Jonas

Revista Machado
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10 min readMay 4, 2021

O vento escorregando, dançando no meio das asas da águia. Batem e batem e batem, rainha de todos os ventos, seus olhos captam o desenrolar dos acontecimentos abaixo, imprimindo em sua retina a glória de Deus…

A melodia do vento. A flauta é o mundo…

Mesmo das nuvens ela enxerga um homem cujos olhos brilham azuis, apesar de escuros e apesar dos anos e apesar das rugas. A paz o envolve na sua casaca. O mar, o céu e o Sol brilhando em dourados tons radiantes.

“Ah, mas que dia mais maravilhoso!”

Um toc-toc-toc no baú com a bota, só pra garantir que é um ótimo lugar para sentar. Uma coçada na barba grossa, porque é o que velhos marinheiros fazem. Uma respirada no ar do cais movimentado, sendo caminhado e alegrado pelos seus homens marujos que carregam o grande navio que partirá para Társis daqui a alguns momentos. Ah… O ar do cais, esse velho lobo do mar não cansa desse ar purificador do cais. Cheiro de sal, cheiro de trabalho, cheiro de notícias.

O horizonte não mente ao entrar nos olhos do capitão; será uma viagem muito tranquila. Brisas aprazíveis, onda dançante, nuvens peroladas. O capitão sorri e agradece, animado. Estica os braços, assobia e conversa.

Os céus, as águas, o navio.

Marujos caminham com caixas pesadas próximos ao capitão. Espadas embainhadas, mantos coloridos, botas pesadas. Pouco a pouco carregam o navio. Serão bons dias de comércio. Madeiras rangem e sacos chacoalham. Um floco de poeira se levanta do chão do cais, rodopia em torno do capitão, o vento o assopra para longe. E o vento ventania sempre venta por aqui.

“É certo que o vento ventará as velas com o carinho de uma deusa, e os remos não serão necessários até que cheguemos a Társis.”

O capitão vem com o vento. Ouve o vento. Vê o vento… O que ele diz? Olha pro lado e um jovem apressado pisa em sua direção.

— Capitão? É você o capitão? Pra onde vai esse navio?

— Nos destinamos a Társis, rap —

— Vou querer uma passagem. Aqui, pode ficar com tudo isso.

O capitão não entendeu bem aquele jovem, que num dia de harmonia era uma nuvem cinzenta, descabelada e apressada, dando moedas mais do que o necessário para a sua passagem em seu navio e já pisava na rampa de embarque, olhando pra tudo, apertando-se apreensivo, quando o capitão o gritou desconfiado:

— Rapaz, qual o seu nome?

— Jonas. Por quê?

— No que você está metido, Jonas?

— Em… Em nada, por quê?!

— Reconheço um fugitivo quando vejo um. Saiba que durante todos os meus anos no mar, nunca ajudei vadios, bandidos e maltrapilhos a se safarem da justiça a qual devem prestar contas.

— Não sou nada disso. Sou amigo da justiça, por isso mesmo me encontro em seu navio… para que haja justiça sobre a terra.

O vento, porém, vozeava outras palavras.

Zarpa o navio. Jonas na nave. Ventos nas velas. Voa a águia. Vão os marujos, carregam, cantam e saúdam o forasteiro que, de última hora, se integrou à tripulação.

Horas passam. O vento muda suas notas. No vasto mar vagam as vagas e vibra o casco. Uma conversa invade o espaço entre dois homens na vante do navio:

— O capitão está apreensivo com relação àquele Jonas. Não confio também no patife.

— Não, não, não. Não diga isso. O homem é gentil, amigável. Atencioso. Estava me ajudando e me aconselhando mais cedo, comemos juntos e conversamos sobre minha família.

— O que está acontecendo, meu velho? Sua filha novamente?

