Campo Limpo, primavera.

Victor Morgado Farias dos Santos
Revista Negra Trama
30 min readDec 12, 2020

Capitulo II: Movimento Voyeurístico

Foto do meu parceiro e irmão Matheus Henrique

A porta do apartamento na Rua Ana Cintra se abriu. O coração era um misto de muitas coisas, mas naquele momento a velocidade dos meus batimentos poderia resumir o órgão a uma coisa: um ataque de ansiedade. Essas coisas tinham ficando cada vez mais comuns. De dia vinha à falta de ar, que galgava as horas como a Kyuubi destruindo Konoha. Ao chegar à noite, todo o ar, comida e poluição queriam sair rasgando a garganta em um vômito ácido que ceifava o meu sono. O corpo acordado havia se tornado meu pior inimigo e prisão. Eu sou a minha própria claustrofobia, meu medo e se continuasse perdendo o ar assim, talvez a minha morte. Pesquisei na Google no início da pandemia se era realmente possível morrer de ansiedade e não achei nada conclusivo, mas independentemente disso, eu já estava desesperada com a ideia de ter os pulmões implodidos a qualquer momento andando na rua.

Caetano não estava na casa. Deveria chegar daqui duas horas e ao sentar no sofá cheio de bordados lilases e almofadas de tricô combinando, tirei a mascara e a coloquei na bolsa, que deixei cuidadosamente no chão próximo ao sofá. Ai, eu preciso tentar relaxar, tomar consciência de mim. Inspirei com dificuldades contando até seis, guardei o a ar contando até seis sentindo que o peito não comportava a quantidade, expirei contando até seis expulsando-o e ouvi um gemido vindo do quarto do Henrique. Tentei puxar mais o ar novamente do pulmão, o que é algo relativamente difícil nas circunstâncias atuais e apenas tive como resposta os barulhos alheios. Não sou apreciadora desse tipo de coisa, mas o que poderia fazer? Sair do apartamento para chorar em alguma estação do metrô? Chorar de máscara ainda. Não, prefira ficar e chorar ouvindo os gemidos de uma voz fina e entusiasta misturado a de um grunhido áspero. Ri em silêncio, já deixando as lágrimas saírem caladas junto com o pouco do ar dos pulmões. Eu não sou boa em muitas coisas, na verdade, poderia contar nos dedos de uma mão o que eu realmente faço minimamente bem e entre essas coisas bato no peito e digo: sou especialista em fazer as coisas em silêncio. Ao longo dos anos a prática fez dessa minha maior habilidade, juntamente com roer as unhas do pé com a boca. Podia chorar, podia vomitar e sangrar em silêncio. Não precisava ser notada. Eu aprendi a não ser notada. Não faça barulhos desnecessários, disse a avó uma vez. Ai Dona Paola, a senhora me salvou e eu te devo tudo, mas só a senhora para dizer isso para uma menina de dezesseis anos recentemente expulsa de casa. Expirei o mais fundo possível, não que isso seja muita coisa, já que parecia que os pulmões estavam sempre no limite da cola como o Franky em toda batalha. O som aumentou, misturando os grunhidos e gemidos. Neste momento não pude perceber se era fingimento ou excitação. Fazia já um tempo que eu e Caetano não chegávamos a esse ponto. Ele era gentil, me tocava e me masturbava, mas era só eu fingir que gozava que queria meter o pau fino e gozar de verdade. Encapa o pau, ele sempre esperava que eu esquecesse esse fato. Resmungava algumas vezes, mas sempre repetia os mesmos movimentos de britadeira em seu completo silêncio com uma cara razoavelmente contorcida. Um a um ele dizia antes de dormir. Ultimamente ele nem me dava um abraço. Puxei o ar.

Mais barulho, meu deus, aquele apartamento compartilhado com sua meia luz amarelada, recheada de móveis lotados dos mais variados bordados e paredes recheadas com máscaras tribais exóticas, que imaginava serem todas africanas, pareciam me encarar agora. Expirei com certa dificuldade. Odeio ser observada. Não sou uma voyeur. Não to aqui para ouvir o Henrique transando no meio da pandemia. Eu só precisava de um lugar para chorar sem ninguém me ver, ok. Elas não responderam. Odeio me sentir como o Mewtwo nos experimentos da Equipe Rocket. Isso só aumenta a ansiedade, sabe? Elas continuavam paradas com seus narizes largos e buracos estranhos no lugar dos olhos. Bufei. Sabe qual é a pior parte? Essa nem é a primeira vez que uma merda dessas acontece comigo. Inspirei. Expirei. No fim, talvez minha vida fosse sempre um grande movimento voyeurístico.

Ri, interrompendo um pouco o cair das lágrimas. Nunca tinha compartilhado essa memória com ninguém além dela. Na casa da avó uns quatro dias depois de ter sido expulsa de casa, consegui me ver perfeitamente na laje ao lado da Sandra fumando maconha e tomando Balalaika ainda com a cara toda roxa. Era um prensado horrível que rasgava a garganta feito navalha cega. O único jeito de umedecer é com essa merda de vodka, meu. Merda Sandra, a que ponto chegamos? Nós duas rimos. Por muito tempo fomos eu e ela contra o mundo. Eu a admirava e precisava dela. Por muito tempo ela foi minha heroína.

