A exploração relativa esgotada e a absoluta como forma de restruturação do valor

O esgotamento da exploração capitalista

Atanásio Mykonios
Revista Krinos
20 min readNov 28, 2016

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Quanto mais o capitalismo caminha para o seu colapso, mais se tem a noção, por parte da maioria da população e até de parte significativa dos teóricos e críticos do capitalismo, de que ele permanecerá como um fim em si mesmo, que em seu movimento de sobrevivência desenvolve o movimento de retorno a si por meio das condições de reprodução infinita de seus mecanismos. Por outro lado, o aparente crescimento do dinheiro sem qualquer lastro, que se alastra pelo mundo em forma oficial de capital como investimentos, créditos, dívidas, especulações, cria a convicção de que o capitalismo se torna ainda mais forte e inexpugnável. Essa convicção é compartilhada especialmente por parte considerável da esquerda e por parte daqueles que, de alguma forma, continuam como críticos do capitalismo, mas sem, no entanto, se colocarem como anticapitalistas.

Os lucros dos bancos, das financeiras e dos especuladores, o aumento da riqueza monetária nas mãos de um grupo seleto de famílias e pessoas no mundo, os crescimentos das bolhas financeiras e da dívida pública significam que o capitalismo está mais forte e decidido a continuar a sua progressão rumo à sua condição absoluta? Apesar de que o sistema do capital não alterou a sua lógica de funcionamento interna, à medida que continua o mesmo no modo de produção estrutural, podemos afirmar que está em rota de colisão, seguindo os passos de sua autodestruição?

Afinal, o capital está crescendo ou encolhendo?

O que cresce não é a massa de valor capaz de sustentar o volume abstrato de capital, do dinheiro em si como expressão deste. O que cresce efetivamente é uma parte do mais-valor que se realiza na forma de juros sobre juros e não a efetividade das condições de produção de valor que só é possível por meio da exploração da força de trabalho.

Significa dizer que em parte o capital cresce não como substância da exploração e sim como elemento inercial. Proporcionalmente, a parte do mais-valor que se realiza no mercado das mercadorias está decrescendo em virtude a capacidade da elevação da produtividade do sistema. Em termos quantitativos, o volume de juros aumenta, pela prática do crédito que agora está encastelado na dinâmica das dívidas públicas. Aumentam também os lucros, mas a base sobre a qual esses elementos do mais-valor se colocam está diminuindo rapidamente. Significa dizer que os lucros e os juros, num exercício metafórico, numa base de cem são maiores do que numa base de cinquenta. É necessário arrancar com mais voracidade e rapidez mais lucros e juros da base de produção de valor. Assim, os lucros e os juros passam a representar boa parte, de modo visível, da base do valor, dando a impressão de que o capitalismo é essa realidade que aparece, até que os lucros e especialmente os juros abocanhem a base, obnubilando a real forma do valor que é o seu modo de produção. Quando isso ocorrer, o sistema produtor de mercadorias chegará ao seu limite, as mercadorias como expressão individual de sua condição, deixarão de serem produzidas, porque o valor global perderá sua própria substância. O dinheiro será o dinheiro absoluto numa estrutura social onde não haverá possibilidade de fazê-lo cumprir a sua destinação, apenas será o dinheiro pelo dinheiro, sem valor algum, como expressa Robert Kurz a partir do título de seu livro Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política.

A área estrutural do valor está diminuindo. O aumento relativo do mais-valor como condição de expansão técnica do sistema de mercadorias requer que, em algum momento, a exploração relativa do valor seja retomada no patamar da exploração absoluta, necessária para recompor o mais-valor das condições reais de sua sobrevivência. Em outras palavras, a estrutura de produção social do valor, por conta da concorrência universal, espalha a exploração relativa em virtude da condição de manutenção dos concorrentes no mercado das mercadorias. Mas, ocorre que para fazer valer a base como estrutura que garante a realização do mais-valor, o sistema volta a extrair de forma absoluta o valor, de modo que somente nesse sentido é possível encontrar mecanismos para que a base se amplie. A metáfora apresentada por Kurz (2014), que apresenta o valor como uma área sobre a qual o mais-valor deve, necessariamente, se realizar, é muito interessante.