— Sim… você sabe, meu irmão. Há dias que não prego os olhos direito por causa de minha pequenina. Minhas esposas me culpam pelo sumiço e… sinto que está na hora de parar com minhas aventuras por esse vasto mar… estamos ficando velhos e logo deixaremos o mundo. Quero encontrar minha filha antes de afundar na terra para todo o sempre.

— Tenha bom ânimo, meu velho. Quem sabe a esperança não está batendo em nossa porta? Depois de tantas viagens, ainda não morremos e isso é muita coisa. Os deuses a qualquer momento podem sorrir pro senhor e sua família e você terá grandes surpresas.

— Qual dos deuses sorriria pra mim? Sou velho, perdido e há muito tempo já não me importo com eles. Não acredito que qualquer deus possa me ajudar em minhas situações.

O vento ventania sempre venta por aqui.

— Não diga isso, ainda há muitos momentos para se ter esperança. Estamos cercados de uma imensidão para muito além do que vemos. Assistimos a esse misterioso mar com seus monstros, mas para além dele, há um oceano de mistério. Você nunca pensou em ser tocado pelo mistério?

— Só gostaria que o mistério me desse esperança.

Um toque.

— O que foi isso?! — olhares desvairados. Vozes no convés.

— É… eu também senti.

Um trovão… em dia claro.

— De onde veio esse estrondo? — um vizinho grita de algum canto.

— O vento está aumentando! Chamem o capitão lá embaixo!

Um sussurro. Nuvens escurecem. Vendaval repentino.

O capitão sai de seu aposento vociferando:

— Por Ashtart!! De onde vieram esses ventos?! Rizar velas! Todas as velas! Tempestade à frente! Vocês, aos remos!! Teremos mais trabalho do que pensava em nosso caminho para Társis, rapazes. Misericórdia!

Em sua mente, o capitão não compreendia, estupefato estava. Com anos de experiência, conhecia as intempéries como uma mãe conhece sua filha, como um capitão conhece seu navio, como um Deus conhece seu mundo. Aquela tempestade não era natural, era mais que isso.

Negritude nos céus, relâmpagos dissonantes, ondas extravagantes.

Vento ventania furacão!

— Coragem, Rapazes! Essa é das piores! — gritou, desesperado.

— Capitão, estamos perdendo o controle do leme! As correntes estão muito fortes.

O esplendor dos mares mostra-se em seu furor mais inigualável. Ondas atingiam os céus e os céus atingiam os mares. O vento rodopiava, a chuva os esfaqueava e a nave girava quase sem rumo.

Chuva, vento, golpes. Chutes, socos, água. Água do céu, dos lados e de baixo. Água, água, água. O navio subia aos altos e caía, deslizando nas negras e agressivas águas. Era erguido uma vez mais, e todos gritavam apavorados com o rosto quase nas nuvens. E deslizava em transes de queda-livre sem fôlego. Os remos eram nada. Serviam para tornar os músculos dos homens do mar em um despropósito insignificante. Era dia, mas era noite. E o céu, o vento, o mar berravam com aqueles tristes homens…

— O que vamos fazer, capitão? — gritaram. Alguns caiam de um lado, outros tropeçavam uns sobre os outros, outros corriam, tentando salvar os mastros de se partirem.

— O mar quer nos devorar!

— Aaaah, deuses! Apenas desejo um último vislumbre de minha filha!

E clamavam, choravam, e vento… Medo, pânico, vento.

— Eu ofereço meus filhos a vós, ó deuses! — Relâmpago, gritos celestes, vento. — Toma-os para vós! Mas livra-nos…

— Rapazes, amarrem-se com as cordas — grita o capitão — Não quero perder nenhum homem hoje! — Os olhos brilhantes, cansados e enrugados do capitão atingem os céus e nenhuma esperança resta em seu coração. Só um murmúrio medroso. — Ashtart, livra-nos…

— Melcart! Tant! Livrai-nos!

— Precisamos oferecer um sacrifício.

— Nenhum homem meu morrerá hoje — censura o capitão. — Ninguém será sacrificado!

