Breve nota sobre o Fantástico emplastro Temer

Coube ao Fantástico, terminado o show de horrores, apresentar uma versão light e edulcorada do massacre que se passara

André Paes Leme
revista Maquiavel
4 min readMay 17, 2016

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Temer visita Líbano, em 2011 | Foto: flickr de Aluízio Gomes

Quando a bala de prata de Teori Zavascki abatera há alguns dias o nefasto Eduardo Cunha, houve quem dissesse que a desajeitada operação visava nada menos que limpar a cena do crime em que se convertera o farsesco processo de impedimento da presidente, outrora disparado por escaramuças do correntista internacional. O grupo do presidente não eleito, diziam as notas de bastidores, “respirava aliviado”. Pois bem, se o STF agiu por unanimidade como faxineiro dos destroços do processo legal e do regramento democrático, dizimados pela maioria tardia arregimentada por um sistema político em crise de legitimidade, coube ao Fantástico, terminado o show de horrores, apresentar uma versão light e edulcorada do massacre que se passara.

No mesmo fim de semana em que Guardian, New York Times e parte da imprensa alemã teceram duríssimas críticas ao processo de impeachment e ao gabinete ministerial de Temer, a Globo apresentou o ex-vice-decorativo como se se tratasse do mais novo vencedor de eleições presidenciais, por elas investido do manto da confiabilidade da população. Para isso, paradoxalmente, foi preciso ir ao Líbano acompanhar uma singularíssima festa num pequeno povoado em que parentes de Temer, filho de libaneses, comemoravam, embalados por um misto de ignorância e descaso acerca das condições em que isso se dera, sua ascensão à Presidência da República. Involuntariamente, os felizes habitantes do povoado libanês deram ao plim-plim uma excelente metonímia da cobertura midiática que o processo como um todo teve entre nós: não importa o que foi feito, comemorem. Qualquer correspondência com o temerário slogan “não fale em crise, trabalhe” não é mera coincidência.

Momento mais interessante do entretenimento noticioso da noite foi quando, em ambiente artificialmente produzido pela direção editorial, populares questionaram o Dr. Meirelles, novo mago das finanças, sobre aquilo que realmente importa. Foi então que ficou escancarado o descompasso entre o emplastro Temer e os males brasileiros que precisam realmente de tratamento. Perguntado sobre como diminuir as tarifas de eletricidade e aumentar o salário mínimo, Meirelles foi obrigado a desconversar, pois respostas “honestas”, do tipo que percorrem o senso comum do tal “mercado”, por exemplo, seu consenso infame sobre termos um salário mínimo muito alto, desmontariam o frágil castelo de cartas em que assenta a promessa da queda de Dilma como solução para todos os males da história universal. É certo que Dilma conseguiu fazer, por razões que lhe escapavam (como os desdobramentos da crise do subprime, o fim do ciclo da commodities e a desaceleração chinesa — todos fenômenos mais ou menos interligados) e por outras que estiveram sob seu controle (a péssima política de desonerações, o descaso pela manutenção do concerto político-fisiológico etc.), um dos governos mais desastrosos de que se tem notícia. Mas conforme as expectativas criadas pela sua destituição (retomada de melhorias nas condições de vida) começarem a se chocar com a tesoura colossal do Dr. Meirelles, é possível que Junho de 2013 pareça uma gincana de condomínio. Uma amostra disso, inclusive para o próprio governo, já foi dada pela rota de colisão produzida ontem entre expectativas populares e o “realismo orçamentário” exigido pelo “mercado”.

Imaginava-se ainda há pouco a possibilidade de Temer, cauteloso por não deter a legitimidade das urnas, seguir fiel ao pacto imobilista representado pelo PMDB há mais ou menos três décadas e apenas dourar a pílula de uma moderada recuperação econômica que já dá, também por conta do ajuste mambembe de Dilma/Levy, seus primeiros sinais (a inflação decrescente já poderia ter induzido uma queda sutil na selic, por exemplo). Não foi esta, contudo, a possibilidade que melhor sobressaiu de seu discurso de “posse”, no qual foram citadas as famigeradas reformas (regressivas) trabalhista e previdenciária, repelidas até mesmo por Paulinho da Força, réu no STF, golpista declarado (e isso independe da controvérsia sobre ter ou não ocorrido um golpe) e cover oficial de liderança trabalhista. Essa possibilidade também não se destacou no Fantástico de ontem, em que os temas controversos apareceram como necessidade imperiosa, apesar dos reparos de sempre sobre diálogo. O cálculo governamental parece ser o da recuperação da legitimidade destruída do sistema político pela entrega de um ciclo de crescimento econômico. O preço a pagar por esse novo ciclo, no entanto, não será baixo nem para os não membros do seletíssimo clube dos credores do governo nem para o sistema político que procura repassá-lo a estes infelizes, isto é, a nós, o povo.

A Fiesp, que passou os últimos meses dizendo que não pagaria o pato, talvez venha a ser pega de surpresa quando os verdadeiros patos oferecerem uma réplica concreta à abstração de seu slogan e resolverem depenar a ave que pretendia lhes servir ao mesmo tempo de engodo e anteparo. Mesmo com o esforço de não ceder a facilidades maniqueístas, é difícil não eleger tal “surpresa” como a perspectiva privilegiada para se compreender a exaltada retórica reacionária de Alexandre de Moraes, recém-promovido ao Ministério da Justiça, que reboca agora nada menos que uma tal “Cidadania”, além da ressurreição do controverso Gabinete de Segurança Institucional. Como os deserdados enfermos reagirão aos supostos efeitos curativos do emplastro Temer, os próximos meses é que o dirão. Em todo caso, uma terapia, digamos, mais radical parece em vias de preparação. Como dizia um historiador, são tempos interessantes.

André Paes Leme é bacharel e licenciado em filosofia pela Universidade de São Paulo. Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado na área de estética.

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