Dória, o Antipolítico

Uma reflexão sobre o discurso da nova aposta tucana

N. Oliveira
revista Maquiavel
7 min readJun 23, 2017

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Créditos: João Dória / Facebook / Divulgação

A maior cidade do Brasil tem um prefeito que doa seu salário para a caridade, pois já é rico o bastante. Que obtém de empresários amigos doações vultuosas — veículos, remédios, até mesmo vitaminas — para benefício da cidade (doações generosamente compensadas por benefícios fiscais, mas quem liga?). Que se apresenta não como político e sim como “gestor”, trazendo para a máquina pública conceitos e métodos aplicados na iniciativa privada. Que está sempre em evidência: fantasiado de gari, pintando muros pichados, ou mesmo demitindo uma assessora diante das câmeras. Enquanto os outros políticos parecem mais preocupados em se salvar da avalanche de lama que desce da Operação Lava Jato, o “gestor” de São Paulo permanece obstinado em fazer e aparecer, não necessariamente nesta ordem.

Há um ano, pouco se falava dele. Apadrinhado pelo governador Geraldo Alckmin, o multimilionário João Dória Júnior ganhou a nomeação do PSDB para a disputa da Prefeitura de SP depois de bater o vereador Andrea Matarazzo (aliado do senador José Serra) e o deputado federal Ricardo Trípoli em prévias muito acirradas — em algumas seções de votação, os militantes tucanos chegaram às “vias de fato”. Começou a campanha com apenas 3% das intenções de voto. No final de agosto de 2016, patinava nos 9%, ocupando um 5º lugar na disputa. Quarenta dias adiante, venceria no primeiro turno com 2 milhões de votos à frente do segundo colocado, o então prefeito Fernando Haddad (mas ainda perdendo para a soma de abstenções, brancos e nulos, recorde naquela eleição). Poucos meses após assumir à prefeitura, passou a ser cotado como o potencial presidenciável tucano já para 2018, pontuando relativamente bem nas pesquisas.

A meteórica ascensão de Dória representa a grande novidade no conturbado tabuleiro político nacional nestes últimos anos. Apoiado por uma considerável militância virtual, Dória tem o potencial de preencher o vácuo político deixado pelos caciques do PSDB: Alckmin, José Serra (ambos citados na Lava Jato) e Aécio Neves, cuja carreira política derreteu nas últimas semanas. Seja quem for, o candidato do PSDB deverá assumir a posição de principal antagonista do PT nas próximas eleições, tomando a posição temporariamente ocupada nas pesquisas de opinião pelo deputado federal Bolsonaro, incapaz de alçar voos maiores devido à altíssima rejeição e ao discurso extremista.

À parcela do eleitorado que rejeita Lula e o PT, Dória pode ser vendido como uma alternativa mais razoável, moderna e inteligente que a carranca verde-oliva e antiquada de Bolsonaro. A exemplo de Trump nos EUA e Macri na Argentina, todos egressos do universo empresarial, o prefeito tem pressa e parece dizer: “Chega de políticos, deixem a gestão pública para os gestores, os profissionais do ramo, os CEOs que entendem do assunto, que fazem e acontecem, e saiam do caminho!” Nesta visão de mundo corporativa, liberal (mais para o capital que para os costumes), toda forma de mobilização social ou atitude estranhas às regras do Mercado é tratada com desconfiança. Como diz o mantra, “ou você é parte da solução, ou é parte do problema”. Não há espaço para “mimimi”.

Um exemplo de propaganda espontânea dos admiradores de Dória, divulgado no Facebook. Autor: Vinícius Poit.

A propaganda de Dória é voltada para o indivíduo, o cidadão desmobilizado, o trabalhador comum e sua família que o assistem pela TV ou pelo celular. Nessa narrativa que parece feita sob medida para a opinião das periferias paulistanas, levantada em pesquisa conduzida pela Fundação Perseu Abramo (ironicamente, ligada ao PT), empresários e trabalhadores (os “cidadãos de bem”) estão no mesmo barco, trabalhando apesar das dificuldades e tentando fazer o que é certo. Esses elegeram como líder o “João Trabalhador”, um herói que, mesmo riquíssimo e quase sexagenário, acorda às quatro horas da manhã para trabalhar e só vai dormir depois da meia-noite. E quem há de se opor a essa “Corrente do Bem”, à união virtuosa dos cidadãos, sem partidos, sem ideologias, com seu incansável gestor à frente?

É aí que entra o grande bode expiatório: o PT e tudo o mais que possa ser associado ao petismo, como sindicatos, movimentos sociais e estudantis, ativistas, ciclistas (pois é!), outros partidos de esquerda (inclusive os de oposição ao próprio PT), ecologistas, mídia independente, enfim, basta se opor ao Líder para ganhar uma estrela vermelha na testa. Parece exagero? Pois o próprio Dória atribuiu o aumento da reprovação ao seu governo, em Abril, aos “simpatizantes do PT”, que seriam incapazes de reconhecer os méritos do seu governo.

Enquanto Lula surfava em alta popularidade no seu segundo mandato, os líderes tucanos, em crise, buscavam moderar o discurso de oposição (para alguns, moderado até demais), por vezes até costurando alianças de ocasião (como a que levou Márcio Lacerda à Prefeitura de Belo Horizonte, em 2008). Após perder as eleições de 2014, Aécio Neves rebaixou o ex-aliado das eleições belorizontinas à condição de “organização criminosa”, já pegando carona nas denúncias da Lava Jato. Dória vai além: para ele, o PT é “inimigo do Brasil” chefiado por um bandido (Lula) que devia estar na cadeia. Para o prefeito de São Paulo, não há uma razão concebível para uma pessoa de boa fé votar neste partido: o eleitor petista é desinformado, ou está compactuando com a desonestidade.

