este é apenas um quarto comum.

Mateus Ferreira
Revista Negra Trama
3 min readMar 24, 2020

se o colocássemos em comparação a outros quartos por aí, seria cruel e impiedoso, afinal, este é só mais um quarto. Direi que é bem simples, até comum. Poderia facilmente ser o quarto em que você está lendo este texto, isto se você estiver lendo este texto em um quarto.

Se não está, peço que encontre um quarto próximo ou algo semelhante a um, por favor.

O quarto, este quarto desta história, é real, absolutamente real, ainda que seja inimaginável. Não é um quarto criado para uma história ou um casal, acredito que seja o contrário. Não há um arquiteto, um projetista, ninguém que o quisesse decorar além de nossos personagens, mas há um quarto.

Pode-se ver a cozinha e a porta do banheiro, há uma cama de casal, uma TV, uma estante de livros (bons ou ruins, depende dos seus gostos literários), um guarda-roupa com uma porta direita e o fantasma de uma porta esquerda, paredes azuis (a cor varia constantemente), uma janela de madeira e a porta de entrada. Está vazio, neste momento não há ninguém nele, são duas da manhã e a pessoa que o habita chegará em breve, este momento é para as apresentações.

2h45, a noite é ainda mais noite do outro lado das portas e janela, a chave de nossa primeira personagem, dona do quarto, gira dentro da fechadura junto com a maçaneta, agora a porta está aberta e há um acompanhante noturno.

Tudo o que se sabe sobre os dois, até o presente momento escrito, será registrado agora:

Ela. uma mulher negra e dona de dois olhos escuros como se fosse noite o tempo inteiro em que alguém a olhasse.

Ele, um homem negro e dono de dois olhos escuros também, não eram noites ainda, estavam somente apagados, só recentemente dedicou-se ao árduo trabalho de procurar luzes noturnas.

Encontraram-se, em uma festa, acredito que tenham trocado carinhos íntimos, corporais ou não, estão evitando qualquer contato visual que se inicie antes do período acertado inconscientemente entre os dois desejos. Ela cruzou a porta lentamente, agora estava centímetros dentro deste quarto, Ele ainda estava fora, mãos apoiadas na cintura e queixo para baixo…olhando para nada e para tudo, sem definir quais fotografias iria tirar ou tirou daquela noite que, aparentemente, havia acabado.

O silêncio iniciado junto a entrada da chave na fechadura, já durava alguns minutos e poderia correr noite a dentro, não fossem essas palavras:

“Então, o caminho até aqui não foi tão difícil, está entregue, mas até a minha casa ainda tem algum chão…” — Ele.

“Sim sim, falei pra você que era perto, agradeço a companhia…” — Ela.

“É, impressionante, viemos correndo também, dizem que fica mais perto assim…” — Ele.

Ela falou mais alguma coisa desinteressante enquanto entrava mais e mais até o extremo da porta que apontava para o interno do quarto.

“Boa noite,…..gostei muito de hoje, espero que…enfim, boa noite.” — Ele sorriu enquanto fugia do silêncio que Ela começava a fazer de dentro do quarto.

“Boa noite, gostei muito também e também espero” — Ela sorriu

não fechou a porta, deixou-a como estava quando chegaram, depois da chave e da fechadura, deu as costas ao acompanhante em despedida e aproximava-se ainda mais para dentro do quarto, olhos em lugar nenhum. Ele dava alguns passos para trás, sem se virar e também sem levantar os olhos, acredito que estava com a respiração de um homem inquieto, mas seria só suposição e isto ainda não cabe aqui. Ficou parado, encostado na parede bem em frente a porta deste quarto.

O silêncio. era enorme.

Ela voltou os olhos para depois da porta, os ergueu e eles brilhavam. Ele retribuiu, estava azul, havia encontrado uma destas tais luzes noturnas…

desencostou lentamente as costas da parede e começou a caminhar para dentro do quarto…

fechou a porta somente quando estava dentro, estavam os dois.

não fazia mais silêncio, também não exaltavam-se os barulhos, o quarto é que respirava junto aos movimentos ininterruptos dos dois. Suava também, enquanto ferviam as paredes, os livros, o guarda-roupa, a TV, as duas portas e a Janela.

a pia gotejava e escorria.

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