Quarta-feira das cinzas

Jorge Rocha
revista [LIMBO]
Published in
3 min readFeb 1, 2016

--

Carla Diacov #carnavalgrandguignol

creio na morte
nas cinzas que habito
onde pisa cavalo cinzas
creio na morte da menina morrida na lomba do cavalo
um bife e tanto pensar assim
ai que me pegam olhando
creio
cinzas
creio no fio
creio no fio da vida

toda quarta-feira das cinzas meu pai me
levava para passear na rua dos sapateiros e das cutelarias
toda vez era chuva de cinzas
atrás da cutelaria central
havia isso dos cavalos com meninas
toda quarta-feira voltávamos de lá
toda quarta
meu pai cortava a pele das bochechas da menina
lomba a cavalo
enchia de jasmim seco
socava alho e ovinhos vingados
selava com pirão feito do melhor fluído biliar
batia no peito
do melhor
e cinzas
mimos dos amigos peritos
deixava pegar mosca e sol por três dias num quarto de hora na janela

com bons olhos ele fazia
picles com os dedos sem as unhas
com as patas sem os cascos ferraduras carrapatos
4 os pernis eram congelados para ocasiões de renascimento
CINZAS É SÓ UMA DAS FAMÍLIAS DA ESPÉCIE CERIMÔNIA

era a receita da família:
eu olhava de lá longe
minha miudice em tão doida para escalar para o dentro do cérebro do meu pai
o topo do universo
do meu universo pai metido em jaleco com abacaxis vermelhos
minha mãe me ensinava honrar agulhas
meu pai enfiava dias em quartos de horas numa só cozinha

antes de comer
de cortar de empalar de temperar
de lustrar
mimo dos amigos residentes
antes das quartas na cutelaria central das cinzas
antes e depois de dormir cantávamos o creio

creio na morte
nas cinzas que habito
onde pisa cavalo cinzas
creio na morte da menina morrida na lomba do cavalo
um bife e tanto pensar assim
ai que me pegam olhando
creio
cinzas
creio no fio
creio no fio da vida

das orelhas todas fazíamos
cinzas
PARA HONRAR
e não dizia que honrar era coisa que eu não sabia
PARA HONRAR A MESA OS PRATOS OS VIVOS OS GALOPES
minha mãe me ensinava costurar
os bigodes da menina nos restos de couro duro
PRECISAMOS HONRAR
não me dizia que honrar era coisa com bigodes de usar no rosto
PRECISAMOS HONRAR AS QUARTAS
ficava brava
MESMO QUE AS CINZAS DOS CANDELABROS
escápulas pintadas a gótico
mimos dos amigos legistas

creio
também nos restos do couro cinza
nas pequeníssimas poltronas para sarinha e selma
minha mãe me ensinava costurar para honrar
creio
embalagens
creio
para os doces para as crianças no caminho das quartas
cavalinhos cinzas

toda quarta-feira cinzenta meu pai me
levava para passear na rua dos sapateiros e das cutelarias
havia isso dos cavalos com meninas
PARA HONRAR OS SAPATEIROS
MAS QUE JALECO BONITO SENHOR AMÂNCIO
eu honrava sorrir meu pai elogiado em couro de menina
honrava saber a sobrevivência das famílias sapateiras e das sapatilhas de ponta

toda quarta-feira
com cinzas
meu pai me
levava pra ver bailarinas
honrava ver escapar bigode dos
róseos sobrecouros honrados com tanta tela mosquiteira
QUE ADIANTA PROTEGER DAS MOSCAS O CAVALO DA OBRA?
meu pai sabia cozinhar minha mãe me ensinava os cavalos

creio
no jaleco e na costura
o resto?
carnaval com bigodinhos no sulco mentolabial à mesa
o resto é cinza no dia errado
creio e
até hoje não sei honrar direito.

Imagem: Carla Diacov

--

--