(…) a quota-parte relativamente maior de uma área deixa de ser uma vantagem em termos de área se a própria área diminuir de tamanho de um campo de futebol para o de uma base de cartão para um copo de cerveja. (Kurz, 2014, p. 253)

São as forças produtivas que determinam as condições do capital como valorização do valor, em forma de volume de dinheiro que se multiplica, o acúmulo de que lhe é a sua função histórica, mas não o contrário. O capital global não consegue reverter a situação de seu acúmulo sem lastro, uma vez que não encontra mais as formas de retomada da produção do valor a partir da exploração da força de trabalho. O capital global é forçado e aumentar a produtividade com velocidades cada vez maiores e, por conseguinte, empurra a estrutura universal concorrencial à destruição do próprio sistema que, por outro lado, deve garantir as condições gerais de produção.

A exploração relativa, que implica a realização do mais-valor em caráter também relativo, tem como pressuposto, ampliar as formas de ganho por meio da extração social e global do valor. O mais-valor relativo implica que a esfera do processo produtivo entra numa fase de contradição insolúvel, dado que é da sua lógica e natureza mover-se com esse propósito. O problema, como foi dito acima, é que a partir de um determinado momento do desenvolvimento das forças de produção, para reagrupar o capital com lastro, a exploração absoluta se torna necessária. Mas é exatamente aqui que reside a sua contradição de morte. É por isso que os lucros e os juros sobem no interior de uma área que está diminuindo rapidamente. E é ainda por isso que obrigatoriamente os ganhos aparecem como a única expressão desse fenômeno estrutural. Essa área não suporta a própria forma de crescimento e, por isso, o capital como modo de produção está deixando de existir para se tornar um modo de reprodução automática de sua riqueza material.

É aqui que muitos não compreendem e outros tantos não aceitam o valor como elemento fulcral do sistema social do capital. Não concebem a exploração do tempo excedente da força de trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias. É aqui que o processo de exploração do sistema social do capital não é aceito como causal e sim tão-somente como um processo de efeitos sobre efeitos. Mas mesmo os capitalistas e os gestores contratados que não atentam para esse processo, mostram, com seu comportamento, a necessidade de resgatar o capital em seu lastro com o aumento da exploração absoluta.

É nesse sentido que a luta social agora é travada em torno do último bastião que resta nas relações de fetiche, historicamente determinadas pelo desenvolvimento do capital, agora entendido como capital global, que lança mão do controle dos estados-nacionais. O capital global se agarra com todas as suas forças de ação política, enquanto for possível, para extrair agora dos estados-nacionais as últimas gotas de valor que ainda restam para fazer suportar a parte da área que ainda sustenta, em parte, os componentes do mais-valor.

Mas, contraditoriamente, a transferência de dinheiro dos estados-nacionais para as mãos do capital mundial ainda se dá na forma de fluxo sem lastro seguro. Ao contrário, o sistema flutuante continua a ser nutrido com volumes astronômicos que aumentam ainda com mais significância o capital fictício. Há um duplo caráter desse movimento. De um lado o esforço descomunal de arrancar mais-valor e sobre este, os lucros e os juros, num movimento intenso que se multiplica em progressão geométrica. De outro lado, a luta política para pressionar o mercado da força de trabalho a fim de conseguir deste o tempo necessário a mais que configura a base estrutural do valor.

Trata-se de garantir a área sobre a qual o mais-valor se realizará. Os economistas liberais, os economistas marxistas e pós-marxistas parece não compreenderem esse processo que é crucial para a manutenção do capitalismo como sistema social de produção de acúmulos. Também se esquecem ou ignoram do fato de que:

Só a força de trabalho produz valor novo como contributo para a massa de valor global produzido pela sociedade, repartindo-se esta entre os custos da reprodução (em termos de valor) da própria força de trabalho e a mais-valia. É por isso que a força de trabalho é variável como componente do capital no que diz respeito à criação de valor, ou seja, produz mais valor do que custa. (Kurz, 2014, p. 250)