Quando ela veio me encontrar, jogou uma pedra no quintal. Eu não sabia que ela vinha, estava deitada na cama sem expectativas de melhora bem ao estilo do Shinji no quarto antigo do tio Marco. Olhava sem ver as paredes do teto descascadas pela umidade. Todas as minhas coisas ainda estavam em sacolas de supermercado e no quarto só tinha uma cama velha de ferro que rangia e um colchão novo que meu pai tinha comprado às pressas. Rossi! Alguém chamou com um sussurro agudo. Rossi! Pronto, agora o capeta vai vir me pegar? Minha avó tinha dito que fumar maconha era coisa do tinhoso. Talvez ele viesse cobrar minha alma, mesmo que não valesse muita coisa. Rossi! Não, aquela podia ser uma demônia, mas tava mais para o Adam Sandler naquele filme do que para o Satanás mesmo. Sandra? Escutei um barulho de alguém escalando o muro pequeno de ferro. Essa comporta aqui quase fez eu quebrar minhas pernas, caramba Rossi, nem tá chovendo pra que colocar ela? Bicho, o que você está fazendo aqui? Você se esqueceu de ir pro Nicão faz quatro dias! Minha flor, o que caralhos ta acontecendo? Fui à sua casa e vi seu irmão igual um rei no seu quarto. Pensei, o que o chorão do Vinicius ta fazendo ai? Ele não é chorão, só tem doze anos. Ele tava arrumando a sua coleção de revistinhas chinesas e eu fiquei meu, onde a Rossi tá e por que ela ta deixando ele mexer no tesouro dela? Eu ri. Isso foi ontem e até sair na última aula do Nicão tava pensando que você poderia estar morta, meu. Você não assistiu a ultima aula, cabulou ela com certeza, né? Ela riu. A ultima aula é sempre uma questão de perspectiva, Rossi. Eu ri. E adivinha quem eu encontrei fazendo o mesmo? Fiquei em silêncio, ela adorava responder às próprias perguntas. Isso mesmo, aquela Augusta Moreira. A crente do cú quente, falamos nós duas ao mesmo tempo. Rimos. Ela disse que teve uma confusão da porra na sua casa e que a polícia até apareceu lá. Eu não sabia se acreditava nela, por que, cê sabe, ela é fofoqueira pra cacete, mas era a única coisa que eu tinha. Primeiro imaginei que você podia estar presa, mas aí eu lembrei que você é idêntica a Bella, então dificilmente isso teria rolando a não ser que você tivesse sido pega em flagrante com drogas na xoxota ou que o policial fosse um vampiro. Ela riu. Eu odiava essas piadas com brancos. Como isso não teria rolado, repetiu, comecei a me acalmar. Alguém podia ter roubado sua mansão etc. e tal. Pensei que você estivesse assustada e tivesse fugido pro rabo de saia da sua avó. Não seria a primeira vez… Mas agora sério, me fala o que porra aconteceu? Respirei fundo atrás da janela de ferro. Não são chineses, são mangás japoneses que a gente sempre compra lá na Liberdade… Ele já está mesmo mexendo no meu One Piece? Ele tava lá se mudando. Segurei as lágrimas. O Vinicius não perdeu tempo nenhum pra realizar seu sonho, uau. Vou sair da casa, então segue em frente até ver uma escada de alvenaria. Sobe lá e me espera beleza? Bele!

