Lulinha, o Intocável

Quem nasceu para limpar estrume não pode ser milionário

N. Oliveira
revista Maquiavel
5 min readFeb 12, 2016

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“Como pode um sujeito que catava bosta de elefante virar um milionário?” Esse discurso pretende provocar o desprezo, como se lidar com bosta tornasse a pessoa “um bosta”.

Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha, é o personagem favorito de narrativas a circular pela internet brasileira que lhe atribuem fortunas, iates, mansões, fazendas e participações em grandes empresas. As histórias aparecem tanto em blogs anônimos quanto na imprensa estabelecida e seus portais de notícias, e se multiplicam pelas mídias sociais e caixas de comentários. O suposto enriquecimento meteórico e inexplicável da família do ex-presidente Lula é apontado como evidência da “rompante corrupção” nos governos do PT, onde a “cumpanheirada”, os “petralhas”, levam a melhor em prejuízo aos cofres públicos.

No cipoal envolvendo o nome do filho do ex-presidente, existem sim suspeitas mais concretas de tráfico de influência em favor da Gamecorp, empresa em que Lulinha era sócio e que recebeu um generoso aporte financeiro da Oi, gigante de telefonia com grandes interesses em jogo na Esplanada dos Ministérios. Outras denúncias apresentam pouca ou nenhuma comprovação e beiram o absurdo, como a que lhe atribui o controle da frigorífica Friboi (desmentida pelo próprio dono da empresa) ou a propriedade de uma vistosa fazenda em Piracicaba que, na verdade, é a sede da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), pertencente à Universidade de São Paulo (USP).

Mesmo descartando os rumores mais absurdos a envolver fazendas, iates e jatinhos fabulosos, é evidente que Lulinha, assim como seu irmão Luís Cláudio, sócio em uma empresa de marketing esportivo sob investigação, fizeram uso das muitas portas abertas graças ao papai presidente para faturar muito em pouquíssimo tempo. O que os diferenciam de muitos outros filhos de políticos é, tão somente, o tratamento que recebem da mídia e das vozes anônimas nas redes sociais.

São incontáveis os políticos brasileiros, da atualidade e do passado, que enriqueceram tremendamente enquanto ocupavam funções públicas, transitando entre o lícito e o ilícito. Alguns deles consolidaram verdadeiras dinastias regionais que perduram por gerações a fio, sobrenomes onipresentes não só no meio político como também na direção de grandes empresas e dos meios de comunicação. A corrupção, a mordomia e o tráfico de influência são práticas seculares no Brasil, e quase ninguém manifesta indignação quando a filha do governador aparece em lojas caríssimas de Nova York, ou quando a filha do senador é citada na página da Forbes. Mas quando o personagem envolvido é ligado ao PT ou tem “Lula” no sobrenome, a banda toca diferente.

Curioso é que tanto os rumores espalhados por anônimos como as denúncias divulgadas pela imprensa “séria” e por políticos de oposição são praticamente unânimes ao traçar o perfil de Lulinha: até seu pai chegar à presidência, era um “zé ninguém”, um sujeito sem aptidão aparente, um paspalho. Para enfatizar a falta de importância e de talento deste personagem, a narrativa foca num dos seus trabalhos anteriores — Lulinha teria sido limpador estrume de elefante no zoológico. Seguem alguns trechos disponíveis na internet:

“Ele era limpador de estrume de elefante do Zoológico de São Paulo. De repente virou um mega fazendeiro!”

(Discurso do deputado Federal Jair Bolsonaro, em 17/10/2012)

“O cara limpava merda de elefante no zoológico, ganhava uma bolsa de R$ 600,00 reais pelo trabalho de estagiário. Logo após o papai assumir o controle do Brasil, COMPROU uma FAZENDINHA pela simples bagatela de R$ 47.000.000,00, e virou um dos maiores produtores de boi Nelore do Brasil.”

(blog Vergonha Brasil, em 3/3/2015)

“Avião do Filho do Lula — Um dos mais caro e luxuoso (sic) em sua categoria — Nada mal para quem limpava bosta de elefante.”

(Coluna de Deborah Albuquerque, uma das administradoras do Revoltados ON LINE, em 22/02/2015)

“É hora de um vídeo-resposta, com atores no papel das estrelas do petismo. Em lugar da família de caminhonete pelo campo vendo a si própria suando a pé pela estrada, teríamos por exemplo o hoje multimilionário Lulinha, filho do ex-presidente Lula, vendo-se, nas palavras de Jair Bolsonaro, como “limpador de estrume de elefante no Zoológico de São Paulo”. (…) Pronto. Nem vou exigir um close no elefante, fazendo você sabe o quê em você sabe quem.”

(Felipe Moura Brasil, blogueiro da Veja)

De fato, Lulinha, formado em Ciências Biológicas, trabalhou como monitor num zoológico em São Paulo, antes do pai chegar à presidência. E uma das muitas tarefas necessárias num zoológico é limpar a sujeira que os animais fazem. Fora dali, foi também professor de inglês. Mas o foco da narrativa está no escatológico, no que se considera degradante, nojento, baixo: “Como pode um sujeito que catava bosta de elefante virar um milionário (ou bilionário, a depender da versão da história)?” Esse discurso, quase um meme do antipetismo, pretende provocar o escárnio e o desprezo, como se lidar com bosta tornasse a própria pessoa “um bosta”.

Na Índia, a responsabilidade pelos serviços considerados “impuros”, nos quais podemos incluir a limpeza de todo tipo de sujeira, recai sobre os “dalits”, os intocáveis, integrantes da casta mais baixa da sociedade. Mesmo que, por algum golpe de sorte, o dalit se torne um milionário, será sempre um dalit. Quem limpa (ou limpou) a sujeira dos elefantes nunca será aceito como igual pelas castas dominantes.

No Brasil não temos castas, mas também temos pessoas invisíveis, intocáveis, designadas para o “trabalho sujo”. Da África arrancamos nossos escravos, capturados, açoitados e vendidos aqui como mercadoria. No Rio de Janeiro do Século XIX, eram os escravos que desciam as ladeiras carregando, sobre os ombros, tonéis cheios de dejetos humanos retirados das casas, uma alternativa ambulante para uma rede de esgoto inexistente. O trabalho manual, pesado ou sujo, sempre foi objeto de desprezo por parte dos colonizadores ibéricos e sua descendência, meio mestiça, meio branca, aqui deste lado das Américas. Quase duzentos anos se passaram e aquela elite ainda não aprendeu a limpar os próprios banheiros. Pior: ainda pensa que limpar sujeira é um demérito, algo digno de vergonha.

Ao enfatizar Lulinha como “limpador de estrume”, os acusadores depõem mais contra si mesmos, sobre seus preconceitos e juízos, do que contra o acusado. Não são as práticas de Lulinha, ou suas transações mal explicadas, que incomodam tanto, e sim suas origens indeléveis. Nesta bizarra narrativa tão brasileira, onde ficção e realidade se misturam, Lulinha representa o ex-pobre que incomoda, por não “ter berço”, por não se encaixar em seu papel.

A mensagem é clara: poder e riqueza (legítima ou não, pouco importa) são exclusividades da Casa Grande. Não são para filhos de retirantes nem para “limpadores de estrume”.

Nikolas Spagnol de Oliveira é jornalista. Mineiro, mora em Brasília.

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