Festival do Baixo Clero e a Reforma Política

O termo foi cunhado por Ulisses Guimarães durante o processo de redemocratização do país referindo-se aos deputados movidos por interesses locais e pessoais, mas com pouca expressividade na casa.

Gilberto Miranda Junior
Revista Krinos
8 min readMay 1, 2016

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Plenário da Câmara dos Deputados por ocasião da eleição indireta do primeiro presidente civil após a Ditadura | Data: 15/01/1985 — Imagem: Célio Azevedo — Senado The Commons.

O termo “baixo clero” é recorrente em jornais e revistas ao se referir a certas personagens de nosso Congresso dentro da estrutura parlamentar. Essas personagens são os membros das camadas de base na composição do poder na Câmara. Por mais intuitivo que seja o termo, somente no domingo dia 17/04/2016 foi possível ter uma noção mais acurada de quem é essa personagem e o que ela representa. O baixo clero se constitui na base do fisiologismo em nossa república, por mais antirrepublicana que seja sua existência. O termo foi cunhado por Ulisses Guimarães durante o processo de redemocratização do país referindo-se aos deputados movidos por interesses locais e pessoais, mas com pouca expressividade na casa. Embora não explícito, o fisiologismo inerente estava presente desde então. Alguém movido por interesses pessoais estará sempre disposto a satisfazê-los em troca de favores, por mais que esses favores possam ser considerados antiéticos.

Essa pouca expressividade, porém, só pode ser levada em conta se o integrante do baixo clero for considerado isolado. O poder deles está quando se juntam, tal qual cardume, ao fecharem questões problemáticas a favor de quem oferece melhor recompensa ou possibilidade de ganhos em pequenos negócios escusos inconfessáveis. Essas figuras orbitam em volta dos políticos renomados que ocupam os noticiários e lideram certos temas. Atuam nos bastidores e seu anonimato é sua melhor estratégia. A imagem mais apropriada, talvez, para ilustrá-los enquanto cardume seria a de um peixe tipicamente brasileiro, as piranhas: seres vorazes que agem em conjunto a partir de seus interesses individuais para abocanhar a maior fatia de carne que conseguem quando diante de uma oportunidade.

Sabemos que as decisões importantes e as posições consideradas válidas dentro do Legislativo se restringem a um número reduzido de parlamentares. São as estrelas. Elas comandam o espetáculo. Não há queda de braço ideológica nem pautas a serem discutidas. Há pauta a ser imposta como válida pelas estrelas (ou alto clero como também são conhecidas) que em troca oferecem ‘espaços de poder’ onde o cooptado do baixo clero poderá exercê-lo conseguindo ganhos que atendam a seus interesses. Ou seja, há uma estrutura já pronta e tradicional de ação dentro de nossa Câmara que condiciona desde a chegada de um novo deputado sua forma de agir e se integrar ao meio. Unidos, são fortes. Mas a força de sua união está sempre a serviço dos grupos e coalizões que o alto clero articula para os temas que lhes interessam; o que equivale a dizer: os temas que interessam àqueles que financiaram suas campanhas. Essas estrelas e lideranças do alto clero, em geral, são as que financiam as campanhas dos integrantes do baixo clero, criando desde já um vínculo e uma fidelidade, espalhando as migalhas que suas próprias campanhas milionárias geram para esse fim.

Muito se tem dito acerca do encolhimento do chamado alto clero, seja por conta da aposentadoria dos grandes tubarões da política (ligados ao coronelismo), seja pela ascensão da bancada evangélica que elevou o número de políticos sem expressividade, mas que garantiu sua elegibilidade a partir de sua base de fiéis. Seria, dessa forma, uma pulverização do voto de cabresto. O fato é que parece ter ocorrido ambas as coisas. O alto clero tem se recomposto com figuras alçadas do próprio baixo clero e não através de heranças do capital político das antigas oligarquias brasileiras, mas a partir de novas articulações que fazem emergir figuras que catalisam negociações ou já vem amparadas por estratégias do próprio setor privado para composição de lobby dentro do Congresso; como empresas de telefonia, planos de saúde, grandes empreiteiras, etc.

Sem dúvida isso ocasionou uma maior pulverização do poder e conferiu mais poder à coletividade do baixo clero, que passa a negociar em conjunto concessões de cargos, obras e orçamento junto ao Executivo e comissões parlamentares estratégicas para aprovar as Leis propostas pelo Governo. O que assistimos é quase como a sindicalização do legislativo. Como bons e eficientes sindicalistas destacam-se Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados e Renan Calheiros no Senado Federal. Mas é aí que a análise se torna mais complexa.

Ao mesmo tempo em que o baixo clero negocia com o Executivo formas escusas e antiéticas para aprovar as medidas propostas pelo Governo, o alto clero faz sua própria ingerência trabalhando em prol daqueles que o financiou para que ocupasse cargos e tivesse poder. Manda seus escudeiros com salvo conduto para arrancar o que podem do Estado (mediante comissões, obviamente) e parte para legislar a partir de suas bases de financiamento, criando Leis que passam largo de um plano mais geral e político que represente o Estado Democrático de Direito. Com isso, e contando com o apoio midiático na construção de sensos comuns, aprovam a redução dos direitos trabalhistas, redução de impostos, isenções ou anistias a grandes empresas (o que impacta nos programas sociais) e, representando as bases mais orgânicas de seus feudos eleitorais, estão sistematicamente revertendo as conquistas de direitos civis que se chocam com uma visão fundamentalista religiosa.

