A Visita

Mateus Ferreira
Revista Negra Trama
3 min readFeb 8, 2021

O apartamento começava a se encher de sombra e calor, o pouco vento que entrava pela janela dedicava-se a pincelar os contornos da cama bagunçada pelo corpo que levantara a pouco e ia posicionar-se na cadeira armada que se estendia de frente ao movimento da rua lá fora. Jorge dedilhou o celular alguns minutos até encontrar um “Carinhoso”, de Pixinguinha, para compor a trilha sonora de um momento solitário em uma sexta-feira à noite. E a música passeava por tudo: os cômodos, a mobília, os livros, o copo meio cheio, o corpo marrom e os olhos marejados por incontáveis lembranças distantes demais para um alcance tão visceral.

Jorge posicionava-se ali, como o espectador que exerce aos poucos uma cinefilia presente em alguém que admira tanto as imagens das memórias, as suas e as dos que passavam na rua.

“Se acostumou com o silêncio provocado por essa música, Jorge?” — dizia a voz suave que se estendia pelo quarto e se confundia ao ritmo de Pixinguinha.

(…E os meus olhos ficam sorrindo

E pelas ruas vão te seguindo

Mas mesmo assim foge de mim…)

Não virou os olhos para trás, nem precisava, Jorge sabia quem acabara de chegar, sabia do peso que enchia a cama vagarosamente, sabia do suspiro e de todas as sombras no quarto, do movimento. Tomou um gole cheio do líquido que restava na metade do copo e disse “Eu não imaginei que você viesse tão tarde”

O vento soprou por todo o quarto, o corpo estendido na cama levantou-se, aproximou-se da janela também, tocou o ombro de Jorge e recitou:

“Nunca escutei essa música com muita atenção, não via sentido em parar assim e me concentrar tanto…só pra ficar triste”.

(…Vem sentir o calor dos lábios meus

À procura dos teus…)

“Ninguém fica triste escutando música, a gente fica e só” retrucou Jorge, depois de finalmente virar seus olhos em direção a quem estava ali, de pé.

“Eu fico, as vezes…com algumas” disse enquanto olhava o filme dos que passavam na rua.

Os dois dançaram a música em movimento invisível por todo o quarto, ainda que não saíssem do lugar, nem proferissem qualquer palavra, havia um movimento imenso e constante.

Um toque suave no ombro, a mão que se posicionava delicadamente na cintura, a cabeça recostada na barriga…

A música acabou, Jorge permaneceu sentado, os passos desta presença que estava de pé ao seu lado voltavam em direção a cama bagunçada, sentou-se e agora olhava atentamente para os olhos pretos do rapaz.

Havia uma outra música circulando o ambiente, mas fazia um silêncio colossal nos olhos distantes dos dois, só a respiração e o barulho constante de um garrafão de água e um ventilador acompanhavam o ritmo de uma outra dança silenciosa. A lembrança que sentou-se na cama ia se estendendo junto com as sombras do quarto, o vento ficava mais forte.

Jorge respirou fundo, acostumou-se com as visitas singelas desta lembrança no meio de suas solidões. Mais cedo, havia se acostumado com a própria solidão e com a imensa companhia de si mesmo e de Pixinguinha.

Não falou mais nada, também não havia mais nada para falar, o resto da noite era só o resto da noite desta sexta feira em um quarto povoado por lembranças, sombras e vento.

Ainda estava sozinho, então voltou ao exercício de observar o movimento cinematográfico dos que passavam na rua.

Enfim.

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