Cordialidade e Violência

Que povo cordial é esse cuja ética é distorcida para lhes favorecer? E que cai num papinho de que endireitar o Brasil é ter regras morais mais rígidas. Que moral? Quem tem moral?

Thiago Kaczuroski
revista Maquiavel
3 min readSep 24, 2016

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“É o povo que tira selfie com o órgão público que mais mata no mundo. Que apoia torturador. Que quer Rota e arma na rua, mas que chama de terrorista quem já foi da luta armada” | imagem: Viomundo

Se tem uma coisa boa de tudo que vem rolando desde 2013 até o golpe (culminando no episódio recente do Guido Mantega) é que caiu por terra de uma vez aquela falácia ridícula de que o brasileiro é um povo cordial (e aqui vale um esclarecimento: quando falo sobre cordialidade, não estou levando em conta todos os aspectos do conceito utilizado pelo Sérgio Buarque de Holanda e outros pensadores, que já contemplam várias das coisas que eu trato aqui. Falo de cordialidade no sentido que o termo foi ganhando pelo senso comum, o da amabilidade). Não é.

O brasileiro é um povo violento. Violentíssimo. Não é só a violência do crime, do perdeu-playboy-forgado-uh-trôxa-roubado-dendocarro-na-avenida-rebouças. É a violência do jeitinho, do “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Como que é cordial um povo que acha que carro é melhor que gente? Que bicho é melhor que gente? E que tem gente que não é gente?

É a violência do “para meus amigos tudo, para meus inimigos, a lei” (mas quando infringe uma lei, é vítima de uma indústria maquiavélica). Do “você sabe com quem tá falando”, mas que só dá bom dia pra quem convém. É o povo que acha que quebrar vidraça de banco é vandalismo, mas que releva roubo de merenda e um transporte que tenta porque tenta provar que 2, 5, 10 corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço.

É o povo do “bicha”, “macaco”, “sapatão”, “traveco”, “gordalhaça”, “retardado”…

Cordial só porque recebe bem gringo vez ou outra, na esperança (consciente ou inconsciente) de despertar uma paixão que renda um Green Card? Sim, porque se o gringo em questão for nigeriano, boliviano ou cubano, o sentimento é bem outro…

Muito cordial o povo que é contra cota porque “eu não tive privilégio, não tenho culpa de ter nascido branco, classe média e morar numa rua com ônibus pra 20 destinos”.

O que prefere o ladrão que fala bem ao cachaceiro, ou a com pouca retórica. O que critica os maconhêro esquerdista mas que dá uns tirinho numas carreirinha que fez com o cartão roxinho de startup, que eu tô ligado… O que quer ver (um certo) bandido preso, mas que tem um arquivo de photoshop com boleto da Anhembi Morumbi pra fazer carteirinha.

Que atravessa a rua quando vem alguém estranho vindo, mas é só coincidência que o estranho tem o pantone um pouco mais escuro que o teu, nada a ver…

É o povo que tira selfie com o órgão público que mais mata no mundo. Que apoia torturador. Que quer Rota e arma na rua, mas que chama de terrorista quem já foi da luta armada.

Que acha daora prender uma molecada cada vez mais nova. Mas que quando a sua cria apronta alguma, foi só molecagem.

É o que acha que mulher de roupa curta pediu pra ser estuprada (mulheres inclusive). O que bate punheta pra novinha, e o que bate na mulher em casa. O que mais procura por travesti naquela site lá que você sabe bem qual é. E o que mais mata travesti no mundo.

É o que briga pra ir sentado. Que fura fila.

Que povo cordial é esse cuja ética é distorcida para lhes favorecer? E que cai num papinho de que endireitar o Brasil é ter regras morais mais rígidas. Que moral? Quem tem moral?

Na moral, é lógico que eu faço várias coisas dessas aí. Você também. O bom é que a gente não precisa mais ser (tão) hipócrita.

Thiago Kaczuroski, o Kazu, é formado em jornalismo pela Cásper Líbero e especializado em literatura pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Atua como Gerente de Conteúdo da S2Publicom/Weber Shandwick e como professor na São Paulo Digital School.

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