— Não temos animais? E as aves que iríamos transportar?

— Baal!

— Melcart! Não desejo a morte… aparte-a de mim!

— Lancem as aves ao mar! — ordena o capitão. — E continuem a clamar aos seus deuses. Talvez algum tenha misericórdia de nós.

O clamor dos homens de nada adiantava. A água há muito era uma capa grudada aos seus corpos, agarrando-os. Relâmpagos explodiam, corações borbulhavam e nuvens clamavam. A nave rangia, o vigor dos homens falhava, os mastros eram vencidos. Ofegantes, desesperados, desorientados, tudo prometiam e tudo juravam e tudo entregavam.

— Hadade! Eu sei que pode parar tudo isso! Entrego-te meus filhos. Hadade, Hadade!

— Berite, meu escudo, minha força! Ajuda-nos!

— Aserá, Dagon! Todos os deuses, acudam-nos!

Caixas cheias das mais belas aves eram trazidas do porão e lançadas ao mar. Mas o sacrifício em nada aplacava sua fúria.

— Joguem tudo — ordena o capitão — Os grãos, cereais, tecidos! Talvez com o navio mais leve e oferendas ao mar, sobrevivamos.

E assim fizeram seus fiéis, amados marujos. Caixas, sacolas, cargas iam aos mares. Com dificuldade os homens as lançavam. Titubeavam, cambaleavam, se estatelavam. O vento quase os ventava para fora da nave. E os clamores não cessavam…

— Onde está aquele Jonas? — o capitão grita.

— Ele está no porão. Está dormindo!

— O quê?! — indignado, o capitão desce apressado. O balanço das escadas, jogando-o de um lado para o outro, seu rosto batendo, seus joelhos ralando, seus olhos desorientados.

Chega na escuridão do porão, o silêncio sinistro que era o simples abafado da guerra tecida na paisagem exterior. Mofo, umidade, poeira… Quase nada sobrou no porão. Tudo lançado ao mar. Tudo. O capitão chora e, num canto, encolhido e embalado pelo caos da peleja no casco do navio, um homem.

— Acorde, Jonas! O que se passa contigo? Como ainda pode dormir, homem?! Há uma grande tempestade nos atacando! O navio quase já vai a se estraçalhar completamente!

Jonas levantou, perdido e assolado. Esfregando os olhos parecia que, dentro dele, algo se agitava sobremaneira. Algo ele sabia, algo ele percebia, algo ele omitia. Suas pernas tremeram de temor, de pavor, de medo. O vento furacão tufão. Maremoto, fogo e trovão. Seu coração ventou cem vezes quando o capitão vociferou:

— Clama a teu deus! Talvez ele se lembre de nós e então nós não morreremos! Ande!

E nas lufada de ar do convés, no lusco-fusco, clarão-ventania, negra onda do oceano, no deque, na ponte, sob a chuva, tempestade, agonia em gotas e água; sob o desenrolar dos céus, os homens gritam uns aos outros:

— Essa tempestade não é natural. Somos culpados disso!

— Venham! Vamos lançar a sorte e ver qual de nós é o culpado.

Na loucura, no caos, discórdia e pavor estrondoso e magnífico, Jonas se materializa, cambaleante, no convés. Encharcado de uma só vez, ornado pelas ondas, salteado pelo sal, chamuscado pela chuva. E os homens, com flechas coloridas, tiram a sorte — e a sorte, como um relâmpago celestial, cai sobre Jonas…

— Quem é você? O que causou esse mal?

Jonas, aflito, agoniado e são, balança os olhos pra cada lado, conhecendo, temendo e cedendo à morte…

— Quem é você?

— De onde veio? Qual sua terra, forasteiro? Qual o seu povo?

— Eu… sou hebreu. E temo ao Senhor, criador dos céus, da terra e de tudo que neles há.

Os homens o viram com espanto, então… Eis um grito do capitão:

— E é dele de quem foge?

Jonas se cala. O Vento ventania sempre venta…

— Diga-me! Se você realmente teme ao seu Senhor, diga-me! Livre-me do peso de ver meus homens perecerem tal desgraça! É do seu Deus de quem você foge?

— Sim! — trovão, águas, furacão… — Sou fugitivo!

O desespero se torna como a água que os impregna, se funde a cada homem, entra em suas almas. Alguns correm, outros se atiram ao chão, outros se escondem chorando. Caminham sem ver solução. O capitão, sereno e irado, observa o jovem Jonas e, em seu interior, sua alma clama por justiça e salvação. E chora por toda sua vida no mar, chora pelos que deixou na terra e chora por aqueles que confiaram nele. Suas lágrimas são sal do mar e voam de suas bochechas pouco depois de saírem de seus lindos abismos brilhantes. Porque o vento ventania sempre venta por aqui…

— O que você nos fez? — um clangor aflito de um vizinho.

— Por que você fez isso? O que faremos para acalmar o mar?

Jonas, de cabeça baixa, sentia o peso de sua revolta. O vento bate nele, o envolve e o conhece. Ele conhece o vento, se volta e compreende.

— Joguem-me ao mar… — ele diz para os que estão perto dele. — Eu sei que é por causa de mim que vocês estão sofrendo. Joguem-me! — grita — E ele se aquietará!

— Ninguém morrerá no meu navio! — grita o capitão. — Remem, homens, remem!

Os remos não resistem. O vigor vacila, em nada supera os céus. Madeira contra o mundo.

— É preciso, capitão. Joguem-me ao mar, agora! — Jonas recebe seu destino como um presente não muito desejado. Seus olhos caídos, seus ombros rígidos, sua voz vazia.

As mãos do capitão seguram a capa de Jonas com força, aproxima os olhos do jovem dos seus e, por um momento, encaram-se face a face… O medo os une.

— É melhor que isso funcione, seu hebreu maldito! — o capitão rosna e, com voz voraz e violenta vocifera ao vento — Senhor Deus, criador dos céus e da terra! Não culpe-nos por derramar sangue inocente! O Senhor fez como te aprouve. Homens!

Os homens entendem a ordem do capitão. Agarram Jonas, imóvel, entregue. Sacrifício. Clamam juntos com o capitão e para o mar o lançam…

Os homens veem seu voo pelas veredas celestes. O vislumbre do vagar dançante da vida. Um vulnerável vulto no vendaval. Vai, Jonas. Vai lá. Voe, enfim. O vento canta a sua canção.

Explodiu no mar! Vendaval. Ventania. Brisas leves, sopros, sussurros… Um raio de Sol no meio das nuvens brancas que se espalham pelo céu. E um mar cristalino e sereno. Um brilho, uma liberdade, uma confiança. Uma paz, uma calma, uma esperança. O capitão cai de joelhos e em lágrimas diante do espetáculo que se desenrola na paisagem. É um milagre impossível. E, em meio aos gritos de uma tripulação que reconhece sua salvação, o capitão fala baixinho, bem baixinho:

— O Deus de Jonas é o verdadeiro Deus.

— É o verdadeiro Deus! — alguém grita.

— O Deus de Jonas é o verdadeiro Deus!

— Ofereçamos um sacrifício ao Deus Criador!

E muitos se prostravam, choravam e adoravam. E o capitão encontra a linha do horizonte e, longe, bem longe, um enorme peixe, do tamanho de dez barcos, salta, gira nos ares, e mergulha novamente. E seu vento voou para o alto e o capitão vislumbrou o arco de cores nas nuvens, que mais parecia uma aliança. Sim, uma aliança entre o céu e a terra.

— Obrigado, Senhor Deus.

Rios de Carvalho, um carioca que vive pela arte do mundo, não a arte pela arte, mas a arte que alegra os corações das pessoas, arte que só pode vir do Criador. Ama açaí, música, teatro, literatura e passar um bom tempo rindo com as pessoas.

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