Minha jornada pelos sertões

Revista Machado
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4 min readJan 24, 2022

Quem nunca temeu encarar o clássico “Os sertões”, de Euclides da Cunha? A verdade é que nunca o li na escola, pois fui um adolescente bem tardio na leitura. Embora eu gostasse de ler, lia apenas fantasia infanto-juvenil e achava os clássicos enfadonhos. Lembro de ter largado “Memórias póstumas de Brás Cubas” no primeiro capítulo; apenas retornei muitos anos depois, e Machado de Assis, hoje, é um dos meus autores favoritos. Já tinha ouvido falar sobre Euclides da Cunha e o dificílimo “Os sertões”. Posterguei essa leitura por muito tempo, mas ano passado decidi encarar o tal monstro. E neste pequeno ensaio, conto como foi minha jornada.

O livro é dividido em três partes: A terra, O homem e A luta. A obra vai narrar, de forma jornalística e literária, a Guerra de Canudos. A personagem principal deste livro é o peculiar e santo Antônio Conselheiro, porém há outra personagem principal: o próprio sertão. Em “A terra”, a leitura é mais extenuante, pois por não estar acostumado com o vocabulário arcaico e os conceitos geológicos tratados com precisão pelo autor, as dificuldades em transpor esse primeiro capítulo é grande, mas vai tornando-se fluida a leitura quando nos acostumamos com o modo de escrita de Euclides da Cunha. É impressionante, sim, o seu conhecimento geográfico-geológico, fazendo referências a autores especializados nesse tema e a teorias, também; pessoalmente, fiquei um pouco perdido tentando localizar imaginativamente todas as paisagens descritas. No entanto, quando encerra-se o capítulo e partimos para o posterior, “O homem”, a narrativa começa a nos envolver de uma forma incrível.

É interessantíssimo as descrições dos vários tipos de homens que o autor tomara conhecimento naqueles sertões, mas não apenas; trata-se, se posso afirmar tal, um estudo sobre os vários tipos de homens brasileiros, em especial o sertanejo. Esse capítulo é um mergulho na antropologia brasileira e, sem sombras de dúvidas, um tesouro a ser apreciado e resgatado por nós, leitores do século atual. Enquanto acompanhava o autor em suas descrições dos tipos brasileiros, pensava comigo mesmo: como somos ignorantes da nossa própria gente! Mas não ache que tudo é enfadonho e técnico demais; há uma linguagem técnico-jornalística, mas o acabamento literário e o talento — ou dom — do autor em modelar as palavras de forma artística não permite que a narrativa se torne engessada demais, nem sentimentalista demais. Há quem o acuse do primeiro tipo, outros do segundo. Para mim, mero mortal, considero seu estilo ali no meio, mantendo o equilíbrio constantemente.

Conhecendo, então, os tipos de homens — que demonstra a riqueza dos caracteres brasileiros, uma miscigenação que não permite o louvor de uma raça única, como os ignorantes pensam que assim deve ser — partimos para “A luta”, assim como partimos para a leitura de uma epopeia do tipo “Ilíada”. Mas antes que esqueça-me, o próprio Antônio Conselheiro é-nos apresentado no capítulo sobre o homem, este que é um dos grandes, e ainda incompreensível, talvez, homens que compõe a galeria de personagens históricos do nosso país. Santo ou agitador, assassino ou benfeitor, adversário da República e líder de uma revolução pró-monarquia ou vítima de uma República cruel?

Em “A luta” acompanhamos os preparativos para uma expedição do Exército a Canudos, esse refúgio religioso, uma espécie de paraíso na terra (considerado pelos seguidores de Conselheiro), no meio do Sertão baiano. Toda uma atmosfera é criada para fazer crer que o Conselheiro e seus seguidores eram perigosos para a República e notícias e opiniões nos jornais da época fizeram o trabalho para que todos os brasileiros apoiassem a guerra contra os fanáticos. E começa, a partir daí, a epopeia propriamente dita. O próprio autor evoca trechos das gregas, deixando assim ainda mais nítida essa similaridade com o gênero. Sim, são os fatos expostos; porém há todo um tratamento, para que não recebêssemos um mero livro com informações apenas. Creio que esse foi o maior triunfo de Euclides da Cunha. E, por que não, teria sido “Os sertões” nosso primeiro romance jornalístico-literário?

A narrativa da Guerra e dos massacres, primeiramente dos soldados republicanos — que foram humilhados em suas primeiras expedições, pois não imaginavam a bravura heroica daqueles sertanejos fanáticos — e, por fim, de uma vitória da República contra os agitadores pró-monarquia, é de tirar o fôlego. Desde os pormenores de uma execução até a descrição do clima, Euclides da Cunha prende o leitor parágrafo a parágrafo, subcapítulo a subcapítulo, assim como desperta um sentimento de revolta com toda aquela atrocidade cometida contra as pessoas pobres, a priori indefesas, e que entraram numa guerra não sabiam exatamente o porquê. É a descrição de como o povo é esmagado, ainda que tenha sido heroicos em lutar por suas vidas, por uma República — o Brasil oficial — que imaginava-se civilizada e justa, tudo em nome da “pátria”. Sim, “Os sertões” também pode ser considerado como uma denúncia. O próprio autor dissera o mesmo.

Minha jornada pelos sertões com o guia Euclides da Cunha foi enriquecedora e ao mesmo tempo angustiante, até mesmo chocante. É uma leitura obrigatória para conhecermos mais a fundo sobre os fundamentos em que a República se apoiou e ainda se apoia [?], e uma vergonha para a História. Para que, assim, não se repita.

Allenylson Ferreira, idealizador e editor da Revista Machado.

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