O Fim do Ilusionismo

N. Oliveira
revista Maquiavel
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10 min readNov 24, 2016

Os seis primeiros meses do governo Temer

Depois de 13 anos e meio de governos do PT, o primeiro semestre do governo Temer ficou marcado pela agenda liberal alinhada aos “mercados”, pelo discurso conservador, com muitas idas-e-vindas e pelo aprofundamento da recessão econômica e da crise de representatividade no Brasil. Maquiavel apresenta um resumo crítico das medidas e dos percalços deste novo governo.

A posse do “interino” e a formação do novo ministério

Por volta de meio-dia de uma quinta-feira útil, dia 12 de Maio de 2016, o primeiro secretário do Senado Vicentinho Alves, do Tocantins, entregou a Michel Temer uma notificação que lhe atribuía, interinamente, o posto de Presidente da República. O Senado havia aprovado, depois de uma madrugada de discursos tão eloquentes quanto inúteis, a suspensão do mandato da titular Dilma Rousseff, reeleita 18 meses antes por mais de 54 milhões de votos. Embora o processo de impeachment ainda se arrastasse pelos 4 meses seguintes e Temer fosse oficialmente um interino, a ampla maioria já obtida no Senado já sinalizava o caráter irreversível do afastamento da presidenta.

A cara do novo governo. Foto: Twitter Oficial — Michel Temer.

Naquela tarde, Michel Temer anunciou seu novo ministério, formado por veteranos da política nacional e jovens herdeiros de dinastias regionais. Vários deles respondiam a processos judiciais, ou haviam sido citados na Operação Lava-Jato (como o próprio presidente, por sinal). Partidos de oposição ao governo Dilma, como PSDB, DEM e PPS, foram agraciados, mas o PMDB e outros partidos da antiga base aliada (PP e PSD) ficaram com a maior parte. Alguns dos nomeados, como Gilberto Kassab e Romero Jucá, já haviam sido ministros de Lula ou Dilma. Não havia nenhuma mulher, negro ou militante de movimentos sociais entre os nomeados. E, obviamente, nenhum petista. Os “mercados” reagiram bem à nomeação de Henrique Meirelles para o Ministério da Fazenda, alinhado com os grandes grupos de interesses privados do País.

Dentro do discurso de contenção de gastos, foram cortados 9 ministérios, entre eles o das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos e o da Cultura. A extinção deste último gerou o primeiro desgaste para o novo governo, com manifestações de artistas e profissionais do ramo e ocupações de prédios públicos, sendo revertida poucos dias depois. A transformação da Controladoria Geral da União (CGU) em Ministério da Fiscalização, Transparência e Controle também foi motivo de manifestações contrárias por parte dos servidores e entidades da sociedade civil. Outras pastas foram realocadas em ministérios maiores, dando origem a misturebas do tipo “Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações”. Todavia, a redução de gastos resultante deste rearranjo foi meramente simbólica, e apesar de prometer “enxugar a máquina pública”, o número de funcionários comissionados na administração federal subiria nos meses seguintes (7.236 nomeações contra 5.524 exonerações, entre Junho e Julho/2016).

A Reforma Trabalhista

Como forma de garantir a geração de empregos, o novo governo enfatiza a necessidade de simplificar e modernizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em vigor desde os tempos de Getúlio Vargas e apontada como arcaica e “engessadora” das negociações coletivas. Esse discurso oficial se alinha ao dos representantes do empresariado, que há tempos defendem uma flexibilização de praticamente todos os direitos assegurados na legislação, desde a jornada de trabalho (num ato falho, chegou-se a falar em 80 horas semanais) até a hora do almoço:

Pra quê hora do almoço, se o trabalhador pode operar a máquina com uma mão e comer um sanduíche com a outra?

O tema tem sido objeto de especulações e idas-e-vindas por parte do governo. De acordo com uma reportagem do jornal O Globo de 5 de Agosto, a proposta em elaboração previa a flexibilização de direitos assegurados na Constituição, como FGTS, férias remuneradas e o 13º salário. Posteriormente, o governo desmentiu que estes direitos seriam revistos. No mês seguinte, a controvérsia se instalou sobre a duração máxima permitida para a jornada diária de trabalho: uma declaração do Ministro do Trabalho abordava a possibilidade de estender a jornada máxima para 12 horas diárias, mediante negociação coletiva, mantendo o limite de 44 horas semanais. Diante da repercussão, o ministro recuou, declarando que não haveria aumento da jornada, pois as 12 horas representavam um “freio”, que incluía o limite máximo de horas extras por dia.

As repercussões negativas do tema causaram irritação ao presidente Michel Temer, que chegou a declarar que “o governo não é idiota para restringir direitos”. O desgaste gerado pelas informações contraditórias levou o governo a nomear um porta-voz oficial para filtrar as informações vindas do primeiro escalão.