Estes problemas todos talvez estejam relacionados com um fenômeno que ocorre não apenas no Brasil, mas em muitos países, mesmo sob o regime presidencialista, que ficou conhecido como “Presidencialismo de Coalizão”. Desde nossa redemocratização, visando afastarmos os fantasmas do autoritarismo, várias tentativas em direção ao parlamentarismo foram feitas. Esquecemos, decerto, que antes de 1964 houvera um golpe parlamentar impedindo a posse de Jango quando Jânio Quadros renunciou, só permitindo-a mediante a mudança de regime para o parlamentarismo. No plebiscito que se seguiu a esse episódio, o presidencialismo ganhou de maneira irrefutável e Jango sobe ao poder legitimado para fazer as reformas de base que prometera para desespero das oligarquias e das elites brasileiras. Vencidos pela democracia, o golpe militar se mostrou não só desejável como a única solução viável e, com apoio dos EUA e do Congresso Nacional, destituíram o presidente e formou-se uma junta que prenunciaria um governo militar pelos próximos 20 anos no país.

Com o primeiro governo civil após a ditadura e, mais uma vez, com um vice tomando posse (Tancredo não chegou sequer a assumir), o debate em torno das reformas institucionais não se direcionou a uma crítica anterior ao regime militar, mas focou-se na desconfiança de um regime presidencialista tendo como referência a própria ditadura. A Constituinte de 1.988 (a nossa “Constituição Cidadã”) trouxe muitos avanços nas questões sociais, mas ao invés de se focar no problema institucional político como um todo, tratou de enfraquecer os poderes do presidente e criou o que o cientista político Sergio Abranches conceituou há 25 anos, em um artigo, como “Presidencialismo de Coalizão”. Com uma nova derrota do parlamentarismo no plebiscito de 1.993, vivemos um parlamentarismo disfarçado sem primeiro ministro, capitaneado por uma parcela da sociedade que se vende como povo, mas atua como elite predatória, fisiológica, corrupta, morosa nas decisões, clientelista e com um poder assustador de distorcer aquilo que se pretendia no sufrágio, já que ao votarmos para presidente a partir de um plano de governo, não temos nenhuma certeza que ele será levado à cabo devido à dependência parlamentar a que nosso sistema o sujeita.

Hoje, mais do que as oligarquias que comandavam o país antes e durante o regime militar, é um baixo clero amoral (apesar de seus votos pela família e em nome de Deus) que comanda a política e alça dentre eles o mais articulado para fazer a população e o Estado de refém de seus interesses pessoais. Apesar de parte da população ainda se iludir de que fez o correto ao eleger esses “malvados favoritos” para tirar a Dilma do poder, uma grande parte parece estar se dando conta que os problemas do Brasil não se concentrava exclusivamente no Executivo, embora reconheçamos que houvesse muitos problemas. O espetáculo dantesco da votação pela admissibilidade do impeachment no último dia 17/04/2016 não deixa muitas dúvidas sobre a quem nossos destinos estão entregues. A eventual posse de Temer representará a tão sonhada conciliação entre os poderes, para desespero da sociedade. Irá traduzir não só a vitória incontestável do fisiologismo em nossa política, como direcionará o país à perda de sua autonomia e das conquistas sociais obtidas nos últimos anos.

Auxiliados por pelo menos duas gerações de pessoas que jamais se deram conta do que passamos em regimes de direita, alheias aos efeitos da lógica do Liberalismo Econômico e de seu braço prático reformista chamado Neoliberalismo, foram convencidas que todo mal contemporâneo se resumo a qualquer coisa relacionada à esquerda do espectro político ideológico. Hoje, muito mais do que questionar as mazelas do sistema e seu direcionamento rumo ao colapso civilizatório que se avizinha, o debate se foca em quanto a liberdade de oprimir e servir-se do outro será mais eficiente a partir das matrizes ideológicas disponíveis: libertarianismo ou conservadorismo-liberal.

Talvez dê tempo de voltar atrás. Mas se não der (e penso que não dê), amargaremos até 2018 uma delapidação histórica do patrimônio público visando a recomposição das margens do grande capital diante da crise mundial, a perda de nossa autonomia e de conquistas históricas conseguidas e, por fim, a fragilidade mais acentuada de nosso sistema representativo.

Pode ser que a economia dê sinais de melhoras e haja alguma retomada de crescimento, mas será como uma bolha que não se reverterá em ganhos efetivos ao país, mas na recomposição de ganhos daqueles que nunca se comprometeram de fato com coisas que vão além de seus próprios interesses. Se nos satisfaz algum benefício pontual colateral disso tudo, então não façamos nada.

Eu penso, no entanto, que ao longo dos tempos que nos aguardam até 2018, possamos escolher com cuidado aquele que, de fato, se comprometerá com uma constituinte para a reforma política como prioridade máxima no próximo governo, e que saibamos escolher seus integrantes fora dessa corja que envergonha o país diante do mundo e de nossas consciências.

Gilberto Miranda Junior é licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano, estudou Ciências Econômicas na Universidade Guarulhos (UnG) e é membro pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia (CEFIL), registrado no CNPQ e ligado à Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.

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Gilberto Miranda Junior
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Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM