Luva cadavérica — II

Jorge Rocha
revista [LIMBO]
Published in
5 min readAug 24, 2015

Roger Franchini

2. DO METAL FOSCO

Na delegacia, logo cedo, antes que pudesse inventar um tom de voz de homem ofendido para explicar ao Ricardo que seu amigo havia me esnobado, a brisa fétida veio me visitar novamente. Por um instante, olhei ao redor esperando encontrar algum rato morto, mas só estava a figura decrépita do tal Coronel Whitaker abrindo a porta da minha sala sem bater:

– O delegado não vai me atender, não é?

– Pode esperar lá fora, se quiser. Não sei a que horas ele chega.

Por mais que eu desejasse agradar Ricardo, não poderia obrigar o Velho a conversar comigo. O PM não era um ladrão daqueles que dava o serviço debaixo de porrada. Então foda-se.

Ele deve ter percebido minha indiferença ao seu problema; fechou a porta e caminhou para o interior da sala. O cheiro, que antes era insuportável, tornou-se asfixiante. Enquanto ele se aproximava para sentar na cadeira, corri para abrir a janela na esperança de que fosse o ar fosse renovado. Fiquei ali, com o nariz para fora..

– Que horas o Ricardo chegará, garoto?

– Hoje ele não vem. Foi viajar e não sei quando volta.

Acendi um cigarro para disfarçar o odor da sala. Quem sabe assim também ficasse claro meu incômodo com a sua presença.

Não bastou. O Coronel puxou a velha cadeira em frente à minha mesa como se tivesse sido convidado a entrar. Despejou-se com dificuldade para encontrar uma posição digna, desempenando as costas para mantê-la ereta. Olhou-me por um bom tempo, desafiando minha paciência. Passou os dedos sobre os cabelos ralos e enfim desistiu de mim:

– Avise seu delegado que o Coronel Whitaker quer falar com ele.

– O senhor vai ter que esperá-lo lá fora, no corredor. Eu estou de saída e não posso deixa-lo sozinho nesta sala. — Em parte era verdade. Embora os armários guardassem peças de inquéritos, artefatos de arma de fogo e alguma droga para incriminar os desavisados — quando necessário — o motivo para sua saída era algo mais subjetivo: eu o odiava.

– Acho que você não sabe quem sou eu, garoto. Sou o Coronel Whitaker. Fui comandante da ROTA nos anos 90.

Com um sobrenome desses, o sujeito nasce se achando importante o suficiente para invadir a sala de um policial e exigir ser atendido. Talvez fosse realmente temido na polícia militar, onde suas estrelas valessem alguma coisa, mesmo na reserva. Mas aqui, para mim, era somente mais um sujeito obsoleto que exigia a solução de seu problema.

– Eu vim para assumir meus crimes. Quero confessá-los um por um.

Dito isso, tive a certeza de que o tal Coronel estava em uma das categorias de contribuintes que frequentam delegacias: a dos notadamente malucos. Percebi o tamanho da zica que estava começando a abraçarpor culpa do Ricardo. Nada mais justo, então, que ele resolvesse aquilo sozinho.

– Então o caso é grave. O senhor tem que falar com o delegado. Eu não poderei ajudá-lo com isso.

– Você também não é policial?

– Seus amigos PMs também são. Por que não vai falar com eles?

Fui cusão, claro. Deixei o Velho constrangido; pareceu ter se dado conta que sua voz não impunha mais o comando de antes. Sem a farda, tornara-se tão comum quanto qualquer outro infeliz da fila do B.O. Pigarreou, olhou para o teto e voltou seus olhos para mim:

– Eu matei cento e trinta e duas pessoas.

– E quer ser preso por isso?

– Eu me aposentei há mais de trinta anos, garoto. Mesmo que resolvessem me processar agora, quando for condenado, tudo já estará prescrito ou eu estarei morto.

– Não entendi. Então por que veio?

Whitaker respirou fundo, ignorando sua própria fedentina:

– Você já matou alguém, rapaz?