Foi na casa térrea, naquele tempo, que comecei a me tornar uma especialista em não fazer barulhos. Puxei o ar. Abri a porta do quarto como uma ninja e sai de fininho caindo na sala cheia de imagens de santos, protagonizado pela nossa senhora e da máquina velha de costura que estava na família há muito tempo. Perto do filtro de barro, encontrei a chave para a cozinha. Sabia que era a de ponta grossa e ao colocar na fechadura, a porta se abriu rangendo como acontece nos filmes de casa mal assombrada. Fiquei por quase um minuto na dúvida sobre voltar para o quarto ou ir. Vó me perdoa. Sai para a cozinha que ficava aberta para o quintal. A porta se abria para o velho limoeiro retorcido que apontava para a escada de alvenaria no fundo. Olhei para trás e vi a casa abobora da avó. Passei no modo stealth pela casa do meio. A Dona Joelma mora lá até os dias de hoje pagando o mesmo aluguel. Isso é uma raridade. Em frente à casa do fundo, que na época não existia e dava apenas espaço para escada de alvenaria, respirei fundo e subi na laje. Lá, onde é lar das caixas de água, a Sandra me esperava com a garrafa de Balalaika na mão esquerda. Mesmo no escuro nos encontramos perfeitamente em um abraço simetricamente sincronizado parecido com o do Harry e da Hermine no fim da Câmara Secreta. Ficamos paradas em um só corpo e não demorou muito para começar a chorar. Com ela eu sabia que podia fazer qualquer barulho. Acho que é raro achar alguém para chorar e poder fazer todos os barulhos de um longo choro. Minha flor, o que aconteceu com você? Empurrei meu corpo para fora do nós e ela ainda segurando a gente, mantendo o nó com as mãos em meus ombros. Ela me olhou como o Sasuke olhou para a caixa d’água depois de perceber o estrago do Rasengan do Naruto. Meu deus, tá escuro demais ou você tá tentando mudar de forma igual à Mística dos X-men? Eu ri. Cacete, quem fez isso com a sua cara? Foi o imbecil do Rodolfo? Juro se for, eu arranco as bolas daquele filho da puta ainda hoje! Não, ele não fez nada além de terminar comigo no dia que eu tomei essa surra. Ri sem controle, você quer saber o porquê? Se isso levar ao motivo de você ter levado um fatality, então sim. Ele não era o motivo, era só mais um das pessoas que eu tinha descido seguir no meu movimento voyeurístico. Inspirei devagar. Ele terminou comigo porque o que eu não tenho de peito, eu tenho de nariz. Ela controlou a risada. Ele falou isso? Um ano e quatro meses de namoro e ele disse isso pra mim. Me chamou de Severo Snape. Ela conteve outra risada. Um ano e quatro meses indo com ele nos roles para ele cheirar pó, um ano e quatro meses indo com ele para qualquer lugar em que ele me deixaria sozinha para andar skate, um ano e quatro meses para terminar assim. Meu, que arrombado! Eu descobri que ele estava já ficando com outra mina. Quem? A Juliana do segundo B. Caralho, aquele pretinha é gata. Revirei os olhos. Eu não sabia naquela época que a Sandra gostava de colar velcro. Desculpa Rossi. Não, tá tudo bem. Enfim e aí? E aí que eu voltei pra casa, queria contar para minha mãe, mas ela me viu com a maquiagem toda borrada e como ela estava indo dar aula de novo atrasada, primeiro ela só parou para me olhar com uma cara de espanto. Ela parecia o Urameshi vendo que tinha morrido. Eu nunca entendo suas referências nerds. Otaku. Segue o jogo Arnaldo. Então, broxou totalmente minha vontade de falar com ela. Ai meu, ela não para mais em casa, né? Agora ela da aula de manha e a noite, mas quer saber, espero que ela se foda. Meu, como assim? Antes de ela ir, teve um surto do tipo que a parecendo o Rukia tem sem motivo com o Ichigo, porque esqueceu não sei o que. Ficou gritando para alguém ajudar ela achar alguma merda. Quando ela me viu deitada na cama do quarto me deu um sermão, sobre como eu não ajudava em nada, eu era uma vagabunda e ainda por cima era uma relaxada sem zelo nenhum. Rossi, que merda. Ela tomou o primeiro gole. Inspirei. Eu continuei no quarto, uma hora eu fechei a porta e comecei a chorar sem parar. Mas sabe às vezes a gente se cansa de só ficar chorando e aí eu peguei aquele pino com pó, aquele que o Rodolfo tinha deixado comigo umas semanas atrás. Rossi, que merda, meu, por que caralhos você fez isso? Segunda golada. Expirei. Cheirei tudo em menos de um minuto. Muito do pó ficou caído pelo quarto. Primeira vez? Provavelmente a última, porque meu nariz ficou esquizito pra caralho. No começo eu me senti bem pra cacete, senti que eu poderia estar bem sozinha pra sempre, mas passou uma hora e eu me senti uma merda completa, tipo o Naruto no banquinho com a musiquinha triste e tudo. Pensei em ligar pra ele, mas é humilhação demais, então eu acabei fumando um pra ver se passava. Acabei com o coração acelerado e aí decidi fechar com chave de ouro. Bebi boa parte da pinga do Corinthians do papai. Ela chegou em casa e me viu vomitando no banheiro. Primeiro ela veio toda afetuosa, provavelmente se sentindo mal por ter brigado comigo. O comportamento de sempre. Sim, ela sempre tem essas crises de remorso e me perguntou toda doce se eu tava bem, se eu queria que ela fizesse algo gostosa para eu comer, mas quando viu que eu tava chapada, com a pinga caída pelo chão do banheiro, ficou fula da vida. Acordou o papai, os meninos e a rua toda. Ela não calou a boca sobre como ela trabalhava o dia todo, limpava a casa e ainda cuidava de todo mundo pra eu estar naquela situação. E ai? Eu tava de saco cheio e tentei ir para o meu quarto. Quando quis fechar a porta na cara dela, ela entrou mais irritada e falando mais alto ainda e aí eu não aguentei mais e mandei ela calar a boca. Meu deus. Foi assim que ela me deu essa nova aparência de Mística como presente. Meu deus Rossi. É foi um rolo, a polícia apareceu, o papai voou em cima dela, o Valente chorou e se escondeu e o Vini entrou no quarto e viu tudo. Foi uma merda. Ela me abraçou de novo. Ficamos paradas juntas por não sei quanto tempo sob a luz da lua. Em algum momento eu parei de chorar e ela se desgrudou de mim. Olha minha flor, eu tenho um beck e um pouco vodka. Não sei se isso é o ideal agora, mas se você quiser a gente pode… Eu topo, principalmente pela vodka, claro, se você deixar alguma gota para mim capitão Jack Sparrow.

Ficamos fumando e enchendo a cara até que os barulhos começaram. Inicialmente quando o primeiro gritinho chegou, discutimos baixinho sobre os barulhos serem uma loucura coletiva da chapação, mas depois de alguns vários gemidões do Zap, percebemos que eram reais. Sandra farejou de onde eles vinham. Alguém ta fodendo nervoso no Hotel, hem? Fomos em direção ao muro que separa o terreno da avó do Hotel Campo Limpo. Deveria se chamar Motel Campo Limpo. Naquela noite, uma janela aberta iluminava a laje. Nela, um casal de meia idade estava fodendo apressado. A mulher depilada gemia alto como a parceira do Henrique. Dissimulação ou gozo, com esses barulhos nunca é possível dizer ao certo. Eu já não lembro se alguma fez o Caetano me fez sentir qualquer tipo de coisa parecida.

Como estávamos muito chapadas e bêbadas, ficamos um longo tempo hipnotizadas. Apenas observando o casal variando de posições e de níveis de barulhos. O homem era magrinho e peludo como o Caetano. Seria um sinal? Ele parecia só saber chamar a mulher de cachorrona e dar uns tapas na bunda magra dela. A moça não parecia estar à vontade com os insultos e meteção desenfreada. Foi a primeira vez que eu vi sexo. Talvez a minha sina do sexo mega penetrativo tenha começado ali com aquela britadeira humana. Talvez fosse realmente um sinal. Puxei um pouco mais de ar. Em um momento eles mudaram da posição frango assado para a de quatro. Não pareceu que mulher estivesse confortável de quatro também. O cara parecia estar fazendo a dança do créu na velocidade cinco. Em meio ao barulho desenfreado da pele se chocando com força, ela me viu, mesmo com seus olhos distantes. Inicialmente fiquei parada imóvel, vendo o olhar de tédio e um pouco de dor encontrando os meus olhos vermelhos e curiosos. Expirei o resto do ar do corpo. Quem está aí? Abaixei como uma ninja, escondendo-me no muro com o coração na boca. Sandra foi mais atrapalhada e caiu contra a caixa de água, deixando a garrafa se quebrar no chão. Meu deus fecha a janela! Ficamos paradas e quietas por um tempo, com medo de que a vó subisse atraída pelo barulho, mas isso não aconteceu. Depois de um tempo, quando os ritmos dos batimentos dos nossos corações deixaram de ser medo para se tornar excitação, ela me disse que precisava ir embora. Toda a felicidade daquele dia pareceu se acabar de súbito. Queria implorar para ela ficar, pedir para ela dormir no quarto do tio Marco comigo e não me deixar nunca mais. Eu não suportava ficar sozinha. Doía demais. Precisava ter ela pra sempre dentro de mim. Eu queria transforma-la em chocolate e devora-la igual o Majin Boo fazia.

