O que Hogwarts tem a ver com Jerusalém

Revista Machado
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8 min readMay 7, 2021

Um poder maior que qualquer feitiço

Até onde consigo lembrar, a saga de livros Harry Potter foi o meu ponto de virada para me tornar, de fato, um leitor apaixonado. Eu li o primeiro livro mais ou menos com meus 12 anos e todo aquele universo me “encantou” (se me permite o trocadilho) de uma forma incrível.

Porém, foi somente anos mais tarde, quando eu fui alcançado pela graça de Deus, que uma luz (ou seria melhor dizer A Luz?) se acendeu na minha mente para enxergar algumas temáticas abordadas na saga sob uma nova perspectiva, com uma grande riqueza que, até então, embora óbvia, me passava despercebida.

Amor que se entrega

Como exemplo mais evidente, podemos ver no primeiro livro o amor sacrificial demonstrado através de Lílian Potter, a mãe de Harry, que morre para proteger seu filho do ataque de Lorde Voldemort, de modo que esse ato, de alguma forma misteriosa, cria sobre Harry uma proteção que o reveste contra a investida do antagonista. Esse sacrifício permanece ecoando ao longo de toda a saga.

Sua mãe morreu para salvar você. Se existe uma coisa que Voldemort não consegue compreender é o amor. Ele não entende que um amor forte como o de sua mãe por você deixa uma marca própria. Não é uma cicatriz, não é um sinal visível… ter sido amado tão profundamente, mesmo que a pessoa que nos amou já tenha morrido, nos confere uma proteção eterna. Está entranhado em nossa pele. (Dumbledore falando com Harry, em Harry Potter e a Pedra Filosofal, p. 255).

No sétimo livro, vemos uma retomada desse amor sacrificial, agora operado pelo próprio Harry, quando ele descobre que sua missão, na verdade, é morrer, e, então, se encaminha até Voldemort, como uma ovelha muda levada ao matadouro, entregando a própria vida, para permitir que outras pessoas fossem preservadas e para que Voldemort pudesse ser destruído. E, assim como o sacrifício de sua mãe lhe proporcionou uma proteção, a entrega voluntária de Harry também cria, de alguma forma, uma espécie de barreira sobre seus amigos, impedindo que qualquer feitiço os atinja de forma duradoura.

Você não será capaz de matar nenhum deles, nunca mais. Você não está entendendo? Eu estive disposto a morrer para impedir que você ferisse essas pessoas… […] Fiz o que minha mãe fez. Protegi-os. Você não reparou que nenhum dos feitiços que lançou neles são duradouros? Você não pode torturá-los. Você não pode atingi-los. (Harry Potter e as Relíquias da Morte, p. 536)

A grande oferta

Ainda que alguém não tenha muito contato com a Bíblia ou com algum contexto religioso, certamente é possível enxergar a semelhança desses episódios com a narrativa cristã sobre a morte de Jesus Cristo, que, em amor sacrificial, entregou a si próprio, “para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna” (Evangelho de João, 3:16).

Contudo, o que me chama mais atenção não é propriamente a semelhança, mas a diferença entre as duas narrativas. Afinal, você poderia esperar que o amor extraordinário de uma mãe fosse demonstrado através da entrega da própria vida em favor de seus filhos. Além disso, você também poderia até esperar que alguém entregasse a própria vida para que pessoas inocentes pudessem viver — veja através da História os grandes líderes que lutaram até a morte por uma causa nobre.

Mas, quando olhamos para o evangelho, vemos algo muito diferente de tudo o que a compreensão humana poderia conceber. Nas palavras do teólogo A. W. Pink: “O Evangelho prova ser de origem Divina porque ele anuncia o que a mente humana jamais poderia ter originado. As grandes verdades que o Evangelho proclama são sem qualquer concorrência ou comparação com todos os sistemas de sabedoria humana.” Mas, afinal, em que consiste essa diferença?

