a fórmula mágica da paz não tá aqui: sobre as cidades e o cansaço

Tabata Luz
Revista Negra Trama
5 min readJun 9, 2020

Lembro de conversar várias vezes com o Kaique sobre letras de músicas. Sempre que falávamos sobre Fórmula Mágica da Paz, eu percebia o quanto a letra tinha um significado grandioso para a trajetória dele enquanto homem negro que viveu boa parte da vida no maior conjunto habitacional da América Latina, Cidade Tiradentes em São Paulo. Eu não cresci em São Paulo, minha percepção sobre a cidade é muito diferente, mas devo afirmar que todas vezes em que andava pelas avenidas movimentadas ou pelas estações cheias do metrô e o player aleatório trazia essa música aos fones de ouvido, eu me imaginava na pele do protagonista daqueles versos, caminhando por um bairro periférico de SP, com a sensação de estar completamente condicionado àquela realidade, e sendo afetado por diversos acontecimentos que muitas vezes são absurdos, mas absolutamente corriqueiros para quem partilha um certo tipo de cotidiano. Fico pensando hoje, o quanto esse cotidiano é historicamente determinado e como é interessante para a manutenção de um certo modo de vida, que algumas pessoas estejam condicionadas a experimentar o urbano de uma forma economicamente degradante, socialmente vulnerável e regida pela violência.

As cidades são os espaços em que todas as opressões que nós discutimos e lemos são materializadas. Pensar o porquê disso é esbarrar no fato de que o espaço urbano no Brasil, especialmente quando falamos de grandes metrópoles, começa a se desenvolver em função da industrialização, no começo do século XX. As condições e os desdobramentos dessa combinação a gente conhece bem — expulsão dos trabalhadores dos centros das cidades, formação das periferias, o Estado criando condições para o desenvolvimento industrial através de salários baixos e da falta de políticas sociais. As teorias eugênicas funcionam como base sólida para amparar tudo isso, especialmente aquela sobre o branqueamento da população que, nesse momento, se aplica perfeitamente aos espaços, já que os centros — tomo São Paulo como exemplo — eram predominante negros, precisavam ser branqueados. É tanto um processo de afastamento geográfico, quanto uma tentativa de eliminar todas as referências afro-brasileiras, toda forma de vida negra (mas, isso aqui é assunto pra outro texto). Não é preciso descrever o quão violento isso tudo é. A vida negra é empurrada para a periferia da periferia do mundo, propositalmente sem dinheiro, acesso, casa, nada, só sua força de trabalho condicionada a ser mais barata, não há chance nenhuma para paz aqui.

Cada lugar, um lugar, cada lugar uma lei e cada lei uma razão, as cidades crescem assim, com a razão da racialização dos espaços passando por cima do que for preciso. O processo de urbanização é violento, não por exceção, mas por essência. A violência, sobretudo do Estado, é parte constitutiva da formação das cidades justamente para delimitar os espaços da propriedade privada, os espaços pretos e brancos. A normalização dessa violência no cotidiano é indispensável para a produção e reprodução do espaço urbano e, consequentemente, desse modo de vida. Fico pensando que a necessidade por essa violência naturalizada não é outra coisa senão a experiência da necropolítica, um estado constante de terror, uma arma carregada e apontada diuturnamente para a cabeça de pessoas determinadas. E isso tudo só funciona tão bem porque está duramente fundamentado em um processo racista de expansão territorial e de nação, é fácil mirar em alguém que já está sendo há muito tempo estabelecido como alvo.

Não é difícil imaginar o que a criação de toda essa estrutura que enxerga os corpos negros como descartáveis, como exército de reserva, provoca no nível subjetivo dos pretos. Na música, a gente acompanha um personagem falando sobre sua vida, atravessada por acontecimentos que, mais uma vez, são absurdos, mas parecem ser muito cotidianos para ele. Ainda assim, o personagem tá cansado, a música para mim é sobre alguém que tá exausto da sensação de estar em um campo minado, da maldade na cabeça o dia inteiro, dos amigos presos, da falta de referenciais e da dificuldade em fazer uso da própria liberdade, que aqui nem parece liberdade mesmo. É uma exaustão acumulada desde o tempo de moleque, marcada por tantas coisas e pessoas, mas especialmente pelos velórios que rolaram de lá pra cá, a morte é companheira constante desse personagem. A sensação de ir longe demais é inevitavelmente tropeçar por ela (cemitério São Luiz, aqui jaz). A gente entende por que ele fala que malandragem de verdade é viver.

Apesar de todos os pesares, no final de cada estrofe, de cada fase e transição de sua vida, eu identifico uma constante, a busca pela fórmula mágica da paz. Perceba que não importa o que ele faça — na rota da função, trabalhando ou conversando com os amigos -, não parece existir possibilidade para paz naquele lugar, pelo contrário. Cada passo é um risco grande de pisar numa mina, e parece que esse momento chega quando Derley morre, 4 tiros do pescoço pra cima, mais uma dona Maria de luto. A morte é companheira, mas em meio a tanta violência normalizada, parece que a sensibilidade para absurdos vai se perdendo. Essa morte em específico atravessa o personagem por completo, ele questiona tudo, sua ideologia enfraqueceu, nada faz sentido mesmo. A gente consegue traçar vários paralelos com a nossa vida, ideologia nenhuma é forte diante de algumas coisas, parece mesmo que tudo deu em nada, porque só morre pobre, só morre preto.

Cada indivíduo carrega em si marcas de espaços, não ociosamente, isso acontece de acordo com um sentido histórico e quando falamos de Brasil, estamos falando de condicionantes espaciais determinados pela raça. Mas, o que nos separa deles, nos une aos nossos. A roupa humilde e a pele escura, o rosto abatido pela vida dura; as manifestações artísticas e culturais que só a gente entende de verdade o que significa; a ânsia pela paz, que parece não estar aqui, numa cidade que não foi pensada para nos acolher, mas planejada para nos tirar o acesso, a humanidade e se reproduzir a partir de nossas vidas intensificadamente. O personagem quer descanso, e eu acho que todo preto como ele, só quer isso mesmo, um terreno no mato, sem luxo, descalço, nadar num riacho, sem fome. Mas como fazer isso numa São Paulo em que Deus é uma nota de cem? Nada disso se realiza num projeto de cidade como o nosso, é necessário superar isso e talvez o personagem aponte a saída para a união com os seus, na última estrofe. Se a liberdade é uma luta constante, a busca do preto pela paz nas grandes cidades, também é.

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