Antes de ser uma pergunta, aquilo era uma ofensa. Podia ver seu sorriso de canto de boca consumindo com prazer cada segundo de minha hesitação. Se matei ou não, é problema meu. O tipo de coisa que não se pergunta a um policial, tampouco se comenta com estranhos, principalmente com policiais militares. Tamanha insolência, pelo menos, me daria autorização para mandá-lo embora. Qualquer outro policial com bola no saco iria começar uma confusão que daria trabalho às corregedorias das duas instituições. Ricardo entenderia meu gesto: eu não precisava ser desafiado por alguém que viera pedir ajudar.

– Acalme-se. Você não precisa me responder. Eu só queria ver sua reação. E já lhe adianto: nunca terá a coragem de assumir qualquer resposta, seja ela qual for. Enquanto você estiver aí, na ativa, esbanjando essa arrogância de policial jovem e armado, comendo tudo quanto é menininha que adora chupar rola de polícia, essa questão não incomodará. Mas depois, quando o corpo se desintoxicar do aço da pistola, moleque, não importa se matou cem, uma pessoa ou ninguém.. Tentar escondê-los é uma soberba ridícula. Essa marca vai te perseguir a vida toda. Aí, vai ter que se contentar com a desculpa de que estava apenas fazendo seu trabalho. Eu matei. Matei com satisfação. O que pude fazer pela sociedade foi feito. Todos ao meu lado também mataram, cumpridores de seus deveres. Mas se foram, meus parceiros já morreram, fui abandonado aos mortos e agora é minha vez de morrer…

Levantou a barra da camisa e me mostrou o cano de um revólver acomodado em um coldre. Coloquei a mão na altura do meu quadril e jurei por Deus: se ele alisasse a madeira do berro, eu estouraria sua cabeça. Antes que ele continuasse o movimento, percorri os dedos sobre o metal da minha pistola. Fosse mesmo policial, o Velho saberia que jamais deveria apresentar um sinal de ameaça a outro polícia. O cana só puxa a arma quando é para matar alguém. O simples gesto de me mostrar sua pistola é considerado ameaçador o bastante para que eu o fritasse ali mesmo sem responder a nenhuma pica na corró.

Mas — acabei deduzindo — e se fosse justamente isso o que o Velho desgraçado viera buscar? Um policial precipitado para matá-lo ao primeiro sinal de perigo.

– Vá embora! O Ricardo volta amanhã, converse com ele e o delegado. Vão resolver seu problema. Vocês três são irmãos, têm o rabo amarrado com gente poderosa. Eu sou um bosta, Coronel. Não posso lhe ajudar.

– Não precisa ter medo de mim.

– Sai daqui! — Trouxe a pistola para fora do coldre e a deixei com o cano apontado para o chão, junto ao meu corpo. Ele fixou os olhos no fosco do metal, indiferente ao tiro que poderia disparar. O filho da puta sabia que, se respirasse diferente, eu o mataria. Por isso parecia satisfeito; a aemaça deveria ser outra, a mais humilhante possível. — Não quero ter que algemá-lo, Coronel.

– Você não terá tempo. Sabe disso.

– Por que quer foder minha vida, caralho? O que fiz para você? Vá embora e volte amanhã, já disse. Seus irmãos vão recebê-lo.

(continua no próximo número)

Roger Franchini é escritor, roteirista e às vezes se aventura no jornalismo. Mas durante muito tempo também já foi investigador da Policia Civil de São Paulo e advogado. São dele os romances “Ponto Quarenta — a Polícia para leigos” (ed. Veneta, 2015), “Toupeira — a história do assalto ao Banco Central” (ed. Planeta do Brasil, 2011), “Richthofen — o assassinato dos pais de Suzane” (ed. Planeta do Brasil, 2011), “Amor Esquartejado” (ed. Planeta do Brasil, 2012" e Matar Alguém” ed. Planeta do Brasil, 2014).

Foto: Lydiane Ponciano

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