Em primeiro lugar, quando olhamos para o evangelho, vemos que Deus Pai não protegeu nem poupou a vida do seu Filho Unigênito, mas o entregou à morte em favor de outras pessoas. Embora Jesus fosse seu Filho amado, no qual ele tinha grande alegria (cf. Mateus 3:17), Deus, por meio do seu plano desde os tempos eternos, ao invés de preservar a vida do seu Filho, determinou que ele fosse o Cordeiro perfeito entregue como sacrifício. Nas fortes palavras do profeta Isaías, cujo ofício se deu aproximadamente entre 740 a 687 anos antes do nascimento de Cristo: “foi da vontade do Senhor esmagá-lo e fazê-lo sofrer […]” (Isaías 53:10a).

Em segundo lugar, Jesus Cristo não morreu em favor de pessoas inocentes e vítimas de injustiça: ele morreu por pessoas que, na verdade, mereciam justamente a condenação.

Contudo ele foi transpassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados. (Isaías 53:5).

Dificilmente haverá alguém que morra por um justo”, escreveu o apóstolo Paulo, “pelo homem bom talvez alguém tenha coragem de morrer.” (Romanos 5:6). Mas não foi esse o caso. Não somos o “homem bom” para o qual Jesus olhou e pensou: “Poxa, vida, olha como essa pessoa é maneira! Esse sim merece meu sacrifício!”. Não mesmo! “Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores.” (v. 8). Nossa condição era a de “inimigos de Deus” (v. 10). E Ele prova seu amor amando os que não eram amáveis — isto é, nós! O amor de Deus torna-se evidente no fato de que ele entregou o próprio Filho para morrer por pecadores, por pessoas que eram suas inimigas, que durante toda a sua vida o rejeitaram e se afastaram dele, como filhos pródigos. “Todos nós, tal qual ovelhas, nos desviamos, cada um de nós se voltou para o seu próprio caminho”, escreve Isaías. Mas, apesar disso, apesar de sermos culpados e merecedores da condenação, “o Senhor fez cair sobre ele [Cristo] a iniquidade de todos nós.” (Isaías 53:6). O escândalo da graça é que Cristo não morreu por pessoas que eram como bebês inocentes deitados em um berço, como o fez Lílian Potter. Cristo não morreu por Harrys; Cristo morreu por Voldemorts.

Por mais que nos achemos bonzinhos ou “nem tão pecadores assim”, por mais que tentemos encobrir ou maquiar o pecado que está enraizado em nosso coração, a nossa justiça (isto é, nossa “bondade” própria, nosso desempenho, nossa reputação perante Deus), como o profeta Isaías declara, é como trapos imundos (Isaías 64:6) e não tem valor algum diante de Deus para nos salvar, porque, mesmo as nossas melhores ações, por mais sinceras que sejam, estão contaminadas pelo pecado que habita em nós. Se pudéssemos nos salvar pela força do nosso próprio braço ou pelo quanto nós fazemos, não teria sido necessário que Jesus Cristo, o Deus eterno, o Verbo divino, se tornasse carne, ser humano como nós, e morresse em nosso lugar para pagar o preço que nós deveríamos ter pago e receber a condenação que estava sobre nós (e que permanece sobre todos os que permanecem rejeitando-o). Foi um favor imerecido que nós recebemos. Para nós, aquilo que é de graça custou um alto preço para Deus: o sangue precioso do seu Filho.

“Cristo se tornou maldição por nós. Literalmente, ele se tornou uma maldição em nosso lugar, como nosso substituto. Experimentou a plena fúria da maldição que deveríamos ter experimentado. É verdade que ele fez isso por nós, mas ao fazê-lo por nós, o fez em nosso lugar, como nosso substituto nomeado.” (Jerry Bridges, O evangelho para a vida real, p. 87.)

O jardim fora do Jardim

Porque a humanidade, pelo seu próprio pecado, foi expulsa do Jardim do Éden, Jesus foi levado a um outro jardim, não um jardim de paz, mas de agonia. No Getsêmani, antes da sua crucificação, Cristo experimentou o terror e a angústia da hora que o aguardava.

