Por que os evangélicos precisam ler boa literatura

Revista Machado
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6 min readAug 25, 2021

Uma considerável parcela dos evangélicos que possui acesso à informação é desprovida de uma boa imaginação. Quando possui, é uma imaginação pobre demais. Costumo observar como esses evangélicos se comportam, principalmente os jovens que estão presentes nas redes sociais — e dou ênfase ao Twitter. É lamentável acompanhar as discussões que se desenrolam, pois raramente há diálogos honestos e plausíveis — aqueles diálogos civilizados e que contribuem positivamente em direção a uma solução. Para ser mais específico: grande parte dos evangélicos carece de uma boa imaginação moral. A incapacidade de se colocar no lugar do outro, imaginar o que está sendo proposto para uma discussão, parar para refletir e só depois articular os pensamentos em forma de caracteres, são algumas características presentes. São demasiados velozes em dar conclusões em tons raivosos ou irônicos. Não sei exatamente onde li, mas a ironia é a pior maneira de expressar alguma ideia. Pior: até mesmo quando são irônicos, são ruins. Quem dera se a ironia deles fossem da estirpe de um Machado de Assis ou até mesmo de um C. S. Lewis. Fechados em si mesmos e em uma bolha que tomam como o todo da realidade, imaginam que estão contribuindo — quando na verdade estão fazendo tamanho desserviço.

A falta de sensibilidade e empatia também estão presentes. Pessoas que deveriam ser amáveis e sensíveis tomam como ofensa estas virtudes e colocam a virulência e insensibilidade no lugar daquelas, invertendo o exemplo que o próprio Cristo deixou. Não me surpreende a forma como somos representados pela mídia cultural: um bando de raivosos, cafonas e que estraga a mensagem do Evangelho. Não estou dizendo que a forma como as pessoas não cristãs que fazem parte da mídia cultural nos descreve é correta, mas entendo o porquê pensarem assim. Como pensar o contrário quando, diariamente, vemos gladiadores se devorando na arena das redes sociais, servindo como espetáculo de mau gosto para a plateia de usuários? É a ética da brutalidade e aniquilação do outro que não pensa igual a mim. Tudo isso encontra justificativa no mito de Guerra Cultural, conceito norte-americano que encontrou abrigo no Brasil com a panfletagem de Olavo de Carvalho e seus discípulos. Admira-me muito que, ainda hoje, existam cristãos que acreditem nessa tal guerra e se alistem a esse exército virtual (evitei o termo “milícia” por motivos nem tão óbvios assim).

A imaginação que essas pessoas possuem é forjada [apenas] através de… livros filosóficos, teológicos ou gregos, como um todo. Em uma espécie de anacronismo tosco, acham que a sociedade daquela época (a.C e dos primeiros séculos d.C) é um modelo a ser imitado, e então imaginam-se como baluartes de uma cultura em extinção. Para parcela desse grupo, a cultura ocidental parou com os gregos. Mas esse grupo é até dotado de certa inteligência e imaginação moral, mas limitada e atrasada. O outro grupo nem esse tipo de imaginação possui, pois apenas vê o mundo em tons teológicos dogmáticos, em que tudo precisa estar de acordo com tal confissão de fé ou tal livro teológico de tal autor protestante. Se algum tema relevante não está dentro do que pode ser considerado por um cristão, então o simples questionamento sobre os males e pecados sociais encontrarem refúgio entre cristãos é um claro sinal de que todos os que querem dialogar sobre esses temas passaram por uma espécie de “lavagem” e estão em processo de “ideologização”.

Recentemente, surgiu uma discussão sobre um autor muito importante para a tradição protestante, em específico a reformada. Jonathan Edwards, o autor que esteve mais uma vez no centro de uma polêmica entre os cristãos, era a favor da posse de escravos e até mesmo possuía escravos. Muitos ficaram surpresos com o fato que, também para mim, era inédito; mas para os estudiosos do autor, é algo nem tão inédito assim. Então, mais uma vez, a arena estava aberta para a digladiação entre os evangélicos. Uns, abominavam não apenas o pecado de Edwards, mas demonizava até mesmo a sua pessoa; outros, como se possuir escravos fosse tão natural como possuir uma vassoura, não entendiam a relevância da polêmica e logo tacharam aqueles que levantaram a discussão como pessoas que queriam notoriedade, ou apenas “lacrar”. Para os dois tipos de pessoas, a falta de uma boa imaginação moral é a causa dessas reações tão toscas.