Por fim, o governo desistiu de encaminhar uma proposta formal de reforma trabalhista para aprovação, optando por “fatiar” a alteração das regras na forma de projetos de lei de autoria dos próprios parlamentares, atuando nos bastidores pela sua aprovação.

Interessante observar que, antes do início da recessão atual, a economia brasileira gerou milhões de empregos formais, reduzindo o desemprego de 12,3% em 2003 para 4,8% em 2014, mesmo sem alterações substanciais na legislação trabalhista.

A Reforma da Previdência

As discussões sobre a reforma da Previdência Social já estavam em vigor desde o governo Dilma, incluídas no pacote de medidas propostas pelo então Ministro da Fazenda Joaquim Levy. Como medida paliativa e atendendo às pressões sindicais, o governo Dilma aprovou a chamada “Fórmula 85/95” que considera a soma do tempo de contribuição à idade do trabalhador para concessão da aposentadoria integral (sem o desconto do fator previdenciário). As mulheres continuaram a se aposentar com menor idade e tempo de contribuição. Embora o objetivo fosse incentivar o trabalhador a contribuir por mais tempo para o INSS, inicialmente a fórmula intensificou o déficit da Previdência, ao aumentar o valor das aposentadorias concedidas aos enquadrados na nova regra.

Ainda em 2015, o governo Dilma estabeleceu um fórum de discussão com as principais centrais sindicais sobre o tema, cujo ponto nevrálgico era a revisão da idade mínima para aposentadoria. Contudo, jamais submeteu uma proposta final ao Congresso, onde a base aliada se desfazia a cada dia.

O novo governo estabeleceu a reforma como “prioritária”, diante do peso do déficit da Previdência nas contas públicas (projetado em R$ 150 bilhões em 2016). A reforma de Temer tornaria mais rígidas as regras para concessão da aposentadoria, ao estabelecer uma idade mínima de 65 anos para os trabalhadores atuais, homens e mulheres (chegando a 70 anos para as futuras gerações), e aumentando o tempo mínimo de contribuição ao INSS para 25 anos (atualmente são 15). O piso dos benefícios pagos pelo INSS seria revisto, podendo ser fixado em valores inferiores ao salário mínimo vigente.

Trata-se de tema espinhoso para o governo, que evitou submeter a proposta ao Congresso antes das eleições municipais. Assim como prometido por Dilma, as centrais sindicais foram chamadas para debater a proposta. Diante da oposição da CUT (aliada histórica do PT), o governo busca a aprovação da UGT e da Frente Sindical (cujos líderes se mobilizaram pelo impeachment de Dilma) como forma de referendar a proposta que será encaminhada para votação ainda em 2016.

O governo alega que o envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida inviabilizarão a manutenção das regras atuais para aposentadoria. Por outro lado, especialistas apontam que a reforma proposta, aliada aos demais aspectos do ajuste fiscal, penaliza de forma injusta a população trabalhadora e trará dramáticas consequências sociais, agravando a desigualdade social.

A “PEC do teto”, ou PEC 241

No primeiro mês como presidente interino, Michel Temer anunciou uma proposta de emenda constitucional (PEC) que limitaria o crescimento dos gastos públicos, como medida de contenção dos gastos públicos. Propostas neste sentido já vinham sendo debatidas no governo Dilma, diante do crescimento do déficit nas contas públicas.

A PEC atrela o crescimento das despesas do governo federal à inflação registrada no ano anterior, tomando como base o ano de 2016 (para despesas com educação e saúde, será considerado 2017 como ano-base). Como a inflação corresponde à perda do poder de compra da moeda ao longo dos anos, na prática a proposta congela os investimentos reais em áreas como educação e saúde públicas. O longo período de abrangência da PEC, 20 anos, contrasta com o discurso otimista do próprio governo: se o Brasil espera retomar seu crescimento nos próximos anos, por que congelar estes investimentos nas próximas décadas? Atualmente, a Constituição estabelece percentuais mínimos da arrecadação da União a serem investidos em educação (18%, conforme artigo 212) e saúde (15%, conforme artigo 198, § 2º, inciso I). A nova PEC, efetivamente, anula estes percentuais mínimos de 2018 até 2038.

Para o economista Márcio Holland, Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no 1º mandato de Dilma, a “PEC do teto” é o “Plano Real do governo Temer”, pois representa “um controle orçamentário que o Brasil precisa há anos”. O próprio Presidente parece ter gostado da definição da PEC como um “novo Plano Real” e passou a utilizá-la. Veículos da grande mídia, como O Globo e Estadão, defenderam abertamente a PEC. Em Outubro, às vésperas da votação da proposta na Câmara dos Deputados (onde recebeu o número 241), o Governo montou uma grande ofensiva publicitária, cuja peça mais ousada, publicada em vários jornais e repleta de incorreções, era um chamado para “tirar o Brasil do vermelho”:

Depois do “não pense em crise, trabalhe”, eis a nova pérola da comunicação oficial do governo Temer.