Talvez um dos aspectos mais difíceis de reconhecer é que a força de trabalho é a única que de fato gera mais valor, ou, gera, necessariamente, mais valor do que custa, por isso está no campo do capital variável. Mas à medida que o capital libera a si para a exploração relativa para a realização do mais-valor, entra em rota de colisão consigo mesmo. A exploração relativa ao mais-valor amplia consideravelmente o capital sem lastro, mas em função das forças de produção, para ganhar o mercado contra os concorrentes só é possível por meio da implantação de novas condições de produção. Podemos dizer então que há um determinismo histórico das forças de produção e se o capitalismo quisesse se manter como produção lastreada do valor, só seria possível se garantisse a exploração absoluta ou eliminasse a estrutura concorrencial que lhe caracteriza como condição de possibilidade real de realizar-se como capital.

Assim, para garantir a valorização do valor, mantendo uma área segura, onde se amplia o mais-valor como expressão real do capital, a experiência do capitalismo de Estado se torna uma possibilidade favorável. A reorganização do capital com lastro confiável parece ser apenas possível na exploração absoluta para a realização do mais-valor. Mas como esperar que isso ocorra, até mesmo no campo da política, uma vez que um dos elementos constitutivos do capital global é a livre concorrência entre os contendores da própria produção global?

As conquistas práticas de distribuição da riqueza material e das formas de justiça social para com aqueles que sempre estiveram oprimidos nos interiores dos países, foram possíveis a partir da tomada do poder central dos e nos estados-nacionais. Deveram-se, sobretudo, às condições de ampliação da exploração relativa que liberou fatias do capital global que puderam ser aplicadas para a justiça material, gerando uma capitalização dos estados-nacionais que aproveitaram as condições gerais de valorização do capital. Contudo, é preciso também, na esteira desse processo histórico, considerar a retomada da produção de valor em escala interna, notadamente no Brasil.

A capacidade produtiva no Brasil seguiu o desenvolvimento das forças produtivas e somente por meio do crédito ampliado a indústria de transformação pôde garantir o escoamento de mercadorias, fortalecendo um ciclo aparentemente virtuoso nas condições internas do capitalismo. Porém, as forças produtivas locais não estão alijadas do processo de decadência do valor em âmbito global. É o sistema global que agora cobra a conta desse aumento de crédito que aparentemente alavancou a estrutura produtiva. Mas é preciso ressaltar que não foi por meio da ampliação da base do valor e sim por meio do financiamento da produtividade.

Uma vez que o mais-valor relativo não é capaz de nutrir a base do valor, a tendência estratégica dos gestores do capital parece indicar a tentativa de retomada das formas de exploração absoluta a fim de reverter o quadro de destruição do capital global que se sustenta por meio do aumento fictício de si mesmo. E o Brasil está no meio do caminho, é preciso retomar a exploração com base no tempo excedente de trabalho vivo.

Aqui estamos diante de mais um problema insolúvel para o próprio capital global. Retomar a composição orgânica social e global do capital por meio da exploração absoluta, ampliando as condições de extração do tempo real da força de trabalho, redunda num ato desesperado para reconduzir o capital à sua forma original. As chamadas flexibilizações, na esfera jurídica, para o controle da força de trabalho global nada mais são do que tentativas hercúleas do próprio capital em manter-se sustentável. A lógica concorrencial impedirá que as medidas de flexibilização dos direitos trabalhistas, a redução dos salários, o congelamento dos investimentos dos estados nacionais, etc., encontrem um porto seguro para a retomada da ampliação do valor. A exploração absoluta é, ao mesmo tempo, a única alternativa de retomada orgânica do capital, também é o caminho para a própria destruição do capital, dada a realidade em que se encontra, uma vez que a estrutura de produção de mercadorias não admite mais que a massa de trabalhadores volte à origem dos processos de transformação da matéria. Atualmente, no Brasil, por exemplo, aproximadamente 83% a 85% dos trabalhadores se encontram distantes da indústria, em um universo de empregabilidade nos setores de serviços, comércio, estatal, terciários, etc. O restante dessa massa de trabalhadores não domina as forças de produção nem os meios de produção, apenas conduz com enfermeira das máquinas que produzem por meio dos aparatos de informação e da microeletrônica.