Já estive entre o grupo que descartava qualquer forma de discussão sobre os males sociais e raciais, que acreditava que uma guerra cultural estava em curso e que a desmoralização do oponente era a forma de vencer tal guerra. Por isso escrevo de forma tão veemente sobre o assunto, pois comecei a perceber que o mal estava em mim, não no outro.

Por uma boa imaginação moral

Analisar o problema sem apresentar uma solução seria desonesto de minha parte. E estaria agindo de forma injusta com os leitores da Machado. Não sei se é uma solução eficaz, porém acredito que encontrará acolhida em um ou outro que, analisando a si mesmo, pode se reconhecer em um daqueles grupos que mencionei anteriormente. Há muito que repito para os meus amigos: leiam boa literatura. Não insisto nesse ponto por mero capricho meu, mas por querer que eles tenham uma imaginação moral sólida. Digo que a boa literatura é capaz de curar os males e restaurar imaginações cauterizadas. Sou contra a leitura apenas de livros teológicos, pois isso tem surtido um efeito negativo. Por quê? Quando lemos teologia, estamos lidando com informações que tocam o nosso intelecto e, na maioria das vezes, deixam nossos afetos intactos. A nossa imaginação forma-se a partir de nossos afetos, nossas emoções. Então se eles não são estimulados, como ter uma boa imaginação? É quase impossível. Não me surpreende ver alguns bons teólogos com uma imaginação tão ruim e, consequentemente, insensível ao outro.

Quando o tema racial entra em pauta e as discussões pipocam aqui e ali, não me vejo apenas intelectualmente envolvido — mas emocionalmente, também. Já que usei a polêmica citada anteriormente sobre o Edwards, como discutir o fato dele possuir escravos sem imaginar o que significava para os escravos estar naquela condição? Como posso apenas me importar com a reputação de Edwards, quando sua atitude pecaminosa feria a dignidade de outros seres humanos criados à imagem e semelhança de Deus? Como relevar esse fato com o argumento de que ele era filho de sua época, mesmo que na mesma época outros homens agiam de forma contrária a de Edwards em relação ao escravagismo? Lembro-me do romance “O sol é para todos”, da autora norte-americana Harper Lee. Creio que, se tivéssemos mais compaixão e o olhar de uma criança, agiríamos como Scout — a menininha protagonista do romance que, presenciando cenas racistas e o julgamento de um negro inocente, não entende o motivo daquelas pessoas serem tratadas como sub-humanas. É quando imaginamos a dor do outro que temos mais sensibilidade em reconhecer a nossa própria condição e limitação, e entender que aquele problema não foi e não é um problema abstrato a ser esmiuçado ou desconsiderado.

É consumindo, ou melhor dizendo, nutrindo-se de boa literatura que a nossa imaginação ganhará vida e nos ajudará a lidar com as mais diversas situações de forma mais sensível e amorosa. Não consigo imaginar a dor do outro se não me coloco na pele dele, se não vivo a vida dele. E a literatura proporciona isso de forma poderosa e transformadora. É impossível ser um leitor literato, usando aqui o conceito de C. S. Lewis, e ficar insensível ao discutir sobre temas que afetavam tão cruelmente a vida de outro ser humano. A literatura deixa em evidência o rosto do outro, desvela sua alma, não esconde seus defeitos — pois humano, é passível de erros e acertos. E não seríamos todos também? Jonathan Edwards não foi um ser humano? Logo, o que custa reconhecer seus erros e acertos, na mesma medida? Os opostos sempre serão perigosos. Viver com uma imaginação cauterizada e pobre é terrível.

A literatura salva nossas vida desse mar de ignorância e brutalidade. Que não sejamos guerreiros violentos portando fuzis, mas guerreiros que, no front, a ânsia de matar não seja maior do que a de querer salvar e curar, de levar boas novas e acolhimento. Os evangélicos precisam ler boa literatura, se quiserem ser salvos da ignorância e do mal. A Bíblia é literatura, mas penso que até mesmo estamos deixando de ler a Bíblia como ela é.

Allenylson Ferreira, escritor e editor da Machado.

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