Breve Introdução ao Pensamento Calculante I

Ou de como nos tornamos coisas

Ana Lucia Tersariol
Revista Krinos
7 min readMay 15, 2016

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Kumi Yamashita

O “pensamento calculante” é uma definição de Heidegger que, em várias ocasiões, identificou no pensamento ocidental uma tendência ao cálculo e uma redução de todo o pensamento ao pensamento computacional. Parece que sabemos fazer apenas contas, ver o mundo somente sob o perfil de lucro. A potência desse pensamento é de tal forma forte que hoje já não sabemos o que é bonito, o que é feio, o que é verdadeiro, o que é santo, porque somos imediatamente atraídos por aquilo que é útil.

A razão calculante nasce no âmbito econômico, como reguladora do comércio, como “prestação de contas”, “redde rationem”, mas sua origem precede as relações econômicas. Antes dessa relação de equivalência, dessa proporção (razão — “ratio”), existia uma “troca simbólica” que foi sendo substituída pelo “redde rationem”, aos poucos, a subjetividade cede espaço ao valor das coisas trocadas, a razão ocupa os espaços dos símbolos. Isso é uma das bases do pensamento ocidental, mesmo antes de surgir a economia de troca. O pensamento filosófico já advertia para não se confiar nas certezas sensíveis, para não usar a subjetividade no raciocínio.

Platão dizia claramente que não podemos construir um saber se nos referimos às sensações corporais, porque o corpo se transforma, adoece, sofre mudanças, cresce, envelhece, e se fôssemos construir um conhecimento sobre o corpo, aparentemente, não chegaríamos a um conhecimento universal. Esse desdém em relação ao corpo de Platão não é de fundo religioso ou ascético; origina-se no fato de que o corpo não fornece fundamentos para uma verdade objetiva, os sentidos não garantem um conhecimento universal.

Precisamos, assim, abstrair, prescindir do sensível e das doxas se desejarmos construir um saber objetivo; e dar preferência aos números e às ideias.

É sábio escutar não a mim, mas ao verbo [ logos] que em mim fala que nos é comum”. Heráclito.

O segundo salto dessa abstração na qual estamos encaminhando no cenário do pensamento calculante é representado pela ciência. Em 1600, quando nasce a ciência que chamamos de “moderna” ou “matemática”, Galileu acentua a intenção de Platão afirmando que para se fazer ciência seria preciso traduzir todas as “qualidades” em “quantidades”. A água mineral não é a água da torneira, a água da torneira não é água do rio, a água do rio não é água do mar. E, então, se fôssemos nos referir às águas como encontrada na natureza, nós não conseguiríamos construir a ciência. De acordo com o exemplo da água, temos que defini-la como “H2O”, sua fórmula estrutural, universal. Assim é necessário abandonar o cenário das qualidades para a determinação quantitativa das coisas, porque só o valor pode ser calculado e apenas com o cálculo se chega a um conhecimento preciso e objetivo, válido para todos.

Não só isso, mas a ciência moderna também realiza outra operação.

Bacon, — o filosofo, não o toucinho — inaugurando a ciência moderna, afirmou que não se deveria mais agir como os antigos gregos, que observavam a natureza para capturar suas constante e, posteriormente, definir as leis naturais. Ao invés disso, os homens deveriam formular hipóteses: em grego, Ypòthesis pode ser lido também como “coisas antecipadas”. Então, nós antecipamos um fenômeno em hipóteses e modelos matemáticos e o submetemos à natureza através de experimentos; se as experiências confirmam a hipótese matemática, então assumimos essa hipótese como leis naturais.

Kant fala dessa operação como de uma “revolução copernicana” e diz que, antes de Galileu e Torricelli, o homem observava a natureza como um estudante que quer aprender alguma coisa com o professor, através de uma “transferência”; Com o nascimento da ciência moderna, o homem age como um juiz, indagando ao réu/natureza para que responda às suas perguntas. Descartes diz explicitamente que o homem, através da ciência, torna-se “Dominator et possuidor”, domina e possui o mundo, através do cálculo, ele reduz a ordem natural às suas hipóteses matemáticas.

Após essa premissa, passamos ao âmbito econômico onde o pensamento calculante desenvolve propriamente suas potencialidades.

A economia, como uma ciência, nasce em 1700 com Adam Smith publicando “A Riqueza das Nações “. A economia executa uma operação muito importante que é a simplificação da leitura do social. Considere o fato de que a economia releva apenas as pessoas detentoras de bens, de propriedades, valores… enquanto os outros, dizia Hegel, de forma bastante dura, são “poeira da história”. Na verdade, Hegel argumentava que o indivíduo se torna “ pessoa” só quando possui bens ou dinheiro, porque só neste caso é socialmente controlável, imputável e punível, podendo ser privado dos seus bens Quem nada possui dificilmente é controlável. Assim, a economia executa duas operações importantes: considerar os homens como titulares de bens e propriedades e, a partir disso, fazer sua leitura do social. Da mesma forma, como a filosofia e a ciência tinham feito antes dela, a economia despersonaliza as relações, pois as regulamentam com base em desempenhos objetivos que serão remunerados. Mas nem sempre foi assim, as relações de troca já foram também estritamente subjetivas.