Essa massa de força de trabalho não pode ser reempregada nas esferas produtivas diretas, a não ser que o capitalismo regrida a estágios iniciais de produção quase manual para promover a retomada do valor em patamares confiáveis. A inovação que comporta a produção das mercadorias exige sempre mais adequações qualitativas para fazer frente às demandas concorrenciais. Para isso, seria necessário que o capitalismo abrisse mão das condições universais da concorrência e rumasse para uma espécie de monopólio das empresas e corporações, isto é, caminhasse para a constituição de uma única empresa global sem concorrentes e sem equivalentes para o mercado das mercadorias.

Ironicamente, a resposta pode estar no socialismo ou no dito capitalismo de Estado, mas como garantir as condições ideais da realização e reprodução do mais-valor sendo que a reorganização do capital não se faz por meio de instrumentos internalizados de suposta competência de cada nação, como se houvesse uma espécie de capitalismos nacionais que seriam plenamente autônomos para reconduzir seus próprios capitalismos a uma origem confiável? Como sistema social é, também e imprescindivelmente, um sistema mundial que atravessa as fronteiras nacionais, transcende-as. A mercadoria como expressão das relações sociais, o dinheiro e os capitais deixaram de ter fronteiras rígidas, a transnacionalização é a sua forma atual. Além do mais, não podemos tratar o capitalismo a partir de capitais individuais, empresas individuais, capitalistas individuais, mercadorias individuais nem de trabalhadores individualizados na estrutura social abstrata. A quantificação do valor não pode ser realizada singularmente, é um processo social constitutivo das condições abstratas de sua realidade universal.

O capitalismo não pode ser entendido como um sistema preso a fronteiras nacionais. Seu processo histórico em seu movimento tinha como determinismo a sua ampliação como totalidade das categorias internas que se articulam organicamente, numa expansão contínua e espiralada. Ainda pelo fato de que o mais-valor contém em seu interior o lucro, a realização dos juros e a renda da terra, compreendida esta como renda das áreas espaciais da produção de mercadorias. Mas seu conteúdo fundante permanece o mesmo, caso contrário, não pode sequer se auto-reconhecer como sistema de capital e acúmulo. Além dessas considerações, faz-se imprescindível ressaltar que o capitalismo é uma forma industrial de exploração. A produção de mercadorias só foi possível, como forma social ampliada, na indústria que estrutura o modo capitalista de produzir. Sociedades rurais pré-capitalistas não possuíam os mecanismos de exploração em escala de valor social.

Com isso, a autocontradição das bases do capital revela que a área de valorização do valor se perde em si mesma como fonte substancial de sua própria identidade. O capitalismo teve um fôlego extra ao ampliar a sua capacidade de transformar todos os espaços e brechas sociais e culturais na forma social da mercadoria. A terra foi transformada em um imenso bloco de produção de mercadorias, a expansão parecia inesgotável. No entanto, o limite chegou e se apresenta de uma forma trágica e desesperadora em todos os graus da sociabilidade capitalista. Os mecanismos de compensação exterior com os quais o capital se valeu para ampliar o valor e a rentabilidade do capital também foram esgotos no automovimento espiralado do capital que ao crescer para além da sua capacidade de prover equivalência, entra numa contradição insolúvel.

Nestas condições, a autocontradição de base que, também no que diz respeito ao desenvolvimento das forças produtivas, ainda cozia, por assim dizer, em lume relativamente brando, podia ser compensada por uma expansão estrutural e espacial, pois as restantes condições não se mantinham constantes; a massa pura e dura de dispêndio de capital monetário adicional aumentava de forma incessante, à medida que o capital desbravava terreno em todos os ramos produtivos e “capitalizava” o espaço terrestre neste sentido histórico, ou seja, transformava-o num espaço global da valorização. Embora o dispêndio de energia de trabalho por mercadoria diminuísse incessantemente, o número de efectivos da força de trabalho aplicados de uma forma produtiva na perspectiva do capital crescia, ainda assim, de forma contínua, devido a este movimento expansivo exterior. Através apenas de uma tal expansão permanente, o aumento da mais-valia relativa por elemento da força de trabalho também impulsionava adicionalmente a produção de mais-valia no que diz respeito à sua massa absoluta, que parecia crescer até alcançar dimensões monstruosas. Um parênteses: Rosa Luxemburgo reduziu o problema à mera “realização” em vez da produção da massa de mais-valia, o que também para ela toldou o verdadeiro modo como tudo se articula (que permaneceu fundamentado na ontologia do trabalho); não obstante, apercebeu-se do movimento expansivo exterior como verdadeiro mecanismo de compensação. (Kurz, 2014, pp. 258–259)