Contrariando as antigas recomendações do marketing político brasileiro, Dória dispensa qualquer moderação ou mesmo cortesia quando se dirige ao PT. Atacar o adversário parece igual ou mais importante que alardear os próprios feitos e virtudes. Diferentemente dos tucanos mais experientes como Alckmin e FHC, Dória nada de braçadas na agressividade do antipetismo, aproximando-se do Movimento Brasil Livre (MBL) e similares.

Dória em seu hobby favorito: desancar o PT, Lula e Dilma.

Qualquer ligação com o PT é suficiente para desqualificar a crítica de um adversário. Foi o que ocorreu com André Singer, professor da USP, após publicar um artigo na Folha de S.Paulo em abril questionando a candidatura de Dória à presidência como uma “aventura desesperada” do PSDB. A resposta de Dória: “Ao petista André Singer, quero dizer que não respeito suas posições e sua crítica, porque, depois de ter sido porta-voz do Lula, ele não tem credibilidade para fazer qualquer observação no plano político, muito menos a meu respeito. Vá passear em Curitiba, Singer”.

Tivemos na greve geral de 28 de abril alguns exemplos claros da aplicação desta mesma retórica contra os movimentos sindicais, por parte do próprio prefeito e sua equipe. O prefeito se posicionou contra a greve, que tinha como alvo o Governo Temer, do qual é aliado, e chamou os grevistas de “preguiçosos”. O subprefeito de Pinheiros, Paulo Mathias, gravou um vídeo ao lado de alguns funcionários de manutenção, dizendo que eles passariam a noite no trabalho para não ficarem presos no trânsito em virtude da greve do dia seguinte, provocada por “algumas pessoas que resolveram atrapalhar a vida dos outros”. Apesar de afirmar que a ideia partiu dos funcionários, somente o subprefeito fala no vídeo, em que se posiciona “a favor do direito à greve, mas não em dia de trabalho”.

O estilo Dória também é seguido pelos subprefeitos. Aos humildes, resta o papel de espectador.

A mesma retórica agressiva se volta contra os coletivos de cultura. Gustavo Soares, um jovem agente cultural do coletivo de Ermelino Matarazzo, gravou uma ameaça que recebeu do Secretário de Cultura André Sturm. Ambos tratavam da renovação de um acordo entre o coletivo e o Município, dono do imóvel abandonado onde foi instalada a Casa de Cultura do bairro. O coletivo rejeitou a proposta apresentada pelo secretário, que então ameaça desocupar o imóvel. Exaltado, o secretário chama o interlocutor de “babaca” e diz que vai “quebrar a sua cara”, mas fica na ameaça. Certamente, não contava com a possibilidade de estar sendo gravado pelo jovem da Zona Leste. Dória manteve o secretário no cargo e desmereceu o incidente como “uma bobagem”.

O áudio da ameaça do Secretário de Cultura ao agente cultural de Ermelino Matarazzo.

Em outra ocasião, Dória foi filmado atirando ao chão flores que recebeu de uma cicloativista Giulia Gallo como “homenagem aos mortos nas Marginais”. As marginais de Tietê e Pinheiros registraram aumento no número de acidentes após o aumento da velocidade máxima permitida, uma das bandeiras de campanha de Dória e seu slogan “Acelera, São Paulo!”. No dia seguinte, Dória declarou que as flores devem ser “entregues com o coração”, não como ato de protesto. E voltou a criticar aqueles que considera seus adversários: “Não será nenhum ativista, arrivista, petista, ou qualquer outro ‘ista’ que vai me colocar contra a parede”. No Twitter (no qual é muito atuante), comparou ativistas a grevistas, e disse que “prefere o povo, gente simples e generosa” (e desmobilizada, presume-se).

Uma visão de mundo em 140 caracteres.

Ao dizer que não aceita intimidações (num episódio em que não sofreu intimidação alguma), o recado que o prefeito está passando é que não aceita ser contrariado ou mesmo questionado. São frequentes seus embates com jornalistas, analistas, especialistas (ele parece ter uma birra especial contra os ‘istas’ em geral…) ou qualquer pessoa que apresente uma vaga contestação à sua agenda virtuosa. Contra blogueiros e perfis do Facebook que lhe direcionaram agressões ou críticas desabonadoras, mobilizou sua equipe de advogados. Por vezes, chama o adversário de petista ou o acusa de estar fazendo o “discurso do PT”, e reclama do tratamento que recebe da imprensa (tal como Trump e sua queixa contra as “fake news”). Raramente levanta a voz ou se exalta, marcando uma diferença em relação ao outro “mito” do antipetismo. Como vemos abaixo, sua militância virtual vibra a cada “mitagem” do seu líder:

Uma compilação das “mitagens” de Dória feita por seus apoiadores. Destaque para as legendas desqualificando jornalistas considerados “esquerdistas” ou “fake news”.

Dória não é apenas um “antipolítico”. Seu discurso, esta versão radical de pensamento único corporativo, encarna a anti-POLÍTICA em sua concepção mais ampla, por negar a existência do contraditório, do debate democrático e da contestação.

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N. Oliveira é membro da equipe editorial da Maquiavel. Jornalista formado pela UFMG, mora em Belo Horizonte.

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