Pierrotraiser

Jorge Rocha
revista [LIMBO]
Published in
7 min readFeb 1, 2016

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Yuri Pires #carnavalgrandguignol

Não lhe agradava aquela alegria gratuita e despropositada do carnaval. Não entendia o motivo pelo qual pessoas desconhecidas, suadas, fedendo a álcool, mijo e, não raro, vômito, optavam livremente pela colisão aleatória de seus corpos sujos. Como toda festa, o início paradise tinha um final filme de terror trash ou, pior muito, pornochanchada baixorçamentícia. Conhecia isso de cor, filho que era de foliões sazonais, havia passado os carnavais, de oitenta e três aos dois mil, no Recife ou no Rio de Janeiro, duas cidades que odiava com todas as suas parcas forças.

Assistira, encaralhado, ao renascimento do carnaval de sua cidade, bê-agá. Por que cargas d’água os pacatos belorizontinos decidiram melecar as terras alterosas com confetes, serpentinas, mijo e merda pelas ruas? Era algo que não entrava em sua cabeça.

Como não entrava em sua cabeça as festas de reencontro de turma, como aquela cujo evento no Facebook estava à sua frente, na tela do computador. Por que quereria se encontrar com as pessoas com as quais foi obrigado a conviver por anos a fio e que, lascadamente, representavam cuecas puxadas para fora das calças e cortes no cu? Algumas faces confirmadas no evento lhe lembravam o cheiro e o gosto de merda. Isso porque, em um dia de inverno, um quatro de junho de dois mil e oito, às onze e cinquenta e três da manhã, no intervalo entre as aulas de geometria e literatura, três daqueles monstros de sorrisos retilíneos resolveram aplicar uma brincadeira no esquisito da escola. Cagaram em um balde verde musgo e o colocaram dependurado acima da caixa de descarga, com a alça presa à corda da descarga, pois sabiam que aquele era o intervalo em que o esquisito da escola fumava escondido, box, e depois puxava a descarga para tapear. Revolveram a bosta com água e caldo de galinha, roubado da cantina, de modo que pedaços de galinha e pequenos toletes boiassem naquela sopa infernal. Após o quê, foi aconselhado pela psicopedagoga da escola: você deveria ter pena deles, eles querem apenas atenção, são inseguros e imaturos.

Enfim, para ele, não fazia nenhum sentido sequer pensar em estar com essas pessoas, mesmo que fosse uma vez por ano; mas havia uma exceção dentre todas aquelas caras: Cecília. Como os demais, ela também o desprezara e, certamente, sequer lembrava-se dele. Ela tinha sido a primeira a vê-lo coberto com pedaços de merda e de galinha e vomitou a seus pés. Depois disso, nunca mais trocaram um olhar, pois ele venceu os outros anos de escola olhando para a ponta de seus tênis surrados. Entretanto, Cecília era diferente. Seu desprezo e mesmo suas risadinhas quando ele passava, continham um pouco de pena, sempre um olhar um pouco envergonhado e sensível ao seu drama, talvez, intimamente, desculpando-se pela sua ojeriza. Ele sabia e, desde então, masturbava-se pensando nela.

Enquanto pensava nela, já excitado, passeava pelo seu perfil, demorando-se nas fotos em que ela aparecia em biquínis e decotes ou minissaias. Lhe chamou a atenção uma foto com muito mais comentários que curtidas, pois sabia o significado disso: polêmica. Fuçou até achar — perdido em meio a diversos lindaaaaaaa, tudoooooo, perfeitaaaaa, poderosaaaaa — o comentário mais comentado, escrito por um outro colega da época da escola, um da turma dos descolados que surfavam na praia da Macumba. “Comia de novo”, ele tinha dito. O alvoroço causado, certamente previamente calculado, envolveu quase a turma inteira que estaria no churrasco daquele sábado de Zé Pereira. “Escroto”, “babaca”, “machista” de um lado, “kkkk”, “mito”, “tragam um troféu para esse homem” do outro, a discussão desenrolava-se animada e violentamente.

Cecília tinha comentado o comentário com um meme que dizia “comeu, mas não fez gozar”. Após muitos “kkk’s” e “lacrou’s”, o sujeito, de nome Pedro, voltou e disse que ela teria, em breve outra e última oportunidade para gozar. Essa ameaça o assustou. Essa foto havia sido postada recentemente. E se Cecília corresse perigo? Foi o que se perguntou.

Principiou investigação sobre Pedro, primeiramente em seu perfil do Facebook, aberto, donde viu que ele curtia algumas páginas que diziam muito sobre aquela discussão: “como estuprar uma feminista 4.0”, “feminista mal comida” e “racismo inverso”. Passada a primeira fase da investigação, aproveitando-se de seus dotes de hacker, adquiridos através do emprego de muito tempo livre e dinheiro dos pais, conseguiu encontrar e invadir a conta de e-mail de Pedro — a ridícula pedrocomedor@todas.com –, a partir da qual acessou as contas de Pedro em redes sociais e fóruns cibernéticos.
Vigiando, encontrou uma discussão de janeiro daquele mesmo ano, portanto, mês e pouco antes, que falava em “pegar aquela vaca q me regaço” e “ensina a ela a ñ ri de 1 homem!”. Tudo fazia todo sentido para ele: haveria um ataque durante o churrasco da turma. Apesar de todo o pânico que sentia ao pensar em comparecer a qualquer evento que permitisse a presença daquelas pessoas, pensava, agora, em uma forma de impedir o crime. Mas como? Era preciso reunir mais detalhes e, por isso, continuou cavucando pedrocomedor83.

