Abril da Infâmia

Uma linha do tempo do impeachment

N. Oliveira
revista Maquiavel
10 min readApr 17, 2016

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“À NAÇÃO

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.”

(Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 09 de Abril de 1964, a “Certidão de Nascimento” da Ditadura Militar)

No início, parecia uma típica Teoria da Conspiração, imaginável somente nas mentes mais fantasiosas. Pois a crise se aprofundou num ritmo vertiginoso, a “Teoria” caiu, e ficamos somente com a Conspiração.

No próximo domingo, dia 17 de Abril, o plenário da Câmara dos Deputados mais conservadora de que se tem notícia, presidida por Eduardo Cunha, deve aprovar o impeachment de Dilma Rousseff. A partir daí, o processo segue para o Senado, onde uma maioria simples (41 votos) poderá determinar a suspensão do mandato presidencial conquistado há um ano e meio nas urnas (54,5 milhões de votos). Nos seis meses seguintes, uma maioria qualificada no Senado deverá aprovar a perda definitiva do mandato; caso contrário, Dilma será restituída ao cargo.

A imprensa insiste em utilizar aspas quando alguém usa esta palavrinha proibida, mas este impeachment tem cor, cara e cheiro de GOLPE. Não é para menos. Os acontecimentos se sucedem num ritmo estonteante, e a confusão parece até proposital, mas basta uma análise cronológica e detida para nos levar a esta conclusão:

2014: a eleição que não terminou

No final de Agosto/2014, a ascensão de Marina Silva, substituta do falecido candidato Eduardo Campos, parecia desafiar o domínio de 20 anos da dupla PT/PSDB na disputa presidencial no Brasil. Mas contados os votos, 40 dias depois, Dilma e Aécio Neves avançaram para o segundo turno. Naquele Outubro, os ânimos se acirraram, com a polarização entre PT e PSDB atingindo níveis muito superiores aos dos pleitos anteriores. A campanha de Dilma associava o programa da oposição a uma “volta ao passado” e às privatizações; nas ruas, partidários de Aécio culpavam o PT pela corrupção revelada pela Operação Lava-Jato e escândalos anteriores, e alguns enxergavam até a ameaça de uma “consolidação do comunismo no Brasil”.

A edição da Carta Capital pode não ser isenta, mas as imagens são reais.

Ao fim, a petista venceu por 3,5 milhões de votos de vantagem, margem apertada para em eleitorado total de 142 milhões. Em minutos, Aécio e seus eleitores viram a euforia causada pelo vazamento antecipado dos números da apuração, que indicavam sua vitória, decair na mais profunda decepção quando os votos do Nordeste e do Norte viraram o jogo. Dias depois, o tucano afirmou ter sido vencido por uma “organização criminosa”. O PSDB contestou o resultado na Justiça Eleitoral, mas a própria auditoria contratada pelo partido não encontrou indícios de fraude na apuração.

Dezoito meses se passaram, mas a derrota parece difícil de aceitar.

Já a partir do resultado das eleições, protestos orquestrados por grupos de direita externavam um inconformismo com o resultado das urnas e pediam “intervenção militar”. Mesmo quando reuniam algumas dezenas de manifestantes, ou nem isso, estes protestos receberam generosa divulgação por parte da grande imprensa, também ela frustrada com o resultado das urnas.

Clima de velório no Manhattan Connection, no dia seguinte às eleições: “a culpa é do Nordeste bovino”.

Embora os movimentos pró-impeachment atribuam sua origem e inspiração nos protestos de Junho de 2013 (quando “o gigante acordou”), sua verdadeira gênese está nesta derrota apertada de Aécio em 2014, jamais engolida.

2015: “ajuste” e protestos

Dilma Rousseff começou o segundo mandato anunciando para o Ministério da Fazenda Joaquim Levy, trazendo na mala um pacote econômico sob o eufemismo de “ajuste fiscal”. O pacote foi elogiado pelo mercado financeiro e pela grande imprensa, que apontavam para a necessidade de saneamento das contas públicas, e muito criticado pela esquerda, inclusive por setores do próprio PT.

Ainda em Janeiro, grupos como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e Revoltados On-Line convocavam os descontentes para protestos contra o governo, já falando em impeachment ou “intervenção militar”, e algumas faixas reeditavam antigos slogans como “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. O protesto abaixo reuniu mil pessoas na Paulista, em 31 de janeiro:

É importante destacar que, naquele momento, os efeitos da crise econômica ainda não se faziam sentir. O dólar estava cotado a R$2,68 e o índice de desemprego estava em 5,3%, ainda próximo ao considerado “pleno emprego”. O PIB registrou uma estagnação em 2014, mas os anos anteriores do primeiro mandato de Dilma (2011 a 2013) haviam sido de crescimento estável. As investigações da Operação Lava-Jato não traziam novas denúncias concretas contra a presidenta reeleita. Mesmo assim, uma grande manifestação foi convocada, ainda no começo de fevereiro, com uso maciço das redes sociais e apoio mal disfarçado da grande imprensa, para acontecer num domingo, 15 de março.

