Desfazendo a imaginação da infância pura
“Boca do inferno”, de Otto Lara Resende, apresenta ao leitor crianças que carregam dentro de si o mal — e que sofrem, também.
Não sei quando fui apresentado ao autor mineiro Otto Lara Resende, membro do “Quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse” (se você não sabe o que isso significa, dê uma pesquisada). No entanto, lembro de ter lido uma crônica de sua autoria que me deixou impactado: “Vista cansada”. Li e reli, e ainda hoje sinto o impacto daquelas palavras. A crônica está disponível online para quem quiser ler e ser impactado, assim como fui. Já sabia que o autor mineiro tinha uma visão de mundo que se assemelhava ao existencialismo francês; a leitura de “Boca do inferno”, um livro com sete contos, o confirmou. Mas não estamos diante de um existencialismo puro. Ah, não. Não sei se poderia chamar ou colocá-lo naquele existencialismo de viés cristão. Por ele ser, o autor, de formação católica, creio que seja mais adequado assim.
Mas do que se trata “Boca do inferno”? Em todos os sete contos encontramos aquela narrativa gostosa de se ler, bastante bucólica, descrevendo cenários pacatos de casas familiares e paisagens interioranas, e o autor narra esses pormenores artisticamente, fazendo com que o leitor sinta-se imergido naqueles cenários. A atmosfera religiosa, mais explicitamente católica, está sempre presente. De forma mais explícita nos dois primeiros contos: “Filho de padre” e “Dois irmãos”. No primeiro, um garoto órfão que é criado pelo padre da cidade, mas que desde os quatro anos sofre agressões do seu “pai”. Até que, como se a decisão estivesse dentro dele há muito, decide pôr um fim em tudo aquilo — e sua fuga para uma caverna, que era conhecida como “boca do inferno”, explica o título dado para a coletânea de contos. O que acontece é que, vivendo à margem, Trindade sempre esteve à boca do inferno, embora vivesse numa casa religiosa e adjunta à igreja. Já em “Dois irmãos”, acompanhamos Gilson e Mauro, dois opostos. Mauro, irmão mais velho, é o exemplo da família; já Gilson, ninguém sabe a quem puxou. Há ainda mais três irmãos mais novos, mas que quase não aparecem na pequena narrativa. Gilson tem que lidar com a sombra do seu irmão Mauro, pois ele sabe que é um caso perdido, que não sabe orar direito, e não tem aptidão para as coisas religiosas. Enquanto Mauro é o destaque da catequese, Gilson luta para decorar as respostas do catecismo. Em vez de ir à aula na matriz, vai à sorveteria e ao cinema. Mauro sabe de tudo, porém não dedura o irmão. Gilson fica ainda mais aflito, pois a bondade do irmão põe em evidência a sua maldade. A mãe sempre dizia que não sabia a quem ele tinha saído. Até que o irmão morre, um acontecimento abrupto, e Gilson tem que carregar o fardo de ser igual a Mauro. Não suportando as comparações e futuras exigências, tendo sempre o “fantasma” do irmão a lhe perseguir, ele acaba cometendo um ato que dará um fim ao seu sofrimento e um sentido para, enfim, dar bons frutos.
O terceiro conto, “O porão”, é o mais trágico e perturbador de todos. Floriano é daqueles garotos inquietos, que saem dando chutes em cachorros, roubando ovos de galinhas, matando tatus com uma pedra. Na narrativa o dia está ensolarado, de uma luz fortíssima que contrasta com o porão da casa de Floriano, sempre escuro — uma espécie de escuridão que carrega consigo coisas terríveis, sussurros, uma atmosfera propícia ao não-dito da existência. Floriano vai até a casa de seu amigo Rudá e o convida a ir até o porão onde está a sua bicicleta. O amigo era habilidoso com as mãos, o que não podemos dizer de Floriano. Todavia, ele logo vai perceber que sim, suas mãos eram habilidosas em uma única coisa… Nesse conto em que luz e escuridão se contrastam, a escuridão acaba levando a melhor — o lado escuro, mal, de Floriano ganha forças no porão e, depois de uma quase experiência sexual com Rudá, o desfecho é mortal.
Esses três primeiros contos dão o tom de “Boca do inferno”. E como se para quebrar essa sensação terrível no leitor ou para que ele possa respirar, há o conto “Namorado morto”, em que a doce Dorinha sonha em namorar um coleguinha, porém ele acaba morrendo. Os contos seguintes “Três pares de patins”, “O segredo” e “O moinho” retomam o tema “infernal” das crianças. Há quem diga que o inferno são os outros, e talvez seja verdade. Mas as crianças de Otto Lara Resende carregam o inferno dentro de si mesmas e acabam lidando com seus próprios demônios ainda pequenos — aquela fase em que os adultos as ignoram por completo, seja desacreditando de suas palavras (como no caso da protagonista do conto “O segredo”, que é abusada por homens mais velhos e ao denunciar seus abusadores, é desacreditada pela mãe e avó), ou até mesmo negligenciando os próprios filhos, vendando os olhos e fingindo que tudo está bem. Para mim, o conto mais triste é “O moinho”, o que encerra o livro. Pensamos que haverá alguma esperança, algum alívio, mas o que o autor nos dá ao término é umas boas horas de reflexão sobre tudo o que lemos.
“Boca do inferno” é um livro que continua vivo mesmo após o fim de sua leitura, o que ocorreu em uma sentada só. Até hoje fico pensando naquelas crianças e imaginando o que aconteceu com elas depois do ponto final. Não diria que o autor odiava suas personagens, pelo contrário; há certa identificação com elas. O destino que a maioria delas sofrem é um retrato do que ocorre no mundo real, não o daquele imaginado por todos nós. A infância é tão cruel — ou pode ser tão mais cruel — quanto a fase adulta da vida.
Mas onde entra o existencialismo aqui? Bem, temos quase sempre esse movimento de ação para dar significado às coisas. Esse momento abrupto, em que as personagens se sentem vivas e livres para serem quem são. Esses atos que determinam que elas estão “aí”, jogadas na existência, vivendo em um mundo em que o sofrimento não tem propósito para elas. Elas fazem aquilo que nunca se esperam delas, fazendo com que olhemos para elas como o que são: seres humanos. É que temos o hábito de ver as crianças como uma espécie diferente, mas as crianças de Otto Lara Resende são reais e humanas — tão humanas que até nos assustam.
A vingança, a angústia, o medo, a inquietação, a descoberta sexual, a sede de arrancar sangue, de ser amada, o incesto, o abuso, a violência, o suicídio. Esses temas são explorados no curtinho, mas incrível “Boca do inferno”. A edição ainda traz um belíssimo ensaio escrito por Augusto Massi.
Boca do inferno — Otto Lara Resende ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤPáginas: 192ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤCompanhia das Letras
Allenylson Ferreira, idealizador e editor da Revista Machado.