O exilado em nós

Revista Machado
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10 min readJul 21, 2021

Por Rian Rodrigues.

“A verdade é que o Inimigo, tendo estranhamente destinado esses animaizinhos medíocres à vida em seu próprio mundo eterno, resguardou-os de forma bastante eficaz do perigo de sentirem-se em casa em qualquer outro lugar.” (LEWIS, 2017, p. 153).

Parece existir em cada um de nós uma certa sensação de alienação, como se fôssemos alguém vivendo em uma terra estranha e, não importa onde estejamos, nunca nos sentimos realmente em casa. Independente de onde você se encontra, as aves daí nunca parecem gorjear da mesma forma que as de lá (onde seria esse “lá(r)”?). Os céus parecem ter menos estrelas; as várzeas, menos flores; os bosques, menos vida; a vida, menos amores (1). Diante desse sentimento de exílio (e das canções que o acompanham), tudo o que resta é o desejo desesperado de ir embora pra Pasárgada! (2) — ou, ainda, tentar edificar sua própria Pasárgada aqui mesmo.

Bem, se você vive em uma vida bacana, em um lugar muito belo e encantador, é possível que, em um primeiro momento, você pense que isso não descreve muito fielmente a sua condição. Mas basta olhar um pouco além para que nos deparemos com algo em nós que diz que o mundo está em desordem e que as coisas não são como deveriam ser. Afinal, estamos diante de circunstâncias terrivelmente marcadas por dor, sofrimento, mortes, luto, corrupção, fragmentação. E é por essa intuição de que as coisas não são o que deveriam ser que tão frequentemente tentamos mudar a desordem do mundo (muitas vezes através de esperanças depositadas em plataformas políticas, por exemplo). Em outras palavras, tentamos encontrar um fim para nosso sentimento de exílio, construindo nossos lares perfeitos, tentando amarrar as (várias) pontas soltas no mundo.

Por outro lado, mesmo que nos sintamos confortáveis e despreocupados com tudo o que acontece mundo afora (o que é bem difícil quando o sofrimento e a morte nos cercam de maneiras tão evidentes), logo somos despertados, com espanto, para um outro tipo de desordem, dessa vez não externa, mas algo que está dentro de nós, uma bagunça que também nos provoca um senso de que não somos quem deveríamos ser. Às vezes parece que somos estrangeiros e exilados até mesmo dentro da história da nossa própria vida, como se estivéssemos meio deslocados, como se nem todas as partes dessa narrativa se encaixassem muito bem ou fizessem tanto sentido.

É fato que a cultura contemporânea tem cada vez mais tentado expurgar esse senso de inadequação própria, proclamando o credo de que você precisa abraçar seu “eu” e ser autêntico e fiel a si mesmo. Mas a questão é que estamos diante de uma desordem conflituosa, e a busca pelo seu verdadeiro eu conduz a uma jornada interna em que você descobre um monte de coisas que não gostaria que estivessem ali. A ira, o egoísmo, a ganância, a inveja, o desejo de ser maior que os outros, a arrogância… Essas coisas são o seu autêntico eu? Por que só as coisas aparentemente boas determinariam quem você é de verdade? E, se você afirma que essas coisas não são o seu verdadeiro eu, logo voltamos ao nosso ponto: existem coisas em nós que sabemos que, de algum modo, não deveriam estar ali, mas, por mais que tentemos abafá-las ou, ao menos, esconder dos outros, elas continuam ali, lembrando-nos de nosso exílio interno, de que somos estrangeiros em nosso próprio mundo interior, incapazes de encontrar um lar “autêntico” ou organizar perfeitamente a desordem que encontramos nessa casa abandonada. Mais uma vez, ainda tentamos findar esses exílios, construindo refúgios a partir de nossos próprios esforços, para fazer com que nos sintamos bem com nós mesmos, às vezes até com as coisas que inconscientemente sabemos que estão erradas em nós, porém é mais “fácil” tentar expurgar o sentimento de culpa a partir do autoconvencimento de que “ninguém é perfeito” ou de que o problema está no outro ou no mundo, mas nunca em mim.

Essas tentativas de acabar com nossos exílios e construir nossas próprias edificações não foi muito diferente do que aconteceu em Babel, quando os seres humanos caídos tentaram construir uma cidade com uma torre que alcançasse os céus, a fim de “fazer um nome” para si mesmos, construir sua própria identidade, exaltando suas próprias forças e capacidades. Desde o Éden, a humanidade foi banida e enviada para esse exílio. A partir de então, os seres humanos têm vagado, tentando construir habitações permanentes, mas o resultado é apenas confusão e caos. Estamos a todo momento buscando um lar melhor, ao mesmo tempo em que vemos, com grande embaraço, que nossos melhores esforços para levantar nossos castelos e torres mostram-se vãos, porque, no fim, todos eles são feitos de areia, rapidamente destruídos e afogados pelo mar da desordem que permanece — tanto no mundo quanto em nós mesmos.

