O próximo da fila

Revista Machado
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4 min readMay 24, 2021

Era um dia reluzente, uma luz verdadeira. A temperatura, mais agradável do que nunca. Havia começado a distribuição de terras. Não era uma reforma agrária… Era o que estava acertado e desde sempre havia sido dito:

“Para entrar neste lugar não há esforço nenhum de vocês, mas o que se recebe aqui se colhe da vossa própria plantação.”

Mas era diferente do Brasil, ou de qualquer lugar que você identifique que seja parecido: todos na fila estavam vestidos com o mesmo tipo de roupas. E o irmão Uribe, daqueles mais antigos e experientes no vocabulário do Cristês, daqueles que poderiam garantir que estavam cumprindo bem sua função social, sorrindo amarelamente aos irmãos novos, menores ou desajeitados, daqueles que prometem oração pelos enfermos e cumprem esquecimento, e que convivem com os irmãos menores mais por pena do que por amor, até por vezes condenando quem só comparecia nas reuniões e não vivia o que dizia… o irmão Uribe estava na fila. Mas Uribe estava com pena mesmo era da irmã Cleide, coitada, que era a próxima da fila. Ela sentava nas fileiras de trás. Andava sempre atrasada! Sua vida era uma desgraça, pelo que ele notava. Notava somente, porque nunca havia perguntado.

O irmão Uribe ainda acreditava (pausa para uma risada) que os irmãos mais reconhecidos nesse mundo seriam, por óbvio, mais recompensados. Ele os veria morando ao seu lado, talvez até em uma casa melhor que a dele. Mas a casa dele seria maior que a da irmã Cleide, isso com certeza. E caso ele recebesse um sedan modelo 2030 para andar até o ano de 350.000d.C… então a pobre irmã receberia um carro popular.

A irmã Cleide, famosa irmã Cleide.

Ela havia chegado há pouco no meio e não batia muito das ideias. Ela entrou de cabeça.

Contaram-lhe amor, e ela amou.

Contaram-lhe perdão, e ela perdoou.

Contaram-lhe a graça, e ela creu.

Contaram-lhe a desgraça, e ela confortou quem a tivesse. Ela estava louca para ver o que ela ganharia, porque nunca tivera nada mesmo. Mas tudo que teve, se algum dia teve, não considerava como se fosse dela. Porque contaram-lhe uma história, e ela viveu aquela história como sua. Mas quando Cleide foi para sua casa certo domingo à noite, ela era motivo das mais diversas piadas, porque era feia, ou um pouco burrinha, enfim, sabe como é, né? Esse tipo de gente, assim, que a gente diz que é amigo mas tem medo de convidar para jantar.

Pois é. Esse tipo de gente. Que é o mesmo tipo que todos nós.

O Mestre gostava desse tipo de gente. E como gostava!

E aquele período de pensamentos e devaneios de cada um dos milhares de milhares de pessoas na fila logo se interrompeu por uma voz. Uma voz retumbante, e ao mesmo tempo suave, poderosa, e ao mesmo tempo tantas coisas. Uma voz que despedaçava os cedros do Líbano (está escrito), estremecia o deserto de Cades (está escrito), mas também falava baixinho (está escrito também, em carne) dizendo: “Estou com você”, quando Ana, de 6 anos, precisava de consolo por ter apanhado de seu pai sem que a família soubesse.

E aquela voz acabou com o burburinho imediatamente

“Cleide, se apresente.”

Como um trovão, a voz foi de um lado a outro da sala. E como crianças todos estremeceram enquanto o telão exibia tudo que Cleide havia feito pelos necessitados e ninguém sabia. E depois, quando o filme do irmão Uribe mostrou algumas mentirinhas do dia a dia? Enfim, sabe como é? Era só um esqueminha pra conseguir comprar o apartamento… nada mais.

“Cleide, seja bem-vinda. Aqui está sua chave, sua mansão é bem em frente à minha.”

Era uma frase pequena, mas já dava pra notar que seria uma boa parte da eternidade (existe isso de parte da eternidade?) de surpresas e mais surpresas.

O resto da fila estava atônito. O irmão Jack já espalhava a notícia: “Pessoal, parece que diploma de curso superior não vai valer. Vão separando a identidade aí.”

Metade estava horrorizada. Identidade? Quem tinha identidade?

A irmã Sara sugeriu: “Eu acho que a minha caiu em algum lugar pelo caminho.”

Mal sabia a irmã Sara… que ela nunca tivera uma identidade. E não seria agora o momento de solicitá-la. E na porta batia gente do mais alto escalão da Terra. Gritavam clamando por piedade. Mas a porta estava fechada

“O que está acontecendo, Mestre? Isso é um absurdo. Não estou entendendo nada.”

Vários reclamaram.

E o Mestre, de pronto, respondeu:

“Desde que falei a primeira vez, disse que das crianças era o reino dos céus, que os limpos de coração veriam a Deus, que nem todo que exclama “Senhor, Senhor” será salvo, e que meu julgamento era pelo que eu havia dito — as minhas palavras, que são como espadas, discernindo pensamentos e intenções do coração. O que, pois, vocês não estão entendendo?”

Seria cômico se não fosse trágico: era como no concurso público, que perguntava absurdos. Absurdos que desde sempre estavam escritos no edital e ninguém leu. Só que dessa vez não era concurso público. E também não era o domingo à noite. Não era a carteira cheia ou vazia, a roupa de marca ou a pior das malhas.

Não era o furgão caindo aos pedaços ou o sedan 2030. Era o irmão Uribe, a irmã Cleide, a irmã Ana, a irmã Sara… E só.

E, aliás, acreditando ou não, o próximo da fila é você.

Gustavo Souza nasceu em Porto Alegre, e mora na cidade de Indaiatuba, São Paulo. Tem 26 anos, e seus dois capítulos de livros técnicos publicados em nada tem a ver com a poesia. Resolveu se aventurar a publicar seus contos, que escreve de maneira amadora, influenciado demasiadamente pelas conversas com os amigos nas proximidades do Ermo do Lampião. Ah… as saudosas tardes de Nárnia!

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