O imperador etíope Hailé Selassié I em visita a Genebra, 1935 (Foto: Lucien Aigner/Corbis)

“O Imperador” e a distorção que figuras carismáticas podem causar na compreensão de seus seguidores

Revista Lampejos
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6 min readJan 24, 2017

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João Pinheiro

(KAPUŚCIŃSKI, Richard. O Imperador: a queda de um autocrata. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 192 págs.)

Um país afundado na miséria; um imperador com mãos de ferro, que prometia o progresso à sua nação; um estado em ebulição, à beira de um colapso. Assim terminou o governo de Hailé Selassié I, imperador da Etiópia entre 1930 e 1974, derrubado por um golpe militar, com influência soviética, o que levou ao início de uma sangrenta guerra civil. Foi nesse cenário que Ryszard Kapuściński (1932–2007), renomado jornalista polonês, autor de obras como O Xá dos Xás (Companhia das Letras, 2012, R$ 42,90) e Ébano (Companhia das Letras, 2002, R$ 59,90), chegou a Adis Abeba, cidade onde esteve em 1963 para acompanhar um banquete oferecido por Selassié aos chefes de Estado do continente. Após a queda do imperador, Kapuściński vai atrás dos cortesãos que frequentavam o palácio, procurando entender como era, na visão deles, o governo e como teria surgido aquele golpe de estado. Os depoimentos então foram reunidos na obra O Imperador: a queda de um autocrata (Companhia das Letras, 2005, R$ 42,90).

O livro é composto de transcrições das entrevistas realizadas com os membros do governo de Hailé Selassié, com breves momentos em que o autor expressa o que via pela cidade em suas duas visitas ao país. Seus encontros às escondidas (por conta da guerra civil instaurada após a queda do imperador, os membros da corte viviam escondidos) foram guiados por Teferra Gebrewold, ex-membro do Ministério da Informação, que o jornalista conheceu em sua primeira ida ao país. Os entrevistados apresentam Selassié como um governante excelente, com boas intensões e merecedor de todos os elogios. Em todas as conversas, os antigos membros do palácio defendem seu “venerável amo” contra qualquer crítica que tenha sido feita por seus adversários ou pela imprensa internacional. Entretanto, o governo tirano de Selassié não se mostrou tão digno desses elogios, mesmo dentro do que os próprios entrevistados, indiretamente, dão a entender. Kapuściński nos mostra o quanto os cortesãos eram alienados, totalmente influenciados pelo mandante.

Selassié em 1930 (Foto: G. Eric and Edith Matson Photograph Collection)

Hailé Selassié chega ao poder oficialmente em 1930, com a promessa de livrar seu país da miséria e trazer o progresso à nação, a ponto de equiparar a Etiópia aos Estados europeus.

Suas primeiras medidas colaboram para alavancar sua popularidade dentro e fora do país. O Estado investiu em escolas e hospitais, enviou seus jovens para estudar nas melhores universidades do exterior e comprometeu-se a reduzir a miséria, com ajuda de investimentos externos. Contudo, com o tempo, não foi isso que se viu do governo etíope. Três décadas após a posse de Selassié, o país se encontrava em uma situação tão miserável quanto antes.

E aqueles que o governo enviara para estudar em outros países vieram a se tornar os que se oporiam à corrupção evidente, aos gastos exuberantes e fúteis da corte e à incapacidade administrativa dos membros do governo. A criatura rebelara-se contra o criador. Mesmo assim, os cortesãos continuavam cegos à luz da verdade. Defendiam fervorosamente os mandos e desmandos do imperador, taxando os opositores de ingratos e caluniadores. Enquanto a corte vivia numa “ilha de fartura”, a maior parte da população encontrava-se em plena miséria. Muitos morriam de fome. Com isso, cresce o descontentamento com o governo por parte dos estudantes, aqueles que mais gostariam de ver o desenvolvimento alcançar o país, e nos militares das baixas patentes.