Para Aristóteles, o dinheiro não poderia produzir riqueza, porque não é um bem em si, mas é apenas um símbolo. O valor do dinheiro se dá por efeito de lei, em grego, “lei” se diz “nomos” e a palavra dinheiro é dita “nomisma”, a saber: algo que vale por efeito de lei. O cristianismo também compartilha essa ideia de que o dinheiro não produz riqueza. De acordo com o princípio evangélico “mutuum desperantes nihil”, ou seja: “Emprestar, sem esperar o retorno”. Por isso era proibida a construção de bancos, conceder empréstimos e a usura. Apenas os judeus podiam faze-lo porque, como deicidas, já tinham sido condenados ao inferno, assim, um pecado a mais um pecado a menos, não faria diferença.

Isso explica, um pouco, porque, até 1200–1300, o dinheiro não era considerado muito importante, como o é na atualidade. Para nós o dinheiro tornou-se o único referencial; quem bem assinalou essa transformação foi Marx que disse que a economia, ao estabelecer o dinheiro como único medidor capaz de valorar todas as coisas, revela-se cheia de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos. Como no âmbito teológico onde Deus avalia todas as ações que nele se refletem para serem julgadas justas ou injustas, possuídoras ou não de valores, o dinheiro se torna o equivalente geral onde todas as mercadorias se refletem. Para Marx o valor das coisas não é determinado pela sua utilização, isto é, pela capacidade que têm de satisfazer uma necessidade, mas é determinado pelo seu valor de troca, ou seja, na sua capacidade de se permutar com outros bens.

Na economia a corporeidade das coisas se tornam irrelevantes, como se torna também irrelevante sua capacidade para satisfazer as necessidades. No entanto, acrescenta Marx, se o dinheiro, ao invés de ser considerado como um meio para satisfazer as necessidades e produzir bens, passa a ser a condição universal para alcançar quaisquer objetivos, ocorre, então, o que em filosofia se chama heterogênese dos fins: aqueles que são perceptivamente concebidas como fins tornam-se meios, a qualquer momento, se os meios para atingir esses fins se tornam a condição universal para realizar qualquer fim.

Marx desenvolve esse argumento hegeliano e afirma que, se o dinheiro for a condição universal para alcançar qualquer objetivo, o aumento do dinheiro como um mediador universal de todos os bens significa, então, que o dinheiro não é mais o meio, mas se tornará o principal fim (mudança qualitativa da sua natureza). Isto é, aquilo que é percebido como o escopo da economia, ou seja, satisfação das necessidades e produção de bens, se tornam instrumentos para conseguir o dinheiro.

Gianni Motti

A economia é uma alta forma de racionalidade, mas ainda sofre de uma paixão humana pelo lucro. A técnica não sofre. Portanto, a economia, a partir da filosofia e da ciência, se organizou matematicamente eliminando a subjetividade, o corpo e tudo o que tem a ver com o mundo sensível, visualizando a si mesma na dimensão virtual. Mas deve dar lugar a uma forma ainda mais racional, que é a técnica. Portanto, a técnica deve ser considerada, hoje, como a absoluta forma de racionalidade humana e, sobretudo, como a maior e mais rígida manifestações do que chamamos de “pensamento calculante”.

Usando o argumento de Marx aplicados à técnica, se pode afirmar que a técnica é a condição universal para atingir qualquer finalidade, em seguida, a técnica não é mais um meio, um instrumento, mas é o primeiro objetivo que todo mundo busca, porque sem ela, nenhum propósito pode ser alcançado.

A tecnologia não tem nenhum propósito em si, não abre a nenhuma rendição, ela funciona e basta, se tornando nosso ambiente de espaço específico de funcionalidade e razão instrumental, onde tudo deve convergir para obter o máximo de resultados com o menor uso possível dos recursos.

A técnica modificou radicalmente o conceito de verdade, de liberdade, de democracia, e sobretudo, mudou aquilo que nos identifica. A identidade não é mais algo que possuo, próprio de uma biografia, de uma história, de uma rapsódia, de experiências. A identidade nos será conferida pelo reconhecimento das estruturas as quais pertencemos, com base nas funções que desempenhamos. Por isso, é o aparato que nos fornece a identidade, e temos isso internalizado tão bem, que parece que a maior aspiração de muitos deve ser a ascensão na carreira profissional, como forma principal de se fortalecer a identidade.

O sistema irá nos reconhecer quando formos eficientes, produtivos, funcionais e acima de tudo responsáveis pelo bom e justo desempenho da tarefa que nos foi atribuída, como se fossemos máquinas, aliás, são elas nossos modelos de comparação de eficiência e produtividade.

*Texto baseado na tradução do artigo do professor e filósofo italiano Umberto Galimberti — CRITICA AL PENSIERO CALCOLANTE.

Ana Lucia Tersariol faz parte do Coletivo Krinos e é editora e colaboradora da Revista Krinos. Formada em agronomia é apaixonada por Filosofia.

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