Preciso realmente ir embora, Sandra se levantou. Você pode dormir aqui se quiser. Não, fica tranquila. Meu irmão me emprestou a motoca e daqui até o Taboão é um pinote. Nós nos abraçamos mais uma vez, dessa vez bem mais forte. Quando ela saiu do abraço o nó ainda existia. Olha, estou esperando você ficar pronta para voltar para a escola, certo? Certo. Naquele fim de ano e no próximo houve uns boatos sobre minha cara e minha sumida. Sandra aparecia sempre para desmentir até as informações mais verdadeiras. Eu ainda sinto saudades dela, de estar protegida por ela, de ter ela para seguir, mas agora ela está bem longe do sofá cheio de floreios na Santa Cecília. Ela havia ido embora e o nós se desfez. Que noite doida Rossi. Eu te amo por isso, juntas vivemos sempre as melhores aventuras. Ela começou a descer a escada. Um impulso tomou conta de mim. Não importa se minha avó ia acordar ou não. Sandra Victória, eu te amo também! Ela me olhou e sob a luz da lua. Sua pele era o azul mais bonito que vi em toda minha vida. Eu sei. Fiquei sozinha na laje ainda um tempo, treinando chorar em silêncio e depois tirando os cacos de vidro. No outro dia, a avó veio com a bronca, aparentemente a dona do Motel tinha dado com a língua nos dentes. Acha que não sei que você estava lá em cima. Pois eu sei muito bem e olha, eu não me importo o que ou com quem você estava. Eu só quero que você saiba que tenho duas regras: não me traga problemas e não faça barulhos desnecessários. Hoje, doze anos depois, eu choro quieta na sala do apartamento do meu namorado, porque ainda sigo seus conselhos, mesmo sem conseguir sentir o ar chegar aos pulmões, ainda sigo seus conselhos: não traga problemas para os outros e não faça barulhos desnecessários. Essa deve ser a regra de todo movimento voyeurístico. Então não importa se eu tinha sido demitida de um emprego de quase seis anos, eu não incomodaria ninguém por isso e quando o Caetano chegasse, contaria só a ele. Claro, depende de como terá sido a reunião, porque às vezes ele precisava ser mais ouvido do que eu.

A porta se abriu. Será que o Caetano já havia saído da reunião do núcleo da juventude do seu coletivo do PSOL? Enxuguei as lágrimas rapidamente na manga da blusa. Coloquei o celular na cara e vi a mesma pessoa de sempre. Uma nariguda cheia de expressões e olheira mais profundas que a do Gaara. Pelo menos eu havia passado a maquiagem com proteção a água. Esse é outro aprendizado, mas dessa vez ele é seu mãe. Vou ser zelosa, mesmo que na marra. Inspirei todo o ar da sala. Bebê. Valentina? Henrique? Valentina, ele repetiu com uma risada se formado na cara. Seu sotaque de Salvador estava quase se perdendo, mas ainda restava uma musicalidade doce ali. Naquele momento não consegui imaginar que ele fosse capaz de proferir qualquer grunhido, parecia do tipo que transava olhando no olho e usando a boca pra mais que gemer. Expirei. Você anda alugando seu quarto como um motel? Não imaginei que o emprego no Banco do Brasil não tava conseguindo custear suas contas, acho que você tem que parar com as cervejas artesanais da Colorado nesses Happy Hours na Augusta. Mais um gemidão do zap. A cara dele mudou. Não está alugando o quarto, né? Valentina…

Abri a porta devagar, imaginando como o Norman Bates fez ao matar a loirinha na banheira. Não era nenhuma loirinha, talvez inha, mas não loura. Era uma menina, magra e negra, com a pele cor de cacau. Ela tinha uma tatuagem de fênix nas costas, com o rabo terminando na bunda, onde se encontrava o pau fino dele com certeza em prantos. Fiquei um tempo parada, talvez minha sina seja mesmo o voyeurismo. Inspirei o máximo que pude ouvindo gemidos e grunhidos. Foi quando ele teve um espasmo nas pernas peludas que me viu. Expirei. A garota foi atirada para o outro lado da cama. Que porra! Val… sua cara de gozo transformou-se em desespero. Bebê, eu posso explicar, disse com o pau duro molhado de porra. Não faça barulhos desnecessários. Inspirei. Deixei a chave dele cair no chão, deixando nosso amor cair junto e fechei a porta do quarto. Valentina. Sai, Henrique! Ele saiu da frente da porta. Expirei. No quarto dele barulhos de pessoas se movendo apressadas. Não deixa ele vir atrás de mim, por favor. Valentina, eu não posso impedi-lo. Nem pode me contar o que ele fazia? Ele me olhou sem expressão com a cara branca cada vez mais pálida destacada a barba quase ruiva como a única cor presente em seu rosto. Passei por ele. Valentina, deixa eu te levar pra casa. Se você quiser mesmo me ajudar, você pode levar minhas roupas para a casa da minha avó, tudo bem? Ele fez que sim com a cabeça e trancou a porta. No corredor, pude ouvir Caetano gritando. Ele é tão escandaloso, sempre foi tão escandaloso? Como é que eu nunca tinha percebido isso? Quatro anos de namoro e eu nunca havia percebido. Será que ele se comportava assim nas suas assembleias intermináveis? Acho que agora nada disso importa mais. Acabou. Expirei. Não ia ser fácil tirar a imagem do pau dele melado de gozo ou da tatuagem de fênix da menina. E com uma menina, me traiu ainda com uma menininha com uma tatuagem de fênix nas costas. Que palhaçada! Doía-me pensar nisso, nas coisas horríveis que avó falava, mas naquele momento eu sentia que existia um fundo de verdade nas coisas que aquela italiana velha dizia: cuide do seu homem ou uma mulher negra vai pega ele. Como ela podia ter transado com ele? Será que ela não sabia de mim? Talvez ele não tivesse contado, quer dizer, muito provavelmente ele não deveria ter contado, mas ela também não esperou um segundo pra pular no pau dele. Aqueles gemidos exagerados. Meu deus, eu não acredito que fiquei chorando ouvindo aqueles gemidos. Gemidos do meu ex-namorado me traindo no quarto do amigo com uma menina que não deveria ter nem uns vinte anos. Inspirei.