Foi então que o movimento pró-impeachment mostrou toda sua força, levando não mais dezenas de gatos pingados, e sim milhões de brasileiros às ruas — a maior mobilização política da História em número de participantes. A direita brasileira tomou as ruas e estabeleceu sua hegemonia neste protesto e nos demais que se seguiram. O governo sentiu o golpe, e a presidenta passou a abrir mão até de fazer pronunciamentos na TV, que viraram motivo de ruidosos panelaços (nos bairros de classe média).

Ao fim de 2015, a economia brasileira registrava a pior recessão em mais de 20 anos. O desemprego pulou para 8,5% e o dólar bateu na casa dos R$ 4. O receituário neoliberal de Levy, aplicado pela metade diante da resistência do Congresso e do próprio PT, aprofundou os problemas que prometia combater: o endividamento cresceu, a economia encolheu (tombo de quase 4% no PIB) e as agências internacionais de risco rebaixaram o grau de investimento do País, abrindo caminho para os especuladores de olho nas altas taxas de juro e oscilações da Bovespa.

O governo cavava a própria sepultura mas, paradoxalmente, os protestos diminuíam de intensidade à medida que a crise econômica se aprofundava. Mesmo reunindo grandes contingentes, as manifestações de 16 de Agosto (135 mil pessoas na Avenida Paulista) e 13 de Dezembro (40 mil) levaram menos gente às ruas do que a original, de Março (210 mil, sempre considerando os números do DataFolha), quando a crise econômica estava em gestação.

Ficava evidente, também, que a população que tomava as ruas pelo impeachment era efetivamente a menos afetada pela crise: brancos de alta renda, residentes das regiões mais valorizadas das grandes cidades e com formação universitária (alguns diriam “educação superior”, mas há controvérsias…). Muitos vestiam o uniforme oficial da Seleção, que custa mais de R$200 nas lojas, e alguns levavam até as babás, devidamente trajadas, para carregar as tralhas do bebê. A vasta maioria afirmava ter votado em Aécio na eleição de 2014.

Foto: Eduardo Nunomura. Do site Pragmatismo Político.

A população pobre, da periferia, do Nordeste, que havia votado em Dilma e que sentia na pele os efeitos da crise econômica e da redução dos investimentos públicos, era minoria nos protestos dominicais. De toda forma, as pesquisas de opinião mostravam uma rejeição generalizada, com os índices de aprovação do governo despencando a menos de 10% ainda na metade do ano.

Dezembro se aproximava e as investigações da Lava-Jato abrangiam um número cada vez maior de empresários, oligarcas e políticos, tanto do governo quanto da oposição, mas sem envolver a Presidenta. Mesmo com o apoio da FIESP, que levou um pato de borracha gigante para a Avenida Paulista, e da Força Sindical (curiosa central sindical sempre alinhada aos interesses dos patrões), os protestos de Dezembro reuniram uma fração dos manifestantes que haviam ido às ruas em março. Os movimentos anti-governo precisavam reacender a chama do impeachment. A fagulha veio na forma de uma canetada do “Malvado Favorito”: Eduardo Cunha.

Dezembro/2015: a vingança de Cunha

Como desgraça pouca é bobagem, o ano de 2015 ainda presenciou o lançamento de Eduardo Cunha ao estrelato da política brasileira. Eleito presidente da Câmara dos Deputados no início do ano, com apoio da oposição e partidos da base aliada, o peemedebista rapidamente se converteu em inimigo número 1 do governo e porta-voz das pautas direitistas, como a redução da maioridade penal e a terceirização das relações de trabalho. Em diversas ocasiões, manobrou e abusou do regimento interno da casa para impor sua vontade, votando no dia seguinte matérias que haviam sido rejeitadas na véspera.

Convertido em principal nome da oposição, diante da inabilidade dos líderes do PSDB, Cunha acabou indiciado pela Operação Lava-Jato e teve expostos seus depósitos na Suíça, o que lhe rendeu um processo de cassação de mandato que se arrasta há 6 meses no Conselho de Ética. Ali, o matreiro deputado do Rio de Janeiro usa e abusa de manobras kafkanianas dignas da série House of Cards (ou “House of Cunha”), articulando a substituição de integrantes, obstruindo o andamento dos trabalhos ou simplesmente ameaçando o relator do processo.

Uma das cartas na manga de Cunha estava justamente no seu poder decisório sobre os muitos pedidos de impeachment contra a presidenta da República que se acumulavam em sua escrivaninha. Em dezembro/2015, um rumor chegou aos ouvidos dos deputados do PT integrantes do Conselho de Ética: ou votavam pelo arquivamento do processo contra Cunha, ou este daria prosseguimento a um pedido de impeachment contra Dilma. O PT pagou para ver. E a ameaça de impeachment virou realidade.

O pedido de impeachment escolhido por Eduardo Cunha para deliberação na Câmara acusa a presidenta de praticar as chamadas “pedaladas fiscais”, esse terrível crime que consiste na utilização de recursos dos bancos públicos para cobrir temporariamente obrigações do governo, entre elas o pagamento do Bolsa-Família.

A Comissão Especial instaurada na Câmara dos Deputados para deliberação do pedido de impeachment aprovou, em 11 da Abril, um relatório favorável à deposição da presidenta por crime de responsabilidade. Grande parte dos deputados que votaram a favor (e também muitos dos que votaram contra) são réus em processos criminais e/ou receberam recursos de empresas investigadas na Operação Lava-Jato. A lista inclui: Paulo Maluf, Paulinho da Força, Eduardo Bolsonaro e Marco Feliciano.

Abril/2016: “verba volant, scripta manent”

Por fim, entra em cena o vice-presidente Michel Temer. Assim que o correligionário Cunha dá início ao processo de impeachment, faz circular uma carta “vazada”, dirigida à Presidenta Dilma, onde se queixa da falta de espaço dele (relegado a “vice decorativo”) e do PMDB no governo. Em Março/2016, o PMDB anuncia o rompimento oficial com o governo. E no dia 11 de Abril, surge um áudio em que o Vice-Presidente antecipa o resultado da votação do impeachment e se apresenta para liderar um governo de “salvação nacional”. Costura-se um acordo de bastidores que livraria Eduardo Cunha da cassação pelo Conselho de Ética, como recompensa por sua atuação decisiva pelo impeachment. Com Dilma deposta, o PMDB faria barba, cabelo e bigode, mantendo-se à frente das duas casas legislativas e da Presidência da República.

Fica evidente, nestes episódios e na atuação nos bastidores do balaio de gatos que atende pelo nome de PMDB, o papel atuante de Michel Temer na deposição da Presidenta. Considerado um mestre do Direito Constitucional nas universidades, Temer despreza, na prática, os princípios democráticos previstos na Carta Magna.

A política nacional se vê reduzida a uma mesquinhez de cidadezinha do interior, onde o vice faz de tudo para puxar o tapete do mandatário eleito, atalhando o caminho das urnas, com apoio de deputados que são pouco mais que vereadores desta Roque Santeiro de 200 milhões de habitantes.

Sinhozinho Malta: assim é a política no Brasil, desde sempre.

O golpe nos horizontes de Brasília

A eterna discussão sobre a existência de crime de responsabilidade que justifique a deposição da Presidenta pertence à esfera do direito, e ali não existe unanimidade. Mas a fundamentação jurídica pouco importa numa Câmara de Deputados onde a capa da Veja e o boneco “Pixuleco” viram “argumentos” para defender o impeachment. A sequência dos fatos relatadas acima demonstra cabalmente, em resumo:

  1. Que as mobilizações pelo impeachment se originam da não aceitação do resultado das urnas e antecedem a crise econômica atual;
  2. Que as “pedaladas fiscais”, apontadas como crimes de responsabilidade da Presidenta, são apenas um pretexto para canalizar sua deposição, e não a origem da indignação popular.
  3. Que o processo de impeachment está maculado por vício de origem, pois nasceu de uma vingança de Eduardo Cunha contra um posicionamento do PT que afrontava seus interesses.
  4. Que a Comissão Especial que aprovou o relatório do impeachment, como amostra da Câmara dos Deputados, está maculada por acusações muito mais graves do que as alegadas contra a Presidenta.
  5. Que o vice-presidente participa ativamente da conspiração palaciana para chegar ao poder sem voto, recompensando Cunha com a manutenção do seu mandato na Câmara.

Nem todo impeachment é golpe. Mas este tem cara, cheiro e gosto de golpe. Se o de 1964 tinha tons de verde-oliva, cheiro de pólvora e gosto de sola de coturno, e de 2016 tem o amarelo da Nike/CBF, cheiro de mofo e naftalina e gosto de óleo de peroba.

“A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo.”

(trecho do preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 09 de Abril de 1964).

N. Oliveira é jornalista. Mineiro, mora em Brasília.

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