A década de 60 foi marcada pelos protestos. Logo em 1960, alguns membros da Guarda Imperial, liderados por Germame Nogay, então homem de confiança do imperador, tentaram aplicar um golpe de estado durante a visita de Hailé Selassié ao Brasil. A rebelião foi duramente reprimida, mas conseguiu desestabilizar o governo a ponto de não mais ser possível evitar as revoltas estudantis. O estopim de um grande caos político, porém, veio com o lançamento do documentário The Unknown Famine (em tradução livre, “A fome oculta”, 1973), do jornalista inglês Jonathan Dimbleby, o qual escancarou à Europa a desigualdade no país africano, que recebeu recursos externos para combater a fome e a miséria. A partir de então, teve início o fim do reinado de Selassié.

Nas palavras de Kapuściński, “existiam duas imagens de Hailé Selassié. Uma, conhecida da opinião pública internacional, apresentava o imperador como uma figura um tanto excêntrica, mas um monarca corajoso, de energia inesgotável, de mente sagaz e uma extraordinária percepção, que resgatara o império e o trono das mãos de Mussolini e que nutria um desejo profundo de desenvolver o país e de desempenhar um papel significativo nas relações internacionais. A outra, formada gradualmente pela opinião cada vez mais crítica dos seus súditos, exibia o monarca como um líder disposto a manter o poder a qualquer preço, acima de tudo, um demagogo e um paternalista dado a teatralismos, que, com palavras e gestos, encobria a corrupção, a ignorância e o servilismo da elite do país, criada e afagada por ele”.

Hailé Selassié I saudando os hinos nacionais ao lado de Lyndon B. Johnson, presidente dos EUA, em Washington, 1967 (Foto: Hulton Archive/Getty Images)

O livro exige muito cuidado durante sua leitura. Como é todo feito a partir da transcrição dos depoimentos de membros da antiga corte de Selassié, só é apresentada ao leitor uma versão dos fatos: a opinião daqueles que conviviam e apoiavam os atos do imperador. A todo momento, é exposta ao leitor a figura gloriosa do Rei dos Reis, um governante de atos louváveis e inquestionáveis. Uma leitura desatenta deixa a impressão de que os opositores de Selassié seriam os “baderneiros” revolucionários que a corte busca mostrar. Além disso, Kapuściński pouco contextualiza os depoimentos em relação ao que de fato se via no país. O autor não questiona as afirmações, não as apura a fundo, deixa que o leitor o faça. Seus poucos comentários quase sempre dizem do que ele viu pessoalmente nas ruas de Adis Abeba enquanto esteve na Etiópia, como a tensão durante os conflitos pós-queda do imperador.

O que mais vale na leitura de O Imperador é analisar o quanto uma figura carismática é capaz de distorcer o entendimento de seus seguidores. Casos como o de Hailé Selassié não são únicos na história. Visto como a encarnação de Deus na terra, o imperador era defendido com unhas e dentes por aqueles que se beneficiavam de suas ordens. Como uma nação totalmente atrasada, sem acesso à educação, sua população era incapaz de questionar os mandos e desmandos do palácio. Quando Selassié enviou seus jovens ao exterior para estudar, fez com que eles adquirissem o conhecimento necessário para ver que havia algo errado naquele país. Enquanto a maior parte dos etíopes morria de fome pelas ruas, a corte importava caixas e caixas de caviar e champanhe. Esse é só um exemplo da desigualdade evidente na nação. A classe estudantil passou a defrontar o palácio.

Segundo o que acreditavam os cortesãos, tudo era motivado pelo pensar. Quando a população pensa, é capaz de questionar, o que pode ser o maior perigo para um governo que usa de todos os elementos possíveis para se sustentar no poder. Enquanto isso, o povo arrastava-se pelas calçadas, fraco e incapaz. A Etiópia entrava em uma perigosa era de polarização, que culminaria em uma batalha sangrenta e bastante danosa para o futuro do país.

O livro de Kapuściński leva o leitor cuidadoso a esta conclusão: um líder com uma capacidade de convencimento pode cegar seus apoiadores a partir de medidas direcionadas. Hailé Selassié, a partir de sua ganância de manter o poder, acabou abandonando seu propósito de levar o progresso à Etiópia e afundou seu país numa guerra, que duraria até os anos 90. Ao leitor, vale o aviso: a leitura compensa, mas deve ser feita com a cautela necessária para compreender os depoimentos subjetivos de suas fontes.

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Lam·pe·jo — s.m. Figurado. Expressão momentânea e genial de inteligência: lampejo de criatividade.