Na rua, andei enquanto puxava o ar. Parecia que ele não ia chegar, mas continuei andando não sei para onde. Não faça barulhos desnecessários. Respirei mais forte e mais baixo, caminhando por uma São Paulo sem rumo. Não traga problemas para os outros. Não vou ligar para ninguém, porque mesmo que eu quisesse acabar com meu voyeurismo, não haveria ninguém para ligar. A única pessoa que deveria me ajudar tinha acabado de gozar na boceta de uma menina de uns dezoito, dezenove anos. O Pulmão parecia estava começando a ficar vazio, pronto para implodir, mas ninguém precisava saber dos meus problemas. Pensei na Sandra, nela na escada dizendo que me amava. Mas o amor também acaba, porque ela não está mais aqui também. Tinha partido com a Yani para a Inglaterra. As pessoas vão embora, elas saem das nossas vidas ou porque querem ou por que simplesmente cansam de nós e deixam. Simples assim. A traição era isso. Ele se cansou da nossa transa morna e procurou uma ardente com aquele menina. Talvez seja isso que o Miranda pensou também ao abandonar a Estela. Ninguém nunca pensa nas Estelas, por que o mundo só quer às Rita Baianas com tatuagens de fênix nas costas. Vó disse pra tomar cuidado com mulheres negras perto de nossos homens. Juntos eles destroem nossos relacionamentos. Odiava pensar assim, mas era real. O Caetano havia me trocado por aquela menina, assim como o Rodolfo também. A Rita Baiana havia pegado os dois. Na verdade os três. A Sandra rasgou nosso nó ao ir embora. Eles se cansaram de mim e do meu movimento voyeurístico. Eles queriam ação, eu não sou uma pessoa de ação. Eu aprendi a ficar em silêncio.

Continuei andando sem rumo. Os pulmões pareciam se retrair cada vez mais. Os chifres pesavam fortemente. Às vezes as pessoas também nos mandam embora, como o seu Pedro fez isso hoje. Somos uma família, mas a contenção de gastos me fez te jogar na rua. No meio dessa merda de pandemia, como eu vou arrumar um trabalho? Não traga problemas para mim. Como contaria para a avó que no mesmo dia tinha ganhado dois pés na bunda. Não sabia qual doía mais, o hambúrguer com saliva ou os dois galhos nos cornos? Senti a barriga começar a se revirar. Só um pensamento me dava paz: se eu acabasse no chão feito um pacote flácido, agonizando no meio do passeio público dos intelectuais do centro da cidade, pelo menos morreria na contramão atrapalhando o tráfego. Não precisaria contar para a avó, porque não teria boca para contar nada. Inspirou. Se eu morresse de ansiedade aqui, não quebraria nenhuma das regras. Talvez quebraria com o pedido da mãe. Expirei com os pulmões do tamanho de uma ervilha. Morrer com os pulmões implodindo talvez borrasse a maquiagem. Mas a mãe se importava pouco ou quase nada comigo para velar meu cadáver, então que tal um cadáver que parecesse o Voldemort cracudo? Não me importava de ir com meu narigão desfigurado e com a cara da menina do exorcista. O pai ia chorar, mas ele superaria um dia. O trabalho o mantinha com a cabeça sempre distante.

Inspirei, mas não veio ar nenhum. Meu deus, meus pulmões não vão aguentar. Meu deus, eu vou morrer aqui mesmo, nesse lugar cheio de gente metida a próxima Marilena Chauí. Quem mandou se envolver com ele? A avó a alertará que se envolver com essa gente metida da USP é se envolver com gente doida que aceita essas ideias malucos de extrema esquerda, como pedofilia e poligamia. Quem mandou eu ficar com ele todos esses anos sem pedido de noivado ou convite para morar juntos? Tinha colocado as roupas naquele apartamento a força, empurrando as meias e calcinhas nos cantos mais apertados para dar espaço a máscaras tribais. Nunca teve espaço naquela vida. Nunca tive espaço na vida de ninguém. Eu sou uma voyeur. Ele é como o irmão, um metido que demorou míseros quatro dias para ocupar o quarto e roubar meus mangás. O Caetano demoraria dois para ocupar o pouco espaço das minhas roupas com outra presença. Talvez a menina com a tatuagem de fênix. Inspirei puxando de novo nada. Senti uma zonzeira. O que eu estava esperando? Apostando que o seu Pedro um dia me promoveria também? Eu não sou boa em administração, fiz a faculdade na Anhanguera e não na USP ou na UNICAMP. Eu não sou boa como eles, inteligente como eles, capaz como eles. Eu só ocupo espaço, que as pessoas não querem me dar e fico observando. No hotel, eu ocupava esse espaço apertado. O seu Pedro olhou meu currículo de primeira e obviamente pensou que eu não passava de alguém para trabalhar mais de oito horas sem remuneração adequada. Você precisa lutar, lembrou-se do Caetano. Isso é fácil quando você tem quase trinta anos e ficar brincando de militância com o HB20 branco que o papai deu. O que adianta eu ler a porra do Marx se o meu chefe não o lia? Precisamos lutar contra o poder, o capitalismo e o imperialismo norte americano! Por acaso era isso que ele estava fazendo naquele quarto? Leia isso, leia aquilo, precisamos estar atentos e fortes! E eu estava fazendo isso, porque era preciso estar atento e forte para resolver a contabilidade do hotel charmoso do seu Pedro oito horas por dia sem direito a uma boa pausa para o almoço. A visão começou a se apagar. Puxei o ar, mas ele não vinha. Venha trabalhar comigo, ele disse depois que passei na entrevista de emprego orgulhosa. Aqui no hotel Vila Mariana somos todos uma família, uma família que obriga o empregado a trabalhar no fim de semana e de fazer hora extra sem ganhar nada! Se você tivesse lido o manifesto saberia como se defender. Será? Ou se tivesse descoberto a mais valia teria feito uma greve com participação de zero funcionário além de mim e teria sido demitida daquele hotel de merda antes? Val, você precisa entender que a nossa luta é pelos desfavorecidos, pelas minorias, as mulheres, os trabalhadores, os negros! Será que ele estava comprometido com a luta negra com o pau entre as pernas daquela menina? Aqui somos todos uma família. Obrigada, mas eu já tenho uma família e ela é uma merda completa!