O aspecto mais importante que é possível inferir das palavras de Kurz, dizem respeito à imperiosa necessidade de expansão do capital que ainda prevalece como condição sine qua non. O capital exige de si e dos estados-nação que seu produto interno bruto cresça continuamente. A estagnação redundará no fim do automovimento do capital para a sua autovalorização, exatamente porque o capital global só tem esses estados nacionais para sugar valor como elemento de equivalência da bolha. É por isso que o aumento da dívida pública mundial é uma estratégia do capital para manter-se vivo em meio aos próprios frangalhos provocados por ele. O capitalismo, em seu atual estágio, gera a crença de que é possível recuperar as economias nacionais por meio de mais extorsão do tempo da força de trabalho. Marx havia percebido que a introdução do trabalho morto seria um elemento destrutivo ao longo do seu histórico desdobramento, mas necessário para o desenvolvimento das forças de produção que se compunham por meio da concorrência universal. Ironicamente, seria mesmo o caso de defender com unhas e dentes a necessidade concorrencial como função elementar do capitalismo em seu caráter fenomênico — na relação entre oferta e demanda.

O mais-valor subtraído pode ser um elemento de restauração do capital global. Isto significa que, em grande medida, observa-se um retorno a uma espécie de empregos voluntários, no sentido de destruir a inclusão não exatamente social, mas a exclusão na inserção do mercado de mercadorias, contribuindo com uma parca produção de valor. Isto é, trabalhar sem salário, um retorno a um período de acumulação primitiva. Se o capitalismo volta a retroceder e ruma para uma exploração absoluta e até mesmo no sentido do não assalariamento, indica, sobretudo, que o retrocesso é mais um sinal evidente de que está rumando para o seu colapso.

A tendência política e jurídica de aumentar a exploração pode, num primeiro momento, satisfazer as análises naturalizadas do capital por parte de seus críticos superficiais. Dizem que se trata da infinita capacidade de o sistema do capital em se reinventar. Mas não conseguem perceber de forma crítica negativa que o sistema está invariavelmente sem saída para ampliar a sua autovalorização. Empregar massas de jovens que se formarão em cursos técnicos precários para alistá-los no exército dos trabalhadores manuais pode, também, por um determinado tempo, muito curto, angariar condições para a manutenção da base do valor, mas os saltos tecnológicos são inevitáveis para o próprio sistema do mercado das mercadorias.