Então foram para um lugar chamado Getsêmani, e Jesus disse aos seus discípulos: “Sentem-se aqui enquanto vou orar”. Levou consigo Pedro, Tiago e João, e começou a ficar aflito e angustiado. E lhes disse: “A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem”. Indo um pouco mais adiante, prostrou-se e orava para que, se possível, fosse afastada dele aquela hora. E dizia: “Aba, Pai, tudo te é possível. Afasta de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, mas sim o que tu queres”. (Marcos 14:32–36)

O terror engolfou-o, ali deitado no chão, com aquele tambor fúnebre batendo em seu íntimo. Doeria morrer? Todas as vezes que julgara ter chegado a hora, e escapara, ele nunca realmente pensara na morte em si: sua vontade de viver sempre fora muito maior do que o seu medo de morrer. Contudo, agora não lhe ocorria tentar fugir, vencer Voldemort na corrida. Era o fim, ele sabia, e só lhe restava a coisa em si: morrer.” (Harry Potter e as Relíquias da Morte, p. 503)

Vemos na agonia de Harry Potter, aguardando sua própria morte, o cumprimento da sua missão, apenas um pequeno e fragmentado vislumbre de todo o peso que Jesus Cristo sentiu. Porque o que esperava o Filho naquela cruz não era “apenas” a dor física, os açoites, a coroa de espinhos, por pior que tudo isso, de fato, fosse. Mas ali, naquela cruz, era o próprio cálice da ira de Deus que o aguardava, isto é, a condenação pelo pecado humano.

“Jesus Cristo, naquele madeiro, suportou a culpa de Seu povo e permaneceu no lugar de julgamento deles. Então, todo o ódio, toda a santidade, toda a ira, toda a justiça e todo o julgamento de Deus, como uma luz branca ofuscante, tudo aquilo veio esmagando a cabeça de Seu Filho unigênito.” (Paul Washer, O verdadeiro evangelho, p. 89.)

Estávamos completamente incapazes de chegar e nos aproximar de Deus por causa do nosso pecado e da nossa natureza caída, então Ele fez o que jamais poderíamos fazer. Jesus Cristo recebeu a condenação que merecíamos para que pudéssemos receber, através dos seus méritos, aquilo que ele merecia.

Nós nos desviamos como ovelhas rebeldes. Mas Jesus, como ovelha muda levada ao matadouro, caminhou em obediência ao Pai, para trazer suas ovelhas de volta ao aprisco. Nada que nós fizéssemos poderia remover a nossa culpa ou mesmo mudar o nosso coração rebelde a Deus. Então o próprio Deus, embora fosse a parte ofendida, pagou um preço que não poderíamos pagar, desamparando seu Filho, mesmo quando ele bradou naquela cruz “Deus meu, Deus meu!” (Mt 27:46), para que, assim, pudesse nos amparar e nos acolher como filhos.

“Aquele Homem sofreu por poucas horas no madeiro e salvou uma multidão de homens de uma eternidade no inferno unicamente porque Aquele único Homem era mais digno do que todos os outros colocados juntos. Ele, sozinho, valia mais do que todos os homens juntos, e é por isso que o sofrimento Dele foi suficiente para comprar todos os outros”. (Paul Washer, O verdadeiro evangelho, p. 89.)

O Maligno não os toca

O poder do sacrifício da mãe de Harry foi maior do que qualquer outra magia, inclusive mais poderoso que a própria morte, que não conseguiu tocar Harry. Assim, o poder do sacrifício de Cristo, muito maior do que qualquer outra coisa, nos liga a Deus para sempre, e nada poderá nos separar desse amor, nem mesmo a própria morte.

Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 8:38–39).

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REFERÊNCIAS:

BRIDGES, Jerry. O evangelho para a vida real. São José dos Campos, SP: Fiel, 2015.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ PINK, A. W. O glorioso evangelho. Disponível em: https://oestandartedecristo.com/2019/03/21/o-glorioso-evangelho-por-a-w-pink/.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ROWLING, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ROWLING, J. K. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ WASHER, Paul. O verdadeiro evangelho. São José dos Campos, SP: Fiel, 2012.

Rian Rodrigues é cristão, cearense e cursa Pedagogia. Gosta de refletir e escrever sobre como o drama das Escrituras molda as nossas histórias e a totalidade da nossa existência. Cocriador e escritor do perfil do Instagram @coracaocruciforme.

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