Terror

Jorge Rocha
revista [LIMBO]
Published in
2 min readSep 15, 2015

Jorge Rocha #especialinferno

É com esse groove que são construídas as fábulas. Entretido com a leitura de um artigo sobre Cortázar, em plena noite de aniversário de Tom Waits, tive uma frase soprada entre meus ouvidos por um de meus poltergeists, antes do primeiro gole no copo de whiskey. “Raspe a página ao fim…”. Foi o que consegui entender, no limite da consciência, aquele espaço em que a mente rumina enquanto a cabeça está concentrada em outra tarefa. Ao perceber o sopro, por instinto, voltei minha atenção para ouvir a frase inteira, mas ela se dissipou nessa parte. Tentei afogar a frase com dois ou três copos de whiskey e quase pude vê-la se debatendo, patinhas espasmódicas em meio à bebida. Pensei que tivesse conseguido condená-la ao esquecimento pelo afogamento metódico, até que voltou, ainda incompleta, durante uma conversa trivial que se estendia além do devido. Voltou como uma tentativa de fuga de tão banal momento, como se houvesse ali, naquela frase aleijada, uma forma manifesta de attention whore jinglejangleando entre as pedras de gelo da minha memória. Quase saudei como bem-vinda a volta dessa frase soprada por um dos meus poltergeists, porque minhas assombrações particulares preferem solapar canções que o Senhor nos ensinou. Atribui o título de terror às estas frases costumeiras e explico o motivo. O terror é um inseto que se arrasta em uma superfície úmida e irregular, pelos cor de barro em patinhas que se dilatam e alongam, em movimento de equilíbrio duvidoso, porém estável. Produz uma gosminha enquanto anda o terror — hoje eu sei que é a própria antecipação do escorrer garganta adentro. O último movimento simbólico da aceitação: abra a boca e feche os olhos. Uma busca metódica por se estropiar. O mundo é um morrinho. A fábula está pronta e vem a seguir.

Jorge Rocha é jornalista, escritor e editor da revista [limbo]. Publicou os ebooks Murder Ballads e Usina Elevatória de Traição pela MojoBooks, além de Vórtex Você, pela Z Edições. Em 2013, publicou seu primeiro livro impresso, Tem uma nuvem que nunca sai do lugar (Bartlebee).

Foto: Bárbara Kaucher

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