Como manter a sanidade sendo brasileiro
São tempos sombrios. Ministros da saúde caíram em plena pandemia avassaladora. Lidaram com vidas como se lidam com coisas, como se fossem objetos descartáveis, números no espaço e cadáveres abstratos a serem enterrados por um presidente que não quer ser coveiro — embora tenha lutado para o ser. Como manter a sanidade em meio ao caos nacional? A política não cheira bem há pelos menos 130 anos. A saúde está entregue nas mãos de Deus — e ai de nós se não fosse Deus a proteger-nos. Não, meu amigo cientificista. Você pode bradar que só a ciência importa, mas não dá para tirar do cenário os livramentos divinos.
Mais de 400 mil mortes. De fato, é uma peste terrível. O vírus é apenas um dos males, apesar de ser o mais fatal, a ser enfrentado.
Muitos já não enlouqueceram por ter fé no Deus transcendental, que é um porto seguro em meio ao caos diário. Para o homem comum, ter fé em Deus é importantíssimo para não sucumbir à loucura generalizada. E esta loucura está espalhada por todos os lados, negacionistas ou cientificistas. A ciência é importante, e temos que, antes de botar uma fé cega em teorias conspiratórias propagadas pelo WhatsApp ou tratamentos duvidosos receitados por tias e tios nos grupos do Zap, acreditar nos cientistas que têm a vocação de fazer o bem e empenhar-se para que vidas sejam salvas através de seus estudos e vacinas. Não podemos crer que todos os cientistas estão mancomunados em uma teoria maluca para matar toda a população e ver cada brasileiro passando fome, perdendo emprego, morrendo aos milhares.
O vírus, que muitos negam, está cumprindo este papel sem ter entrado em conselho com cientistas, políticos, jornalistas, et cetera. Qual a dificuldade em ver o óbvio? Mas o óbvio, para o brasileiro, é impossível de se crer. Soma-se a tudo isto a incompetência de nossas autoridades constituídas. A quem recorrer? À uma ciência que não conforta e está aprisionada a um mundo pretensamente hermético? Sim, a religião é importante. Crer que há Alguém olhando por nós e nos protegendo é o que nos livra da loucura. Todavia, não há mal algum em também não crer no transcendental. Mas o que não podemos é tirar do outro, a quem queremos tanto ver bem, o seu consolo e esperança em meio a tanta dor.
As redes de apoio, mensagens positivas, a arte, literatura, música, cinema (streaming), uma boa refeição, um olhar empático, conversas distraídas, enfim, todas estas coisas também ajudam a ficarmos sãos em um país que nega o bem a todos, enterra todas as esperanças, mata os nossos entes mais queridos e tenta a todo custo fazer-nos desistir de nossa pátria interior — ou supratemporal, pois não somos desta pátria terrena.
E claro, nunca esquecer de usar máscaras, lavar bem as mãos com álcool em gel ou 70, evitar aglomerações e ficar em casa. O Brasil tem o poder de elevar à potência máxima todos os problemas, e não são apenas os políticos que têm essa culpa. Albert Camus, em “A peste”, traduz bem o nosso estado:
Teriam nossos concidadãos, pelo menos os que mais haviam sofrido com essa separação, se habituado à situação? Não seria inteiramente justa essa afirmação. Seria mais exato afirmar que, tanto moral quanto fisicamente, sofriam com a desencarnação. No começo da peste, lembravam-se nitidamente do ente que haviam perdido e sentiam saudade. Mas, se se lembravam nitidamente do rosto amado, do seu riso, de determinado dia que agora reconheciam ter sido feliz, tinham dificuldade de imaginar o que o outro podia estar fazendo no próprio momento em que o evocavam e em lugares de agora em diante tão longínquos. Em suma, nesse momento, tinham memória, mas uma imaginação insuficiente. Na segunda fase da peste, perderam também a memória. Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o que vem a dar no mesmo, ele perdera a carne, já não o sentiam no interior de si próprios.
Allenylson Ferreira, 26, escritor pernambucano. Publicou um conto e vem escrevendo outros tantos em seu blog no Medium. Idealizador e editor da Revista Machado.