Formosa

Revista Machado
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3 min readMay 27, 2021

Arrastava-me por todos os lados. O Deus de Abraão e de meus pais havia me esquecido, embora eu sempre O estivesse procurando. No chão de barro, minhas pernas se transformavam em feridas; na rua pavimentada parentes me levavam em meu leito. A poeira possuía meu corpo; e a minha face, o pó de sandálias sujas. Minhas roupas rasgadas davam lugar a remendos que estouravam a cada três dias.

Meus irmãos levavam-me à porta do templo, e passava o dia a colher esmolas. Estendia a mão aos passantes; a cada gesto, apenas dois me davam moedas. O que ganhava, ajudava com a comida e conseguíamos ficar sem passar muita fome. A cada manhã minha jornada começava, e algumas vezes homens roubavam meu dinheiro. Toda noite fechava meus olhos, erguia minha voz ao Deus de meus pais, e chorava ao contar-Lhe tudo aquilo que eu passava. Nunca ouvi Sua voz, tampouco O vi dirigir-se até a mim. Deitado em meu leito, deixava rolar lágrimas claras, e caía no sono com olhos dormentes.

Então, um dia ouvi falar de um homem que curava cegos e coxos. Tentei convencer meus parentes a me levarem, mas a multidão era grande demais para que eu chegasse até ele. Deus tinha se esquecido de mim, e não queria que eu chegasse até suas maravilhas. Ele nasceu assim por conta do pecado dos pais, era o que todo mundo dizia. Acostumei-me ao juízo, e o sol me fazia sentir medo de Deus.

Não ouvi falar mais de tal homem; depois soube que fora morto devido às leis judaicas. Não entendi a situação, e ninguém a queria contar a um coxo. Ele fez seguidores que pregam por toda a Roma, era o que eu conseguia escutar. A cada novo sussurro, minha atenção era chamada. Onde estão?

E eu orava a Deus: me ajude, ó Senhor! Porém, apenas o barulho do vento era ouvido. Era-me inquieto o sono, doíam-me as pernas. Minhas roupas caíam em trapos; não aguentava mais meu próprio cheiro. Os dias engoliam-me, e a morte ficava clara no horizonte. Carrancudos, meus parentes me levavam pelas ruas de Jerusalém. Não erguia mais o rosto, não queria olhar para os céus de Deus e sentir o peso de Sua ira sobre mim.

E lá eu estava, sentado à porta do templo. A multidão passava mais à frente. Vi dois pares de pernas se aproximarem.

Umas moedas, pelo amor do Senhor.

As duas pessoas pararam e pelas vestes, percebi que eram homens. Olharam para nós, e fiquei surpreso quando alguém falou comigo. Ergui o rosto com lentidão, e dois homens me fitavam. Não tenho prata nem ouro, disse um deles, mas o que tenho isso te dou.

O homem ajoelhou-se e, pela primeira vez em muito tempo, alguém me tocou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, continuou ele, levanta-te e anda.

Não pude fazer mais nada a não ser levantar-me.

Gabriel Rodrigues tem 22 anos, nasceu e mora em Alagoas. Começou a escrever porque queria fazer a mesma coisa que os escritores que ele lia.

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