Puxei o ar e ele não veio. Finalmente é a hora e se fosse, estava cansada de esperar. Venha morte, vamos brincar! Está na hora de eu deixar algo também, então que tal eu deixar esse corpo? Será que meu espírito faria disso outro movimento voyeurístico? Somos uma família, mas a minha família não pode custear os funcionários com o Hotel quase fechado. Isso não é sua culpa Val, isso é culpa desses políticos e desses médicos comunistas com essa história de covid. Não sou eu, são eles. Não sou eu, é ela, que você goza e faz barulho. Não sou eu, é a Yana que vai te levar para a Inglaterra e realizar seu sonho de ser uma grande chefa de cozinha. Não sou eu, é ele, que vai ocupar meu quarto, apoderar-se do meu One Piece e não me procurar mais. Não sou eu, é a outra menina que andava de Skate e tinha uns peitões. Nunca sou eu. Porque eu posso ser deixada, posso ser demitida, posso ser traída e posso ser expulsa de casa. Eu sou apenas uma observadora que pode ser muito facilmente deixada. Puxei o ar, mas ele não veio. Eu posso muitas coisas. Posso ficar em um relacionamento por anos sem avanço, um trabalho sem avanço, uma família sem afetos, uma amizade a uns dez mil quilômetros de distância. Eu posso tudo. Puxei o ar, mas ele não veio, porque só vinha a vontade cada vez maior de vomitar.

Moça coloca a máscara, gritou um maluco que parecia ter saído das filmagens de Matrix, vestindo-se totalmente de preto e caminhando apressado em minha direção. Desculpa, falei tentando controlar o estômago. Droga, havia esquecido da mascara no apartamento junto com as minhas coisas. Será que o Caetano notaria? Não, provavelmente não. Moça, não precisa se desculpar porra nenhuma não! Aqui é um país livre seu comunista filho da puta. Falou outro moço vindo também na minha direção com a camiseta com a cara do Bolsonaro. Por favor, o estômago pegando fogo, os pulmões já sem ar. Olha aqui seu velho reaça, o Brasil é o segundo país com mais mortos e você não me venha com essas maluquices negacionistas! Por favor, eu realmente não estou conseguindo ver mais nada. Vai tomar no seu cú, deixa a moça em paz, você não viu como ela está assustada com você, seu satanista! Vó me perdoe talvez morrer aqui seja trazer um problema para você sim. Esqueci tudo no apartamento e agora você vai ter que me procurar nos necrotérios públicos da cidade. Moça, cê tá legal? Vomitei no pé de alguém. Puta que pariu sua nojenta do caralho, o bolsonarista gritou. Senti um chute na cabeça e cai no chão, com a cara no vômito. No lugar que eu merecia estar. Fiquei lá em silêncio, esperando que as pessoas não me notassem. Por favor, traga a capa de invisibilidade do Harry Potter e deixe aqui pra sempre.

Senti as pessoas se acomodando em volta de mim. Houve uma briga, o velho bolsonarista gritava: ela vomitou em mim! Sua cadela nojenta! Sai daqui, gritaram outras vozes. Por favor, só me deixem aqui sozinha. Moça ta tudo bem? Perguntou alguém. Olha minha camiseta, ela vomitou em mim! Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei.

Moça, moça? Abri os olhos e vi uma galera em minha volta. Você está legal? Perguntou uma senhora bem velhinha. Estou, falei rápido, mas antes de conseguir levantar, senti uma dor forte na cabeça. A gente está chamando a política, aquele cara deu um chutão em você. Por favor, não. Uma moça branca colocou um pano com água na minha bochecha. Estamos limpando você minha querida. O que aquele sujeito fez foi imperdoável, falou outra moça negra. Não precisam se preocupar, sério, eu estou legal. Filha, você vomitou no pé de um cara e ele chutou sua cara, legal não é bem a palavra. Meu namorado de vários anos, o cara com que eu achei que ia casar me traiu com uma menina e hoje no almoço meu chefe me demitiu numa tentativa de cortar gastos. O que você disse? Que eu estou na merda. Nada.

As pessoas me ajudaram a levantar. Puxar o ar estava menos complicado, mas a cabeça latejava forte. Não acredito que aquele fascista chutou sua cara, falou o Neo, agora o Morpheu e Trinity também estavam ali junto com senhorinhas e gente curiosa. Preciso ir. Moça a gente pode chamar um uber, falou a Trinity. Pode? O Neo levou uma cutucada. Depois do que você ajudou a fazer eu acho que sim né. Uma moça asiática chegou correndo. Toma filha, coloca uma máscara. Obrigada. Melhor você ir ao médico, pode ser que ele tenha machucado a sua cabeça. Tá tudo bem, a cabeça latejava. Moça, pra onde você quer ir, estou chamando um Uber. Respirei mais fundo. Aquela galera punk tinha uma cara esquisita. Sério, não precisa. Moça a gente faz questão. Comecei a me levantar. Pode ser a Galeria Liberdade? Todo mundo ficou assustado. A maluca é nerd, falou o Morpheu baixinho. Otaku, respondi baixinho.

