sobre a areia

Revista Machado
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6 min readJul 8, 2021

samara sabia que sua mãe devia estar preocupada. importava-se com isso, mas nesse momento decidiu ignorar o fato. sabia que a preocupação de sua mãe era muito bem fundada. o problema é que a menina machucou o pulso durante o ensaio do balé e percebeu que precisava desesperadamente ficar sozinha.

samara também sabia que normalmente se desesperava ao ficar sozinha. mas já fazia um mês que se sentia sozinha todos os dias.

a brisa marítima alcançou suas mãos, que se gelavam muito facilmente. sentiu um arrepio, dando-se conta de que havia andado demais. fazia muito tempo mesmo que não saía sozinha pela rua e relembrar essa sensação era… sem palavras. por um lado, angustiante. por outro, libertador.

ainda assim, samara não sabia se sentir livre. seus pés caminhavam sobre a areia fria calmamente e permaneciam sem direção. aproximou-se das águas que de forma rápida alcançaram os seus dedos e tocaram-nos. a vastidão da vida fazia ela se sentir só. e a vastidão da sua solidão fazia ela se sentir pequena.

durante anos, a adolescente não soube ficar sozinha. enchia-se de tarefas e rodeava-se de pessoas o dia inteiro porque evitava a opressão dos seus próprios pensamentos. evitava a hora de dormir porque sabia que naquele momento toda a culpa — que não era sua — viria sobre a sua mente e não haveria meios de lidar. não havia meios de lidar com as lembranças, com a repulsa, com o misto de sensações que invadiam o seu coração. sua mãe curiosamente lhe batizou com um nome que determinaria a sua vida, pois samara vivia fugindo do seu próprio horror.

afastou-se um pouco do mar e se sentou. respirou fundo e decidiu que faria da areia a sua companhia. só hoje. pegou-a nas mãos e sentiu os grãos se arrastarem pela sua pele. todos os dias, reaprendia a sentir os outros toques do mundo. na areia sentia o frio, a dureza, o conjunto das pequenas coisas que se faziam grandes aos seus olhos.

por isso, lembrou-se do seu namorado. lembrou-se da forma como ele unia tão pequenos sons e os fazia tocá-la, ainda que sequer chegasse perto da sua pele. lembrou-se da forma como ninguém nunca soube se aproximar dela como ele. lembrou-se de como ninguém nunca soube dançar ao seu lado ao som de todas as sinfonias do grande desconcerto do mundo como ele o fazia.

e com a sua imagem na mente, samara começou a criar com a areia. pensou em fazer um castelo. ergueu-o com a mesma dificuldade de construir um relacionamento quando normalmente sequer sabia manter uma conversa por mais de cinco minutos com qualquer pessoa. toda vez que sentia que funcionaria, suas mãos doídas tremiam e tudo se desmanchava perante os seus olhos.

samara estava destruída. por isso, empenhou-se com todo o seu coração a não deixar que mais nada se derrubasse. o fraco sol refletiu em uns grãos de areia e a fez piscar. a cor castanha dos olhos dele se faziam nítidas na sua frente. toda a sua doçura e sensibilidade eram alcançáveis pelas mãos da menina. olhos profundos que compreendiam perfeitamente todas as complexidades que faziam nó no mais íntimo da sua alma. isso a machucava.

samara não queria ser alcançada nem compreendida. ele não entendia? ela não queria alguém que fizesse de tudo para estar ao seu lado, mas ficar sozinha. não simplesmente sozinha durante o seu dia, mas sozinha na sua vida. queria aquela solidão que não é de ter gente ao seu redor num espaço físico. queria que seu coração permanecesse sozinho porque nada curaria as suas feridas. e não importa se tinha alguma pessoa que ficasse o tempo inteiro contando alguma história irrelevante sobre o seu dia porque a voz de ninguém poderia preencher o seu vazio.

mas agora tudo estava dando certo. o castelo estava começando a se firmar. por um segundo, pensou se não seria melhor fazer logo as suas muralhas. decidiu focar apenas no castelo, por enquanto. depois ergueria sua proteção.

ela havia passado tempo demais escondendo-se atrás de gigantes paredes e de multidões que não a encontravam. ele a havia encontrado e ela não entendia como. não havia nada nela que poderia chamar a sua atenção, mas eles se encontraram e, em meio a todas as inconstâncias que afloram na adolescência, eles aprenderam a ser instáveis juntos. aprenderam a viver a música juntos. a cantar, a dançar, a caminhar, a apreciar as plantas sobre a terra. não olhavam muito para o céu. seu namorado não gostava de olhar para o céu. sentia medo de se sentir insuficiente.

ela percebeu que o amava e encontrou certa liberdade nesse amor. sim, aos poucos suas muralhas foram ao chão. diante dele já não havia defesas erguidas, mas apenas uma bela confiança que florescia. durante anos, samara só conseguia viver com medo, mas ao seu lado já não havia necessidade de temer. não andava mais sozinha pela rua, não estava mais desprotegida. seu namorado a fazia bem.

o castelo estava ficando bonito. nem parecia que estava sendo feito apenas com as mãos de uma menina que não possuía nenhuma habilidade manual. sem perceber, seus olhos encheram-se de boas lágrimas. era capaz de alguma coisa. alguma coisa ela ainda conseguia fazer.

lembrou-se do girassol que ele tinha lhe dado no seu aniversário. não uma simples planta, mas uma metáfora. um conselho: que ela seguisse na direção do sol. que ela procurasse pela luz que poderia guiar os seus passos pelo mundo. que ela aprendesse a dançar na paz de uma sinfonia que aos poucos se iniciava e preenchia todo o espaço. e a alegria de samara estava no fato de que aquele garoto era o seu pianista.

lembrar do girassol encheu o seu peito de dor. samara sabia que não tinha ido para a praia por causa do pulso machucado.

de repente a dor intensificou a construção. em meio às complicações físicas, samara construía o seu castelo de areia à beira do mar esperando que ele a ensinasse a encontrar novamente os seus caminhos. e se a areia caísse, rapidamente ela a ajustava. e se algo falhava, rapidamente se consertava. porque nem tudo podia desmoronar na sua vida. algo precisava dar certo. algo tinha que fazer sentido. algo precisava norteá-la.

mas ah… quem pode parar o mar?

seu castelo desmoronou diante dos seus olhos. estagnada, sentiu a areia desfazer-se entre os seus dedos. era a vida daquele que se esvaía entre as suas mãos. as águas cercavam-na, fazendo-se sua própria ilha que flutuava perdidamente no mar. não havia âncora ou direção. a outra ilha que fazia junto dela um arquipélago se perdera. os sons do mar silenciaram. o piano parou de tocar. uma tempestade se formou no céu. o pulso tornou a doer. a cabeça. os pés. o peito apertou. as lágrimas rapidamente chegaram aos seus olhos. a culpa se jogou sobre os seus ombros. seu namorado se secou. meu girassol morreu.

a areia tornou a se espalhar. agora era apenas uma pasta incolor e sem graça que se harmonizava dolorosamente no seu padrão entediante. sua textura única havia se desfeito. todos os toques gerados pelo mundo eram apáticos. esse castelo era a sua vida e ela a perdeu. se tivesse erguido as muralhas, talvez ele não teria caído. se tivesse se preocupado com as muralhas, talvez samara não teria sequer começado a construi-lo.

olha para o céu. a dor é incontornável. a solidão parece vasta. agora, sem seu castelo, sem seu girassol, sem sua âncora, é mais vasta ainda. desde os doze anos, não sabia andar sozinha na rua, mas agora foi necessário reaprender. faz um mês que parece que ando sozinha.

mas, escondido atrás das nuvens, o sol ainda é bonito. de alguma forma, sei disso. falo sozinha e, em meio ao silêncio do mundo, a minha voz é a única que escuto.

agora somos só eu, tu e o vento.

Maria Carolina de Souza, 19 anos de idade, carioca. Curso Letras e gosto de escrever sobre conflitos internos e de usar referências a boas músicas. Escrevo desde que me entendo por gente, mas apenas recentemente compreendi como a escrita pode servir ao Criador em sua multiforme graça.

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