que enviarão os seus pedidos pelos mesmos meios alguns dias depois.

Ao final do prazo, todos os pedidos são tabulados pela equipe técnica do CAT e repassados para os agricultores, que levarão todos os pedidos na quarta de manhã, que serão entregues no mesmo dia à tarde aos respectivos prosumidores.

Ronaldo Coelho, agricultor familiar. Fonte: acervo institucional.

A importância dos circuitos curtos de comercialização durante a pandemia

Sendo um circuito curto de comercialização, a Rede Tamanduá se tornou essencial para muitas famílias durante a pandemia, já que beneficia as famílias consumidoras, que têm a garantia de um produto comercializado por um intermediário (imagine quantos intermediários são necessários para que uma maçã do Sul do país chegue à gôndola do supermercado), ao passo que garante mercado para os agricultores familiares, excluindo a necessidade de vendas de porta em porta, na rua ou até mesmo para o mercado convencional.

Ao se falar em desenvolvimento, não falamos apenas de geração de renda, falamos de acesso à alimentação de qualidade por um preço justo, de valorização do trabalho, de liberdade e direito à terra.

A Rede Tamanduá reflete os princípios dos movimentos de agricultores familiares. Para além de um projeto que deu certo, a Rede nos mostra a importância da atuação de diferentes instituições em prol do desenvolvimento. Trocando em miúdos, a parceria entre ONGs, universidades e poder público são primordiais para que projetos de desenvolvimento local e regional sejam viáveis.

Vídeo sobre a Rede Tamanduá.

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Esse texto faz parte do projeto Revista Jabuticaba.

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