O suposto fato, até entendido como construção histórica, de que o capitalismo vive da selvageria em explorar até a morte os seus trabalhadores, pode não ser sustentável nem mesmo como argumento moral. A exploração absoluta ou a relativa têm como função fornecer a estrutura funcional e sistêmica para que o capital continue a produzir valor. A luta não é por maiores ou menores salários, mas é sobre o controle político do tempo da força de trabalho. Os lucros se tornaram a única fonte da crítica negativa ao sistema do capital, cujos críticos entendem imoral o volume de lucros amealhados, como uma espécie de “roubo”, lucro este que pode ser revertido em forma de melhores salários aos trabalhadores. Ou na forma de dinheiro puro para a compra e acesso à aquisição de mercadorias. Este é um dos pontos nevrálgicos do modo capitalista de produção. Dessa forma, a dimensão dos salários não se deve a um cálculo econômico particular, entre capitalista individual e trabalhador singularizado no ato do contrato de trabalho. Trata-se de uma relação social, de um processo social, como bem Marx apontara nos Grundrisse e n´O Capital. Nesse sentido, a força de trabalho também é uma mercadoria, e deve assim ser tratada pelo capitalista. A troca de valor entre a força de trabalho e as demais mercadorias é que formaliza a condição abstrata do dito trabalho no sistema social do capital. Lucros maiores ou menores não se revertem em melhores condições para os trabalhadores. Na relação entre a força de trabalho, na sua venda ou aluguel, para as forças de produção, pode haver desequilíbrio, pendendo a balança contra o capital, mas isso não significa que se houvesse um desequilíbrio absoluto em favor da força de trabalho o capital desapareceria. A massa de salários e ganhos se superasse a massa de mais-valor do capital se tornaria o próprio capital e seria obrigado a manter-se na mesma lógica para expandir a si mesmo como valor e mais-valor. A questão é como destruir o modo de produção para o qual a humanidade inteira está envolvida, como exploração e como reprodução automática. O sujeito automático não se dá conta das relações de fetiche que caracterizam a dinâmica social. Com isto, o aspecto relevante não é ao final e ao cabo, o percebimento de ganhos ou de subtrações de salários, a riqueza material é produzida, no entanto, ela é absoluta e injustamente distribuída não em função dos lucros, mas pelo modo de exploração que implica a segregação social em virtude da divisão da força de trabalho na extorsão do tempo excedente.

Não há nada de inocente no desenvolvimento e na dialética das categorias do capitalismo, elas se fazem continuamente para ampliar o próprio sistema, o que importa não é o trabalho nem o consumo de mercadorias nem mesmo a divisão social do trabalho, mas o trabalho abstrato como forma social cega e automática.

No seu decurso, as técnicas, disposições dos meios de produção, organizações de processos, etc., são adaptadas, ou seja, alienadas de sua finalidade ligada à satisfação de necessidades no sentido da produção de bens de uso (…). esta transformação traduz-se, por um lado, no desenvolvimento das forças produtivas, mas sob o ditame da “riqueza abstrata”, no desenvolvimento simultâneo das forças destrutivas e na sujeição crescente do material humano à forma do “trabalho abstrato” não imediatamente visível de forma empírica (no marxismo vulgar, esta sujeição objetiva é confundida com uma sujeição subjetiva à pura vontade de poder e exploração da classe capitalista). (Kurz, 2014, 261)

A única necessidade do capital é este mesmo, para ser o que é, apenas por meio da produção de valor. A expansão e a contração de suas condições se dão em função da forma e não exatamente do conteúdo. A forma tem de manter o conteúdo, em medida exata, é o conteúdo que dá à forma a sua identidade, entendida aqui como forma social. No conteúdo está o mecanismo, a lei que impele o sistema à sua expansão. Mas eis que a partir de um determinado ponto histórico de seu desenvolvimento, a forma e o conteúdo entram em conflito, a aporia surge como expressão da autocontradição de sua estrutura. É por isso que em determinados momentos de sua história, as ações e medidas tomadas nos dão a impressão de que é possível conquistar direitos e uma vida material com razoável segurança social. Para fazer a riqueza abstrata valer como imposição imperiosa, o sistema cria formas de distribuição da riqueza material que não corresponde nem equivale à massa de recursos gerados para fazer o sistema produzir valor. É por isso que se trata de uma sociedade que ignora o fato de que uma abstração de cunho social, ou dito de outro modo, uma metafisica real ou mesmo uma tautologia social comanda a totalidade social, mundial. Por outro lado, a frenética ação para extrair mais tempo da força de trabalho, empurrando a sociedade para o poço da exploração absoluta não garante de modo algum as condições de realização do valor.