Descobriu outra discussão, com um tal de carlosputaum33, que aludia aos detalhes pretendidos. “Mas cm tu vai chega nela? ela vai tá cercada de amigas.”, ao que pedrocomedor83 respondera: “aqla puta me qria qdo eu tava bm, mas dpois q eu tava na merda, nk + olho na minha cara! To c odio… ñ vo pensar em nd, vo pegar a primeira cosia q tiver na frente p foder c ela”. carlosputaum33 ainda tentou demovê-lo da ideia, mas ele não a abandonou fácil. O tal Carlos havia dito que seria “mt difícil se aporximar dela durante o churras”, ao que ele respondeu, resolvendo a questão: “ñ vo pega-la no churrasco, vo fude-la no bloquinho que desce ali na Ceará, td mundo vai tá lá antes do churras”. Estava tudo preparado e… aconteceria dali a algumas horas, manhã quase nada, a uma distância considerável de sua casa. Era preciso pressa.

Quase saindo pela porta, lembrou-se de que dificilmente conseguiria passar despercebido se estivesse vestido com uma calça larga preta, de seis bolsos, e uma camisa de manga comprida, preta, com estampa da banda Korn. Abriu o guarda-roupa dos pais, que estavam viajando, passando o carnaval no Rio, e sacou uma antiga fantasia de pierrot, amassada, manchada de vermelho alguma coisa, estranhamente esgarçada na região da genitália. Apesar do esticado da roupa, na região abdominal, principalmente, assim passaria despercebido para conseguir parar o assassino. Saiu de casa com a certeza de que encontraria uma forma de pará-lo, sem planejar com antecedência, pois poderia se atrapalhar ao tentar seguir passos de um plano prévio.
Chegou com bastante antecedência à Rua Ceará, sentando-se na calçada da Santa Casa para esperar o desfile do bloco começar. Mas ainda faltava algumas horas, e acabou adormecendo.

Quando acordou, o sol queimava-lhe a cara, uma zoada ensurdecedora cegava-lhe por todos os lados, ele não conseguia distinguir bem as cores no momento em que acordava. Comprou uma água e jogou no rosto, e aquilo foi como uma pedra de gelo entalada na garganta. Agitou-se dolorosamente. Foi quando avistou Cecília, linda, vestida de Colombina mínima, apertada em um decote aferventado.

Sorriu. Sorriu infantil e abestalhadamente. Era, novamente, por um curto momento, o garotinho gordo, de óculos e cabelo ensebado, que conseguia calcular spins e tangentes, mas não conseguia trocar duas palavras sem cuspir em seu interlocutor. Por um curto instante, tornou àquela realidade em que assustava os mais sensíveis com seus rompantes violentos, na época em que precisava migrar para drogas mais fortes, das semanas inteiras em que faltava às aulas por causa de sua instabilidade emocional. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, trazendo-o de volta para a descida da Ceará.

E lá estava Pedro, aproximando-se de Cecília Colombina, vestido de Capitão Gancho. Era assim, então, que ele pretendia matá-la: enfiaria o gancho nela.
Rapidamente, olhou ao redor. Uma barraca de cachorro-quente revelava uma faca de cozinha em seu balcão. Correu e tomou-a na mão direita, sem mais demora. Imbicou no meio da multidão, acotovelando palhaços, mágicos, dançarinas de cancan.

Ao se aproximar de Cecília, percebeu que Pedro interpunha-se entre os dois e decidiu pegá-lo pelas costas, sem chance de fuga ou luta corporal. Acontece que Pedro tinha sorte como ele era desastrado e, devido à junção dessas duas características, ele acabou enfiando a pequena, desapontada e cega, faca na barriga de Cecília. Tamanha força empreendeu, que entortou a lâmina dentro dela, que sangrava não com uma fenda, mas com um buraco quase umbigo, na barriga. Ficou difícil retirar a faca e enfiá-la outras vezes, mas tamanha sanha tinha, que o fez, treze vezes, antes de ser alvejado por três tiros vindos de uma policial que vigiava o bloco do outro lado da rua.

Com a multidão dispersa, o meio da rua era apenas ele e Cecília, envolvidos em uma imensa poça de sangue, ela ainda agonizando, ele coberto com o sangue dela, com o dele e com seu próprio sêmen que escorria da perna para o asfalto quente e fúnebre.

Quando a ambulância chegou, conjuntamente com outros carros de polícia, uma Pedrita sexagenária professora aposentada, comentava com seu marido que aquele tinha sido seu aluno, capaz de brilhantismo e doçura, mas atormentado por um transtorno dissociativo grave. Pessoalmente, talvez ele tivesse pago um preço muito alto, mas o fato é que ele, pierrot, seguia para o necrotério no mesmo carro de Cecília, colombina, lado a lado, para além.

Foto: Ricardo Laf

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