É evidente que, se você não for muito cínico diante da vida, você até consegue contemplar e captar a beleza existente no mundo, não apenas na criação natural, nas paisagens, nos mares, nas flores, nas estrelas que pintam o céu, mas também nas obras de arte, na música, na pintura, na fotografia, na literatura. Mas, quase que imediatamente, com um assombro, você novamente se depara com a feiúra, a fragmentação, o senso de inadequação das coisas que você contempla. A própria beleza já traz indícios, por si só, de que estamos diante de nada mais do que algo que funciona como uma espécie de placa que sinaliza a existência de algum caminho para além de si, mas que ela própria não é capaz de nos conduzir até lá. Algo que consegue mostrar a falta, mas que é incapaz de supri-la. Há beleza, mas ela, por si só, não satisfaz os olhos e o coração, porque ela logo acaba, de alguma forma, tornando-se monótona, sempre exigindo uma nova porção de êxtase inalcançável.

É, portanto, notável o fato de que, quando chegamos nas páginas do Novo Testamento, nós encontramos um homem que também esteve em exílio. Ele disse que até os animais possuíam suas tocas e ninhos, enquanto ele próprio não tinha um lugar para repousar a cabeça. Em outras palavras, ele era alguém sem lar, como um estrangeiro ou um peregrino.

Porém, mais do que isso, todos os quatro Evangelhos registram que sua mensagem central era a proclamação de um tal reino de outro mundo que agora estava chegando, em sua própria pessoa. De fato, o ponto central de sua história — ou melhor, da própria História e de todo o drama cósmico -, quando ele padeceu sob o poder corrupto de Roma (apenas uma outra Babel, marcada pelas tentativas humanas de edificar um lar), mas ressuscitou ao terceiro dia, foi precisamente a inauguração e a invasão desse novo reino. O seu sacrifício voluntário na cruz, que aparentemente havia sido sua derrota, foi precisamente o meio pelo qual ele triunfou sobre os poderes do mal e os envergonhou publicamente. E, através do túmulo vazio, ele invadiu com o poder da nova criação o território tomado pelo inimigo, declarando sua vitória sobre o pecado e a morte.

Em cada episódio da sua vida e ministério, que culminaram na cruz e na ressurreição, ele se mostrou como aquele que finalmente veio como o clímax de uma Grande Narrativa, como aquele que reuniria em si mesmo todas as pontas soltas e aparentemente sem sentido de uma longa história, para cumprir a promessa do Éden, de esmagar a cabeça da serpente, e conduzir a humanidade não de volta a um Jardim, mas a uma Cidade.

O pecado de Adão levou a humanidade ao exílio. O pecado de Israel conduziu todo o povo da aliança ao exílio. Todos os dias os pecados dos seres humanos continuam a levá-los a um tipo de exílio. Mas a verdade magnífica com a qual nos deparamos é que, quando Jesus Cristo anuncia que está trazendo o reino de Deus (e quando ele efetiva essa invasão através da sua morte e ressurreição), ele está declarando de uma vez por todas o fim do exílio, as boas novas, que haviam sido proclamadas séculos antes, de que o próprio Deus viria para redimir seu povo da maldição do pecado, por meio de uma nova aliança, destruir seus inimigos e governar sobre toda a terra, trazendo renovação sobre a própria criação, em um reinado de justiça e paz. Jesus é aquele que “não conheceu pecado”, mas, ainda assim, foi entregue pelos pecadores, para que nele, que é chamado o Caminho, pudéssemos chegar ao fim de todos esses exílios nos quais temos estado por nossa própria rebeldia. Jesus é aquele que põe fim aos exílios externos, garantindo-nos um novo lar. E também acaba com os nossos exílios internos, tornando-nos, de fato, um novo tipo de ser humano. Uma nova criação.

Aqueles que ainda são cidadãos de Babel, os que fazem parte da velha criação e da presente era, os que estão tentando fabricar sentido para a própria vida e encontrar um lar construído por seus esforços e tentando ser os protagonistas de suas próprias histórias fragmentadas, não serão capazes de experimentar os direitos de cidadania do reino celestial. Eles continuam gemendo com o anseio por um lar, porque Deus gravou a eternidade no coração humano, mas eles tentam satisfazer esse desejo com aquilo que é temporal. Eles também gemem com a inadequação do presente mundo, reconhecendo sua fragmentação. Porém nenhum desses seus gemidos comporta a viva esperança de que as coisas serão plenamente consertadas. Porque eles fazem parte do império das trevas e estão sob a autoridade de um usurpador, quando o verdadeiro Rei retornar para estabelecer plenamente seu reinado, todos aqueles que não se submeteram alegremente ao seu senhorio serão julgados com o presente século, por terem sido cúmplices de uma campanha de rebelião cósmica.