Movimentos sociais e sindicatos mobilizaram protestos contra a PEC em várias cidades durante o mês de Outubro, reunindo 10 mil pessoas na Avenida Paulista, em São Paulo. Estudantes ocuparam mais de mil escolas por todo o País, em protesto ao congelamento dos investimentos públicos em educação e à proposta de reforma do ensino médio. Uma pesquisa do instituto Vox Populi, encomendada pela CUT, registrava uma rejeição de 70% dos entrevistados à PEC. Na consulta pública disponível no portal do Senado, a rejeição da PEC supera os 90%.

Protestos contra a “PEC do teto” marcaram o governo Temer. Foto: Mídia Ninja.

A legalidade da PEC também chegou a ser questionada pela Procuradoria Geral da República e por consultoria do próprio Congresso Nacional, por ofender a separação entre os três poderes e os direitos e garantias individuais, consideradas “cláusulas pétreas” da Constituição. Estes entendimentos, porém, não impediram a tramitação da proposta no Congresso. A PEC 241 foi aprovada por maioria constitucional (3/5) na Câmara dos Deputados, e deve ser votada em dois turnos no Senado, rebatizada com nova numeração (55), ainda em 2016.

O balanço de seis meses e um futuro incerto

Ao divulgar o balanço dos seus primeiros seis meses, o novo governo ressaltou o controle das contas públicas e da inflação, a retomada do otimismo e o “diálogo constante” com o Congresso, com vitórias na aprovação da PEC do teto dos gastos públicos e o novo marco regulatório do pré-sal.

A governabilidade foi recuperada, com obtenção de amplas maiorias nas votações no Congresso — em contraste com o governo Dilma, que não conseguiu 1/3 dos votos em nenhuma das duas casas legislativas para se manter na Presidência. Os presidentes da Câmara e do Senado são novamente aliados do Poder Executivo.

Por outro lado, no âmbito judicial, o julgamento das contas de campanha da chapa de Dilma e Temer nas eleições de 2014 pode antecipar o fim do mandato do atual presidente. A sentença, porém, só deve sair em 2017, e contrariando a jurisprudência já adotada em casos similares, as condutas da Presidenta eleita e seu vice poderão ser julgadas separadamente pelo TSE. A defesa de Dilma (que ainda pode ter seus direitos políticos cassados pelo TSE) argumenta que a campanha do vice também foi beneficiada com recursos oriundos de empreiteiras investigadas na Operação Lava-Jato, inclusive apresentando um cheque nominal a Michel Temer como evidência. Na hipótese de cassação de Temer, o Congresso deverá eleger um novo presidente para completar o mandato original, até o final de 2018. Entre os favoritos para esta eleição indireta, surge o nome do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que dificilmente passaria pelo crivo das urnas numa eleição direta. Neste caso, mudam os nomes, mas mantêm-se a política econômica.

No documento “Austeridade e Retrocesso”, economistas apontam que o pacote de medidas econômicas proposta pelo governo (em especial a “PEC do teto”) não representa uma tentativa de ajuste fiscal, ou de retomada do crescimento econômico, e sim “um novo projeto de País, diferente do previsto na Constituição”, que afetará principalmente a população mais carente, principal usuária da educação pública e do SUS e beneficiária de programas sociais como o Bolsa Família. Eles contestam o discurso oficial sobre a necessidade de frear “a gastança do setor público”, pois o crescimento recente da dívida pública está relacionado às políticas cambial e monetária, e não às despesas primárias, como os investimentos em educação e saúde. Os juros e amortizações da dívida pública, que consomem quase metade do orçamento da União, não serão afetados por essas medidas.

O desemprego permanece em patamares elevados (11,8%), e o PIB deve cair 3,4% em 2016, resultado semelhante ao de 2015 (-3,8%). O comércio projeta uma queda de 6% nas vendas de fim de ano, em relação ao ano anterior. E o discurso de austeridade ainda não se traduziu no resultado das contas públicas (que devem fechar 2016 com déficit recorde) ou mesmo nos gastos pessoais da Presidência e dos ministros.

Na análise do site alemão Deutsche Welle, a estabilidade do governo Temer é “incerta, diante dos péssimos índices de popularidade, crise econômica e escândalos de corrupção. Caso as condições de vida e emprego da população não comecem a melhorar, o governo poderá perder seu principal ativo: o apoio da base parlamentar.

Para o economista Plínio de Arruda Sampaio Júnior (filho do falecido candidato à Presidência da República pelo PSOL, Plínio de Arruda Sampaio), Temer não tem “sustentação política, força social, base legal e condição moral” para impor o programa de ajuste fiscal que defende, e “mais dia, menos dia, serão derrubados pela força das ruas”.

N. Oliveira é jornalista. Mineiro, mora em Brasília.

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