Entre ele e eu

Revista Machado
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4 min readJun 1, 2021
Golconda (1953) — René Magritte (1898–1967)

Preâmbulo: Alguns detalhes da minha história parecem com cenas de um filme surrealista. Então, a fim de manter sua sanidade mental, aconselho a pensar que eu estava onírico quando vivi tudo isso. Não passa de um sonho, mas reitero: foi real.

Os personagens: Eu e ele.

Ele devia estar muito irado comigo, afinal eu tinha quebrado suas leis. Ah! Esqueci de informar: ele é o Legislador.

No nosso Estado, as leis são um pouquinho diferentes das demais. Isto porque é julgado a moral em detrimento da ética. Você não precisa adulterar, pela luxúria já quebrou a lei; nem precisa matar, pelo ódio ao vizinho já quebrou a lei. Rígido não? Pois é, assim aprouve ao constituinte.

Antes de seguir a história, tenho que falar mais sobre ele, a Autoridade máxima, até porque como a própria palavra sugere — autor(idade) — ele é o Autor do nosso Estado. Porém, ele não estava sozinho quando fez o Estado, nem quando fez a Lei. Como disse anteriormente, nosso Estado se baseava na moral, tanto que o nosso decreto Erga Omnes era o amor. Deveríamos antes de mais nada amar a ele que é o Executivo, e uns aos outros, cidadãos.

Estava no tribunal e diante de mim estava ele, que é o Juiz (espero que você esteja começando a entender o preâmbulo).

Eu era o réu, e o adversário me acusava, de fato, sua difamação não era calúnia, pois prevariquei a lei. Alguns dos meus crimes foram: Luxúria, ira, soberba e inveja (pelo menos dos sete pecados capitais), além de egoísmo, narcisismo, hedonismo (e tantos outros ismos que o leitor conhece). Para a gravidade dos meus crimes, merecia a pena de morte; mas a constituição do nosso Estado não permitia, era cláusula pétrea (em outra constituição se acrescentaria: exceto em caso de guerra). No nosso Estado ninguém morria (uma punição fácil), em vez disso era aplicado (com aplicabilidade imediata, direta e integral) a prisão perpétua, onde o cidadão sofria coisas que ninguém sabia, só o Legislador. Sabíamos que era muito ruim, até porque ele mesmo tinha criado aquele lugar. Lá tinha também algum sensor tecnológico que identificava quem fosse culpado. Ouvíamos falar que, se um justo fosse colocado lá, a porta começava a se deteriorar e caía diante dele. Não sabíamos em quanto tempo, nem como isso funcionava, aliás, nunca um justo foi parar lá! Fico indagando como será que ele fez isso? Ele é a Sabedoria em pessoa!

O Juiz sabia que eu era culpado, não havia nada que eu pudesse fazer quanto a isso, pois havia quebrado desde a primeira lei que era amá-lo! Ah!, ninguém amava como ele, tanto que nós dizíamos: Ele é Amor! Não à toa que a lei se baseia na moral, tem tudo a ver com ele. Continuando: Eu podia esperar que o Juiz me declarasse culpado, uma decisão que transitória em julgado, me mandasse para a prisão. Não tinha palavras que meu advogado pronunciasse que pudesse me livrar. Desculpe-me, não o apresentei direito: Ele é o Advogado.

A partir de agora, não sei explicar o que houve, se abriram uma emenda constitucional ou fizeram um mandado de injunção… Ops, nada a ver, isso é sobre constituição. Perdão, não entendo do que estou falando. O Advogado disse que a punição devia ser aplicada (com eficácia plena) para que a justiça tão prezada pelo nosso Estado fosse satisfeita, mas embora eu fosse penalmente imputável, alguém que fosse justo poderia assumir a pena, me substituindo e redimindo. Eu sei, eu sei. Em outro Estado a lei diz: “A lei não passará do apenado”, talvez essa seja a maior diferença do nosso.

Fora assim que o Autor parou na prisão, pela rigidez da lei do Legislador, somente ele que era Justo para poder me substituir. Sem dúvida, eu não merecia aquilo; pura misericórdia. Mas sabe o que aconteceu? Três dias depois, ouvi falar que o Juiz tinha saído da prisão! Foi o tempo que levou para a porta se deteriorar, cair, e então ele sair de lá. Não é que a história do sensor era verdadeira, como ele foi achado justo, não podia ficar naquele lugar!

Antes, eu não o amava, achava-o autoritário, e quem não acharia? Ele é o detentor de tudo! Se você percebeu ele é o Executivo, o Legislador e o Judiciário. Pois é, os três poderes, ele é… Onipotente — por falta de uma palavra melhor, (isso soa muito teológico). Agora que fui alvo do seu amor, como não o amar? Ele não é autoritário, mas ele é Autoridade (como já disse).

Por fim, o Juiz me declarou justo. A única coisa que fiz foi aceitar sua substituição por mim, e claro, agora vou obedecer a lei, que ficou bem mais fácil, ou melhor, possível — porque agora o amo.

Caro leitor, se te aprouver, considere que depois disso acordei.

Nascido em Imperatriz/MA, mas bem jovem mudou-se para Campina
Grande/PB.
Jeilson Morais Nascimento, de 22 anos, é um músico violonista,
compositor, escritor e poeta. Desde a infância já cantava no coral da igreja
onde sua mãe era regente, e seu pai lhe ensinou as primeiras lições de violão
clássico.

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