Os cristãos, por outro lado, já são cidadãos deste novo reino que foi inaugurado com a morte e ressurreição do Rei, portanto eles já possuem um lar que os aguarda. Mas eles também sabem que esse reino ainda não está presente em plenitude. Por isso, eles ainda são exilados, à espera de uma pátria celestial. Porém, diferente dos outros exilados, que não fazem parte do reino celestial do Rei legítimo do mundo, essa expectativa dos cristãos não é uma espera fútil, mas, nas palavras do apóstolo Pedro, uma “viva esperança”, porque já foi garantida pela obra de Cristo e hoje eles já podem experimentar uma antegozo dessa glória futura, por meio da presença do Espírito. E, por causa dessa viva esperança, os cristãos (essas criaturas estranhas de outro mundo) sabem que não precisam mais tentar fabricar um lar para si, a partir dos próprios esforços, porque o Deus da graça já os recebeu livremente em seu eterno lar. Eles não precisam mais construir uma Babel passageira e frágil, com uma torre que chegue aos céus, para criar um nome para si, porque eles aguardam a Nova Jerusalém, a cidade que desce dos céus, “cujo arquiteto e edificador é Deus”, e recebem um novo nome da parte do próprio Deus. Eles não precisam mais buscar fugir para Pasárgada a fim de tentar ignorar seu sentimento de exílio, porque eles sabem que há um perfeito lar que os aguarda — um lar de uma satisfação muito maior do que qualquer deleite momentâneo “na cama que escolhere[m]”; um lar onde eles são, de fato, amigos do verdadeiro Rei.

Devido a essa condição paradoxal, de serem cidadãos de um novo reino, mas ainda não estarem plenamente nesse reino, os cristãos ainda experimentam um outro tipo de insatisfação e falta. Pelo fato de terem sido criados pelo Eterno, seus corações, assim como o dos descrentes, também estão programados com o anseio pela eternidade. Porém, sendo agora habitados pelo Eterno e experimentando a presença do Espírito, os cristãos têm seus corações reprogramados com a expectativa da nova criação, que os mantém nessa constante tensão escatológica entre o aquilo já receberam e aquilo que ainda aguardam ser plenamente consumado. E, por causa disso, também gemem com o senso de sua própria inadequação diante dessa nova e viva realidade, como se ainda estivessem sob um molde deformado que não “cabe” muito bem na glória futura, porque eles próprios ainda se encontram manchados por essa era e só serão plenamente lavados da presença da ruptura e da fragmentação do pecado quando a fraqueza de suas tendas passageiras for engolida pela força da habitação permanente, com seus corpos glorificados e plenamente adequados ao novo mundo.

E, claro, nós ainda somos inadequados e, por nós mesmos, não “cabemos” no molde da nova criação. Mas Aquele que, através da sua morte e ressurreição, julgou a presente era, venceu os poderes do mal e trouxe o alvorecer dessa nova criação, é quem nos habilita e nos transporta, por sua graça, para essa nova era, essa realidade de shalom e perfeita harmonia. E todo aquele que tem essa esperança de uma realidade futura e reconhece a sua presente inadequação começa ainda hoje, mesmo que de forma imperfeita e fragmentada, a “dançar” segundo uma nova melodia (alguns passos desajeitados e meio desconexos para uma canção tão majestosa…) e a “respirar” o ar da eternidade (uma fragrância de vida tão renovadora que contrasta tão fortemente com o odor da morte e da desesperança que ainda circula como um vírus nessa interseção de eras), despindo-se e revestindo-se, jogando a roupa velha de lado e cobrindo-se com novas vestes, preparando-se para o banquete do reino de Deus.

Assim, ainda vivemos nessa interseção, do velho e do novo, do caído e do renovado, do fragmentado e do ajustado, do imperfeito e do perfeito, experimentando um antegozo da glória que será revelada no futuro, e gemendo e suspirando com a esperança de que ainda a desfrutaremos plenamente, aguardando o Ato deste grande drama cósmico, em que toda a beleza que apontava para além de si será plenamente revelada no grande Rei. O Ato em que todas essas rupturas (externas e internas) serão consertadas, em que toda a criação será endireitada sob o reinado justo e perfeito do Senhor Deus. O Ato em que esses vasos frágeis de barro, em toda sua fraqueza e fragmentação, serão engolidos pela vida, quando o Rei voltar, tornando novas todas as coisas. O Ato em que todos os exílios do povo de Deus chegarão plenamente ao fim, porque, de uma vez por todas, eles estarão, de fato, em seu lar. Um lar cujo céu tem mais estrelas; as várzeas, mais flores; os bosques, mais vida; a vida, mais amores.

REFERÊNCIAS

LEWIS, C. S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

Lembrando que a premissa do livro é que tais cartas são escritas a partir do ponto de vista de um diabo, portanto as menções ao “Inimigo” são uma referência a Deus, enquanto os “animaizinhos medíocres” seriam os cristãos (!).

(1) Referência aos primeiros versos do poema “Canção do exílio” (1847), de Gonçalves Dias.

(2) Referência ao poema “Vou-me embora pra Pasárgada” (1930), de Manuel Bandeira.

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