O Uber chegou. No volante uma mulher. Aliviei. Moça, tá pago. Ainda bem que tá pertinho né? Entrei no carro. Você quer balinha? Não obrigada. Seguimos, com ela dirigindo devagar pelas ruas. Quanta gente. É. Aconteceu alguma coisa? Ai nada de mais. Está tudo bem com você? Quer mesmo saber? Ela virou a cabeça e me encarou. Seus cabelos castanhos estavam grudados no suor da testa. Na verdade sua pele era uma das mais oleosas que eu já tinha visto. Seus olhos são pretos, cor de jabuticaba e tinham a forma de duas bolinhas de gude que pareciam estar afundadas no rosto dela depois de um socão. A pele era quase marrom. Não pude ver o nariz e os lábios pela máscara. Será que ela também tinha nariz de batata? Será que ela se via como negra? Nesses dias nunca é fácil estabelecer um negrometro. Bufei. Ela voltou os olhos para o volante. Sabe, nessas corridas a gente acaba ouvindo de tudo. Me considero quase uma terapeuta sem licença. Já passei com um terapeuta, ele queria ficar falando da minha mãe. Teve uma hora que o dinheiro começou a apertar e decidi parar de pagar cinquenta reais por consulta para ouvir um cara me perguntando como vai seu dia. Foda-se a terapia, essas merdas são todas mentiras, dizia avó. Hoje na hora do almoço meu chefe chegou na minha mesa. Eu tava lá fazendo a contabilidade de gastos e vendo como as hospedagens não estavam dando o lucro necessário, porém teve um aumento nesses últimos meses. Ele veio com um resto de hambúrguer do Burger King e batata. Colocou a comida na mesa e perguntou se eu queria. Sério, dava pra ver a baba dele no lanche. Eu peguei duas batatinhas. Não é comum ele dividir nada então por um momento, mesmo que seja um curtíssimo momento, imaginei que finalmente eu poderia ser promovida. Eu sei que estamos no meio dessa pandemia e que tem muita gente quebrada, mas estou, quer dizer, estava lá há anos e trabalhava muito mais que qualquer outra pessoa. Pensei na batatinha e no lanche cuspido, eles podiam significar que finalmente o seu Pedro vai ver meu valor? Mas não, como tudo na minha vida, eu tive uma decepção. Ele me mandou embora e depois ainda disse que eu podia ficar com a comida. Eu quis jogar tudo no chão, mas enquanto pegava minhas coisas, acabei comendo aquela merda. Comi, porque no fim ele tinha me dado né. Sai do trabalho, sem ninguém para ligar. Não tenho muitas pessoas na minha vida. Minha melhor amiga foi embora com a namorada argeliana, acho que hoje esposa, faz tempo que a gente não se fala. Quer dizer ela sempre lembra o meu aniversário, então pelo menos isso. Da pra ver que eu não preciso de muito. Eu me contento com pouco. Fui para a casa do meu namorado, o cara que planejei me casar e construir uma vida. Ele tava fodendo uma menina. Ela não deveria ter nem uns vinte anos e pra piorar, ele parecia mais muito feliz fodendo com ela. Muito mais feliz do que fazia comigo. Comigo era rápido. Talvez eu não me esforçasse ou fosse boa na cama. Comigo era sempre rápido. Bom, na rua, depois de estar tendo um puta ataque de ansiedade dois doidinhos começaram a se atracar. A política está muito polarizada ultimamente, sabe? Desde o impeachment da Dilma, acho que as pessoas estão malucas. Eu sei que o Bolsonaro é ridículo, mas, o punk veio pra cima de mim com tudo. Eu só estava sem máscara. No fim, foi o bolsonarista que fodeu tudo. Todo esse povo que segue esse doente é tão doente assim? O meu chefe, quer dizer, ex-chefe, não era doido. Ele votou no Bolsonaro e fez todo mundo do Hotel votar. Sabe, eu até ia votar no outro caro do PT, mas o que esses políticos fazem de verdade pela gente? Tá todo mundo fodido no seu mundinho. E como você está com tudo isso? Sério, você vai mandar o chavão dos psicólogos em mim? Eu poderia dizer que que o Brasil é o segundo país com mais mortes no mundo e você estava andando na rua sem máscara. Uau, é isso que eu estou falando, sabe, está todo mundo nessa. Eu estava na rua sem máscara sim, mas o meu dia estava uma grande merda. Não fiz de propósito, eu só esqueci a máscara no apartamento. Para fechar eu cai no meu próprio vômito porque eu cara chutou minha cabeça! E sabe qual é a pior parte? Qual? Eu queria ter ficado lá pra sempre! Inspirei. Expirei. Inspirei. Expirei. Às vezes eu só queria desaparecer, ir para algum lugar sem ninguém, mas aí eu lembro que eu não consigo fazer isso. Você acha que é possível querer ficar sozinha e ao mesmo tempo ter alguém? Só ficar observando sem fazer nada? Em um completo movimento voyeurístico? Isso é algo que você vai ter que descobrir. Boa, ta parecendo meu ex-terapeuta, o Carlos, ele foi meu psicólogo por uns três anos, só faltou cobrar. Já disse que não tenho licença, ela riu. Eu ri. Quantos anos você tem? Vinte e oito. Nossa, deve ser isso! Isso o que? Eu senti na hora que você entrou, suas energias estavam todas fora do lugar. Novamente ele voltou o corpo para trás. Está vendo essa pedra? Ela mostrou um cordão no pescoço. É uma ágata de fogo. Eu tenho na minha casa, no carro e em vários lugares. Ajuda com as energias. Ela melhora o ambiente e quando você entrou senti que ela ficou meio perturbada. Eu não sou do tipo que entende dessas coisas de energia e tal. Vinte oito anos é a idade que entramos no retorno de saturno. Tipo aquele música do Detonautas? O Detonautas tem uma música sobre isso? Sim, aquela que ficar falando: não precisa ser de novo assim, tudo igual umas vinte mil vezes. Rimos. Você é uma ótima cantora. . Senti um leve shade no seu tom de voz. E você é uma excelente terapeuta. Rimos. Eu não conheço, acho que ninguém conhece o Detonautas hoje em dia. As bandas de rock estão mortas, hoje a garotada não curte mais. Você escuta geralmente o que? Boa pergunta, fazia tempo que eu não escutava música, nem via um filme ou lia qualquer mangá. Na verdade fazia um tempo em que eu não sabia o que eu gostava de fazer. Enfim, o retorno de saturno… Então, o retorno de saturno é quando o planeta Saturno da uma volta completa em torno do sol, isso ocorre quando atingimos vinte e nove anos. Na astrologia a gente entende isso como a hora do amadurecimento. É o momento em que a gente deve se livrar do que não precisamos e começamos a encontrar nosso caminho no mundo. Então quando eu fizer vinte e nove eu vou magicamente me encontrar? Nossa, isso vai ser maravilhoso. Ri. Astrologia não é sério, isso é tipo o que os caras na Universal fazem para pegar o dinheiro dos pobres. Esses crentes são todos enganados. Eu não entendo o porquê das pessoas querem tanto desmerecer a astrologia. É porque é ridículo. É porque não é uma ciência. Você estava andando sem máscara, mesmo com a ciência dizendo que isso não é aconselhável. São coisas diferentes. Olha, nessa época, dos vinte oito até os trinta a gente enfrenta várias mudanças e se depara com vários problemas, mas também começa a entender pra onde vai nossa vida. Tão estático? É claro que não, vivemos a mudança sempre, mas durante esse período, se você estiver prestando atenção vai descobrir muito sobre você. Eu senti isso quando você entrou. Sentiu o que? Que você está perdida, meu bem.

Pegou meu número? Sim, Samara. Ótimo! Me liga quando você tiver tempo, talvez você precise conversar com alguém e se interessar sobre astrologia podemos falar um montão sobre. Não, valeu, essa merda não é real. Claro, obrigada. Fiquei parada a vendo ir embora com o UP! amarelo. Deveria ter pegado as balinhas. Por que eu tinha pedido para vir na Liberdade, eu mesma não sabia, mas uma coisa a doida da Samara tava certa. Eu estou perdida. Acho que eu precisava colocar tudo para fora. Caminhei até a Galeria. Fazia muitos anos que eu não tinha mais vindo aqui. Eu e o Vini amávamos isso. Uma vez o Valente veio, ele era tão pequenininho. O papai veio também. Eu e o Vini ficamos correndo e subindo as escadas planejando qual seria nosso primeiro Cosplay. Nunca aconteceu. Uma vez um cara me chamou para fazer um com ele, eu já não tinha mais idade pra isso, além do mais, eu nuca tive o dinheiro para fazer o cosplay do Hiei como eu queria. Acho que me ressentia disso e zoei o cara, falei que Cosplay era algo ridículo. Acho que eu estou mesmo perdida, faz tanto tempo que não assisto Yu Yu Hakusho ou qualquer outro anime legal. Retorno de Saturno será que essa merda era mesmo real? Mudança e vários problemas, se eu fosse à roteirista da minha vida, esse com certeza seria o nome desse episódio. Peguei o celular no bolso. Graças a deus ele estava no bolso. O retorno de saturno, eu vou pesquisar no Google, sei lá, to tão na merda que qualquer coisa pode ajudar. Ele estava desligado, a ansiedade me fazia desligá-lo sempre. Caminhei pela Galeria, olhando as lojas, os vestidos e um curso de desenho. Eu amava desenhar, quando criança, eu fiz vários cursos. O papai dizia que eu era a melhor desenhista que ele já tinha visto na vida. Quando comecei a namorar o Caetano fiz um desenho para ele. Nem sei o que ele fez com ele. Talvez tenha jogado no lixo, assim como vai fazer com a minha bolsa se o Henrique não meu trouxer. Por que parei mesmo de desenhar? Ri. Quando eu era criança eu queria ser uma mangaká ou uma quadrinista. Onde foi que isso se perdeu? Inspirei enchendo todo o pulmão. O ar aqui parecia sempre mais gostoso, sempre mais colorido. Expirei. Talvez eu compre um mangá ou um chaveirinho do báculo da Sakura. Talvez eu devesse vir aqui mais vezes. O retorno de Saturno, será que agora esse vai ser meu momento, será que a Samara tava certa e agora eu vou passar por várias mudanças. Vou romper com meu movimento voyeurístico e começar a me mover? Uma aquariana no Retorno de Saturno. Ri. Por que foi mesmo que eu desisti de desenhar?

O celular vibrou. Era o tio Marco. Alo. Valéria, to te ligando faz mais de uma hora. Oi tio, tudo bem? Sua vó esta está comigo, acabamos de chegar nas clínicas. Como assim? Se eu fosse você eu vinha logo, cheguei em casa e ela tava toda caída estranha no chão. Você não disse que voltava hoje para casa mais cedo? Eu disse… Olha se eu fosse você eu vinha logo pra cá. Ta eu to indo, mas ela ta bem? Eu não sei, eu acho que ela teve um ataque do coração ou algo do tipo. O que? Vem logo, ou talvez você não consiga ver mais ela. Ele desligou.

Inspirei, mas não consegui mesmo na Liberdade, sentir o ar chegando passou a ser complicado. Eu só conseguia ficar imóvel observando o celular no meu perpétuo movimento voyeurístico.

Continua…

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