Nossas Paixões Tristes

A sociedade desapaixonante…

Ana Lucia Tersariol
Revista Krinos
4 min readOct 25, 2016

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Banksy, Girl With Red Balloon

Para Spinoza as dimensões sociais se desenvolvem através dos afetos: o corpo humano é mais forte e mais potente quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, gerando as “paixões alegres”, e é mais pobre e mais fraco quanto mais isolado se mantiver em relação a outros corpos, ou nos encontros que diminuem essa potência, gerando “as paixões tristes”.

Hoje, muitos identificam a nossa época como uma época de “paixões tristes”, onde domina no horizonte aquele emaranhado de sentimentos negativos, como o cinismo, a resignação, o desencanto, o fim de uma ideia de futuro, a melancolia. Poderíamos acrescentar mais dois pathos no contexto civilizatório neste terceiro milênio, segundo meu amigo Gilberto Miranda Junior: a naturalização compulsória das relações históricas de domínio e a hegemonia do utilitarismo pragmático nas relações humanas.

No cenário brasileiro em particular se poderia identificar o desencantamento, o cinismo, a melancolia, como formas de “paixões tristes”. O desencanto é onde tudo é possível, menos pensar em ideias alternativas para a sociedade, onde se deve resignar-se à realidade como nos vem apresentada. Tudo em nome de um individualismo exacerbado, da competição sem freios, de uma sociedade atomizada, desagregada. O cinismo que nos vem proposto não é mais nem o melhor dos mundos possíveis, como diria o Dr. Pangloss, mas é o único possível, onde se faz apelo ao abandono e à razão cínica dos últimos homens, ou de muitos dos nossos “homens de bem”, espalhando o desencanto e a resignação, mas sempre garantindo “o prazerzinho para o dia, e o prazerzinho para a noite, prezando a saúde” pensando ter descoberto a felicidade sem ultrapassar a zona de conforto.

Uma época desapaixonante, na qual as pessoas são mais fáceis de governar, sem criatividade e nos tornando sempre mais homologados e conformistas.
O futuro não é mais como era antigamente, já cantava a Legião quando estávamos acordando de uma noite que durava 21 anos. Estamos hoje diante de uma ponte que nos leva para lugar nenhum; o futuro não é mais um lugar de projeções, de possibilidades, mas para muitos poderá se configurar como uma ameaça. Congelamos-nos nessa dimensão do presente, como um GIF, onde o que existe se naturaliza e a história se desertifica.

O nosso cotidiano nos angustia, nos deprime, mas não é a mesma depressão de 40 ou 50 atrás, que se baseava sobre o senso de culpa, sobre o que era permitido e o que era proibido. Hoje, é sobre a performance, sobre um sentido de inadequação, de não corresponder às performances exigidas, de não corresponder ao mito das prestações ilimitadas. As ameaças, as crises, as urgências são partes de um normal horizonte desses nossos dias. Urge agir rápido… E tome Medidas Provisórias e PECs sem diálogos com a sociedade: ações verticais e verticalizantes.

Pensar está se tornando um luxo perigoso e desnecessário. Temos que aderir maciçamente e irrefletidamente a um discurso quase paranoico de que a barbárie está batendo à porta, de que estamos a um passo do abismo, de que a família esta sendo destruída. Temos furores puritanos que enxergam o Mal a ser desenraizado em parcos avanços de extensão de direitos civis e econômicos, combate às desigualdades, cruzadas messiânicas e midiáticas contra aqueles responsáveis pela sua implantação e contra aqueles que apoiam essas políticas; a justiça sendo reduzida a atos. Grupos mais conservadores e reacionários se apoiam em paixões tristes, gerenciam frustrações, usam a indignação como violência, descontextualizam fatos. As medidas neoliberais que estão sendo implementadas e estudadas provocarão uma devastação na nossa paisagem social.

Para Safatle a melancolia é um afeto fundamental para o poder agir internalizando uma experiência melancólica, essa é sua função: fazer com que nos deparemos a todo momento com a crença de impotência de nossa força. Uma experiência de fraqueza contínua que vai até uma posição depressiva que nos leva a abandonar a dimensão social, tudo isso se traduz numa impotência coletiva. Não podemos abrir mão da nossa força criativa, das nossas paixões alegres em nome de uma hipotética segurança, em nome de uma sociedade cada vez mais homologada e conformista.

Por fim, Gilberto Miranda Junior ainda nos lembra: à toda crise, a segurança só é garantida institucionalmente aos proprietários dos meios de produção. Nós, criaturas comuns, não temos nada, apesar de nos fazerem acreditar que protegendo os proprietários, estaremos também seguros. Todo esse cenário de paixão triste spinoziano tem suas origens na concepção elitista de que há seres humanos mais humanos que outros e que mereçam o privilégio de serem protegidos para dar sentido à vida dos demais. Quase como um Elysium.

Ana Lucia Tersariol faz parte do Coletivo Krinos e é editora e colaboradora da Revista Krinos. Formada em agronomia é apaixonada por Filosofia.

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