O mito dos EUA como nação pacífica

Em “Pastoral Americana”, Philip Roth faz uma crítica ao imaginário idílico da nação norte-americana.

Revista Machado
Revista Machado
4 min readJul 21, 2023

--

Crescemos com a ideia de que os EUA é o modelo ideal de nação, com seus valores de liberdade e prosperidade. É, desde a tenra infância, incutida em nossa imaginação essa imagem idílica e paradisíaca. Não é de estranhar, portanto, que parte dos nossos maiores anseios esteja apontado para aquele tão próspero e pacífico país. Brasil? América Latina? Oriente Médio? São lugares sub-sub-subdesenvolvidos, sem algum valor ético e cultura para que possamos nos basear. A imagem dos EUA como protetor do mundo, como a nação-líder, o ápice dos bons valores a ser reverenciado pelos demais países bárbaros, é imposta — com muita violência, diga-se — ao resto do mundo que está distante do poder de influência dessa terra tão idílica.

Em “Pastoral Americana”, Philip Roth faz uma crítica ao imaginário idílico da nação norte-americana. O narrador-personagem, uma espécie de alter ego do Roth, inicia sua narrativa expondo suas memórias de infância, em um bairro judaico na cidade de Newark e toda a cultura e tradição própria dos judeus, assim como apresenta, desde já, uma personagem que havia exercido tamanho fascínio não apenas no pequeno Nathan Zuckerman, mas em toda a comunidade judaica. Com a guerra acontecendo, havia a necessidade de um escape ou algo a que se apegar. E por que não fazer do garoto bonito, com talentos esportivos e que quase não parecia um judeu, uma espécie de ídolo para aquela comunidade? Pastoral Americana é um estudo de personagem, o Seymour “Sueco” Levov, o mito em torno dele e, posteriormente, a realidade revelada por trás desse mito. Mas o romance é bem mais que isso; ele é, acima de tudo, sobre a realidade por trás do mito dos EUA como essa nação mítica, que exercia e ainda exerce fascínio sobre o resto mundo.

Temas como morte, identidade, conflitos política e ideológicos, assim como a futilidade do ideal americano, permeiam essa narrativa caótica e avassaladora, não poupando o homem comum, encarnado no Sueco Levov, a tragédia da vida. Ele mesmo, o Sueco, foi vítima daqueles que mais diziam o amar, além de ser vítima de si mesmo. Abraçando a tarefa de ser o escape, de ser o garoto que garantia vitórias no Beisebol e obedecia todas as regras, nunca saíra da linha, sempre acatava as decisões que o pai tomava para a sua vida, abaixava a cabeça e vivia os sonhos dos outros, enquanto os seus eram enterrados com a justificativa do bem comum, esse homem que se tornara ao longo da vida tão adorado, invejado, alçado como o modelo a ser seguido pelos demais garotos judaicos, não fazia a mínima ideia de que a sua vida não era vida e que aquela aparente paz e calmaria cessaria, vivendo seu inferno particular na terra.

Sueco se casou com uma miss e teve uma filha com ela. Bem-sucedido e agora administrando a fábrica de luvas do pai, ele decide se mudar para uma cidadezinha afastada da vida urbana, morando em uma casa antiga feita de pedra, com uma paisagem típica das pastorais, ele mesmo vivendo uma vida de pastor rural, cuidando da sua fazenda e família, vivendo tranquilamente sua vida pacata. Até que sua doce filha cresce, se revolta, torna-se comunista e coloca uma bomba em um mercadinho da cidade pacata, matando uma pessoa com a explosão. O caos se instala e Sueco se vê expulso do paraíso que pensava viver.

As personagens são interessantíssimas, cada uma a sua maneira, e percebemos que elas também lidam com o próprio caos, embora tentem disfarçar com discursos saudosistas de uma época em que a América era grande. Muito similar ao que aconteceu recentemente na política americana, com o discurso do ex-presidente Donal Trump apelando para esse mito da “América Grande Novamente”. Mas o romance de Philip Roth questiona quando e como e se isso aconteceu. Que ideal pacífico e idílico é esse que tantos falam? Porque desde os fundamentos essa América, que para os norte-americanos é a mesmíssima coisa que os EUA, fora violenta e sanguinária, a começar pelo genocídio dos povos originários daquela terra. E a sucessão de eventos violentos e sangrentos seria a regra. Por isso o título do livro soa tão irônico, já que o gênero pastoral tem a idealização de um lugar pacífico. Coisa que os EUA nunca foi.

Pastoral Americana é um mergulho de cabeça no caos da vida de Sueco Levov, esse homem comum que é o arquétipo do homem comum americano e o que se espera dele. É entender a crítica mordaz do Philip Roth à sua nação, e também à sua comunidade judaica. É uma obra que dificilmente cairá no esquecimento do leitor, mas bem provável que ele mude suas concepções sobre essa América falsa da propaganda dos meios culturais que foi incutida em todos nós desde sempre.

Pastoral americana, Philip Roth. 512 pgs, Cia das Letras.

--

--