Quando a vida se torna resistência… (tradução)

Se um novo materialismo ou um novo vitalismo vierem a existir a partir daí, eles chegarão de surpresa lá onde não se espera, por um de fora não levado a sério, desqualificado por princípio

Raquel Camargo
revista Maquiavel
5 min readApr 11, 2017

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Isabelle Stengers, filósofa e professora de filosofia da ciência na Universidade Livre de Bruxelas.

[Isabelle Stengers, “Si la vie devient résistance…”, originalmente publicado na revista Multitudes.]

Para mim, esta época não é a de um proclamado triunfo do humanismo — proclamação que ocorreu apenas nas mídias parisienses. Eu também não sei se é tão importante assim se referir a Foucault para colocá-la sob o signo (unitário?) do biopoder, a menos que isso seja precisamente uma confirmação daquilo que estamos “dentro” e que essa questão do biopoder se decomponha em uma multiplicidade de componentes, dentre os quais alguns parecem remeter ao Estado, outros ao capitalismo e outros ainda a isso que alguns chamam de “a sociedade civil”, o todo emaranhado. Haveria aí algum traço em comum entre os organismos geneticamente modificados (que colocam os Estados em posição de perplexidade, espremidos entre o capitalismo e os grupos ativos da sociedade civil), as técnicas de procriação artificial (em que o Estado e suas regulamentações tendem a atribuir para si o papel do grande moralizador, do amigo do “desejo de filho”, mas também daquele que se encarrega de determinar o que é permitido e o que não é), a questão das drogas (em que o Estado se faz defensor repressivo do “sujeito” e do “laço social”) e as organizações humanitárias (essas manifestações da “sociedade civil” que parecem se ver delegar através dos Estados as suas antigas prerrogativas civilizadoras, reduzidas, nessas circunstâncias, à “é preciso salvar e curar”)?

Se eu coloquei o Estado no centro de cada questão, foi porque a questão de Foucault em A vontade de saber e Em defesa da sociedade não é o capitalismo, mas a soberania. Que as empresas capitalistas, legais ou não, trafiquem os vivos enquanto vivos — os DNAs, os ovários, as “máquinas que pensam”, as drogas, os testes genéticos -, a indignação é fácil e pode seguir vias bastante clássicas. Mas que o poder tenha “deixado de lado a morte” para se atribuir como objeto “a vida” (dupla sequência correspondente ao “corpo” e à “população”), ajuda bastante a pensar ali onde é mais difícil, ali onde mais facilmente nos voltamos ao Estado para exigir que ele “faça alguma coisa”. O braço longo do poder atravessa, como que por encantamento, todas as estratificações que supostamente deveriam contê-lo, como quando “uma criança está em perigo” e precisa ser retirada de sua família indigna (sobretudo se esta é de origem estrangeira), e, muito em breve — isso já começa a acontecer nos Estados-Unidos –, se uma mulher grávida ousa tomar um copo de bebida alcoólica. E o poder do Estado se exibe durante terremotos e outros desastres: ficamos orgulhosos em ver “nossos” cães de resgate, “nossos” bombeiros e “nossos” militares salvando vidas abstratas em uma gigantesca mobilização de recursos, de repente consagrados a pessoas cuja vida concreta nos era perfeitamente indiferente.

Se a resistência se torna poder da vida, poder vital, de acordo com Deleuze, ela pode ser resistência ao poder, mas não pode se deixar definir por um objeto, que seria o poder. Se “ela não se resume às espécies, aos ambientes e aos caminhos desse ou daquele diagrama”, é porque ela deve partilhar com o capitalismo (capitalismo e esquizofrenia) uma grande indiferença em relação às instâncias e às hierarquias críticas. Isso não se torna um problema se percebermos a multiplicidade proliferante disso que se inventa como “força que resiste”, desde a americana que viveu por mais de um ano na sua sequoia[1], até os grupos ativistas que tratamos por ecoterroristas, desde as “femmes en noir[2] até às associações de usuários de drogas não arrependidos — o que é bastante difícil para os teóricos, posto que isso coloca à prova as suas próprias tentações “estadistas” e pedagógicas. Se a vida se torna resistência, é o próprio pensamento da resistência que deve passar por uma mutação, trocar os “ou… ou…” por “e… e…”.

Starhawk — Foto: Laurie Lovekraft/Facebook

Se um novo materialismo ou um novo vitalismo vierem a existir a partir daí, eles chegarão de surpresa lá onde não se espera, por um de fora não levado a sério, desqualificado por princípio. O que torna possível resistir? Nos Estados Unidos, mulheres herdeiras de movimentos feministas, ecologistas, pacifistas etc. (e, portanto, anticapitalistas), se inventaram bruxas e reinventaram rituais propriamente construtivistas. As histórias que elas contam reúnem a ascensão do Sujeito do humanismo à caça às bruxas que alguns marxistas (do passado?) não teriam hesitado em colocar na conta das virtudes progressistas do capitalismo, desfazendo os laços e os estratos que supostamente devem se opor ao socialismo.

A “magia” dessas histórias tem por ingrediente uma Deusa que reencena a relação entre Vida e Espiritualidade, que faz existir aquilo de que estamos tão orgulhosos de ter escapado, não se sabe como: futur antérieur[3]. Apenas a título de exemplo, eis aqui o que uma dentre elas, Starhawk*, me pediu para divulgar (17 de dezembro de 1999). Isso poderia interessar a Foucault.

*Starhawk é uma escritora, uma ativista… e uma bruxa. As bruxas neo-pagãs americanas são herdeiras e ativistas dos movimentos políticos pacifistas, ecológicos, feministas e anticapitalistas que estão longe de ter desaparecido dos Estados-Unidos. Elas aprenderam com os movimentos de desobediência civil aquilo que Guattari afirmava em Les trois écologies: trata-se de “reclaim” (um termo difícil de traduzir, ao mesmo tempo curar, se reapropriar, tornar novamente habitável etc.) as práticas de si, as práticas sociais, as práticas políticas de luta. A Deusa é o ponto móvel de articulação e de desterritorialização para essa “ecosofia”, produzida de uma forma construtivista-especulativa-pragmática-política, e não de conversão a uma transcendência qualquer. Para quem se interessa pelas witches, tentem isto, para começar: Starhawk, Dreaming the Dark, Beacon Press, Boston, 1997 (nova edição quinze anos depois).

[1] A autora faz aqui referência à americana Julia Hill, que viveu 738 dias em uma sequoia gigante com a intenção de salvar-lhe a vida (N.T.).

[2]Femmes en noir” é uma rede internacional criada por mulheres israelenses nos fim dos anos 80 para se opor à ocupação israelense de territórios palestinos e a qualquer forma de violência e opressão contra as mulheres decorrente dessas ocupações (N.T.).

[3] O “futur antérieur” é um tempo verbal francês que encontra correspondência no nosso futuro composto, que não é muito usado. É um tempo que exprime uma ação futura, que acontece antes de outra ação também futura, como no exemplo: “Quando você tiver partido, eu me mudarei de cidade” (N.T.).

Isabelle Stengers é belga, filósofa e professora de filosofia da ciência na Universidade Livre de Bruxelas.

tradução

Raquel Camargo é tradutora e doutoranda em tradução na Universidade de São Paulo.

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