Alguns aspectos do entendimento

Pouco a dizer além dessas considerações e do tecido do texto que implica a abordagem do papel histórico do movimento do capital entre a exploração absoluta e relativa, que se imbricam continuamente numa dialética das formas do próprio capital. O capital, como um sujeito histórico das relações de fetiche, não encontrará saída para si mesmo, nem mesmo um elemento equivalente com o que possa trocar a si a fim de que permaneça capital. Os interesses políticos atuais não estão apenas com o objetivo tomar o controle dos recursos naturais ou vender empresas e serviços estatais a preços baixos para as empresas, corporações e transnacionais, o capital avança para retomar a sua capacidade de valorização. Inconscientemente, o capital vai em busca de sua própria sobrevivência, o que significa que tentará expropriar ainda mais tempo da força de trabalho a fim de dar o substrato para dar o lastro de que necessita. O volume fictício de dinheiro se tornou a única alavanca do capital. Os estados nacionais parecem estar no ápice dessa crise, estão sendo sufocados pela avalancha das pressões para a recomposição orgânica social do lastro necessário. Alguns já em franca decomposição. Outros em vias de se transformarem em agências eficientes do aparato jurídico para a condução desse processo. Por outro lado, a necessidade de trabalho vivo que parece ser colocada como mecanismo de retomada é um elemento da autocontradição do capital. Aumentar o tempo da exploração, a exploração absoluta também não se reverterá em benefícios para o aumento do lastro, como pudemos observar neste pequeno texto crítico. Todas as ações do capital como forma política e jurídica não fortalecerão o próprio sistema, ao contrário, demonstram francamente a sua total destruição, mostrando que o movimento para si mesmo revela-se autodevorador de sua sociabilidade. Não há soluções mágicas nesse sentido, é preciso também reconhecer que as forças históricas não estão plenamente dadas para a superação do sistema do capital, uma vez que estamos todos, ainda, em seu interior, e este se mostra a totalidade das condições de produção e reprodução sociais.

O capitalismo ainda parece continuar a funcionar como um modelo acabado. A sociedade encurralada não se dá conta de que este sistema social global está ruindo por todos os lados. Mas para a consciência social, até mesmo dos teóricos, não é mais preciso saber o “modo” de produção, como, em última instância ele funciona. Basta que tenhamos apenas o entendimento acerca do produto fenomênico do capital que é moralmente detectável, a saber, o lucro, desta forma tudo segue seu curso e para tanto, será apenas uma questão de tempo para que os trabalhadores encontrem, ou venham a encontrar (se é que encontraram e o perderam) o conhecimento do processo social do fetiche da mercadoria e as ações estarão prontas no cardápio da história. Não se quer, por outro lado, admitir que o sistema social do capital ingressa definitivamente próximo de seu limite estrutural, limites externo e interno, talvez porque as esquerdas, de modo geral, ainda creiam na possibilidade de intervenção por parte da classe trabalhadora em reverter o capitalismo ou de superá-lo em definitivo com a ação concreta, mais precisamente, com a intervenção que possa mudar os rumos do capitalismo.

A próxima crise global do capital em que as bolhas financeiras explodirão poderá explicar em parte o real sentido do rumo à crise total ou rumo ao limite absoluto do capital. Tratar-se-á de mais um sintoma das causas profundas da crise de produção de valor, mas mesmo assim, o espectro crítico não atentará para o aspecto estrutural dessa crise que se avizinha com mais radicalidade. A compreensão mais clara do problema relativo à crise e suas causas é de extrema importância, um dos aspectos que deve saltar para a ação é a estratégia teórica de disseminar a lei do valor e as implicações do ponto de vista da crítica radical. A teoria é um ato político por excelência. No cario atual, perpetrar um movimento teórico talvez seja um dos poucos movimentos para apresentar com profundidade as questões relativas ao valor. Mas, observa-se, por outro lado, que muitos dão de ombros ou mesmo se ofendem com a apresentação da crise radical do sistema do capital. Como um círculo vicioso, agora o sistema entra no caminho sem retorno de seu desastre fatal, mesmo assim, encontram-se por todos os lados a mesma cantilena de que o capital tem uma infinita capacidade de reinventar.

Referência Utilizada

KURZ, Robert. Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Tradução de Lumir Nahodil. Lisboa: Portugal, Antígona, 2014.

Atanásio Mykonios é graduado em Filosofia, mestre em Filosofia Social e doutor em Ciências Sociais. É também professor adjunto na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), fundador e pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia) e editor e articulista na Revista Krinos.

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