As coisas-quase

Revista Machado
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2 min readMay 31, 2021

Pela janela, no sofá de casa, dava pra ouvir o barulho da chuva que caía violentamente no telhado. Os pés gelados e o excesso de agasalho denunciavam dias que tinham sido frios lá fora e também aqui dentro. Seus olhos atravessavam qualquer coisa que se colocasse a sua frente, estava presa em algum lugar entre o passado e o presente em momentos que pareciam fazer um movimento pendular. Pensava consigo mesma, secretamente, calma e silenciosa. As pálpebras piscavam lentamente e o peito acompanhava o diafragma, inspirando e expirando. O coração batia sem se perturbar.

Ela estava presente no seu próprio corpo, acompanhando cada movimento com atenção enquanto o mundo parecia ensurdecedor lá fora. E pensava, consigo, no que já não é mais, nas coisas que foram se fragmentando e esfarelando pelo caminho há meses quando o mundo virou de cabeça pra baixo. Uma sequência de fatos inacabados que ainda permeia a sua memória. Decidiu dar-lhe um nome: as coisas-quase. Sua respiração acompanhava cada momento, como se estivesse numa tentativa de dar um fim merecido a cada evento. Entre tantas coisas, lembrou da poesia que deixou inacabada num guardanapo manchado de batom depois de uma súbita inspiração na hora do almoço, ou em Madame Bovary, que tentou ler três vezes e acabou abandonando novamente na página 15. Pensou no beijo incompleto que se alojou no canto da boca naquela tarde ensolarada e que ficou dançando durante dias na sua cabeça antes de dormir, imaginando qual seria o gosto completo. Recordou das mensagens que deixou para responder depois e nunca mais o fez, e ainda pensou naquele amigo que precisava pedir desculpa pelo mal entendido no dia anterior. Lembrou do colar favorito que tinha perdido e nunca teve a coragem de procurar, temendo não encontrar nunca mais.

De pouco em pouco, foi tecendo um emaranhado de acontecimentos interrompidos pela vida ou por si mesma, até que olhou para a sua mão que segurava uma xícara de café que havia feito. Estava frio. Mais uma coisa quase, pensou. Ao retornar da teia de lembranças, sentiu que nenhuma daquelas coisas a frustrava de fato. De certa maneira, conseguia enxergar verdade e beleza nos pequenos acontecimentos que foram injustiçados pelo acaso e não tiveram um ponto final. Então, disse para si: as coisas-quase são as mais grandiosas, pois se não têm um fim, é porque são infinitas.

Laís Rodrigues dos Santos, nascida em 2000 e natural de Recife/Pernambuco. Estuda e pesquisa literatura e atua como professora de inglês há 3 anos. É cristã e apaixonada por arte, literatura e cinema. Está sempre com uma xícara de café na mão.

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