MEMÓRIA DE UMA NOVA ESTATÍSTICA

Mateus Ferreira
Revista Negra Trama
4 min readOct 1, 2019

João, um negro desses de uns 20 ou 23 anos, de uns tempos pra cá, entrava constantemente em desespero. Eram lágrimas e mais lágrimas assustadas descendo por seu rosto, ontem mesmo o rapaz molhou dois livros e um caderno, acometido por choros compulsivos em horas avulsas do dia, as gotas iam caindo e molhando diversas páginas. João tinha lágrimas pesadas capazes de atravessar dez ou doze folhas, de uma vez só, se caíssem com rapidez. Adquiriu esta mania de chorar somente a três ou quatro meses, antes disso, qualquer um iria dizer que o rapaz era uma pedra.

“Esse preto aí não chora não, é forte que nem rocha. Quando era pivete, eu mesmo o vi apanhar de cassetete e não molhar nem os olhos. O menino é sabido, se chorar eles batem mais”

Os amigos mais próximos, que sabiam da descoberta das lágrimas de João, diziam que eram assim tão pesadas por terem ficado tanto tempo guardadas, aí quando caiam, as mais antigas aproveitavam o caminho das mais novas e o que devia ser uma só gota pesava como que por 50.

A verdade é que João havia mudado sem contar para ninguém, nem para ele, também não lembrava exatamente o dia em que ocorrera a mudança, mas aconteceu e ele acabou por descobrir que tinham a ver com notícias e números.

Dizia: Será que são verdades essas coisas? 76%, 23 minutos, 24 anos? Outro dia eu planejei uma viagem…Tô querendo assistir aquele filme lá que sai no fim do ano…Ainda não li metade daqueles livros que eu comprei, Puta merda…O que dá pra fazer em 23 minutos, meu deus, o quê?

Assustava-se com todas as possíveis respostas, e com a falta delas. Nunca tinha sentido a necessidade de pensar em algo bom que precisasse ser feito tão rápido, talvez por isso nada saía de seus pensamentos, nada além de uma frase: 23 minutos, meu Deus, é pouco tempo pra tudo…é pouco tempo pra tudo. A frase rondava sua cabeça, ia se aproveitando das repetições, da respiração seca, da falta de ar e do nó na garganta, instalava-se por trás dos olhos e desandava a provocar lágrimas, gota por gota a frase ia virando um sentimento terrível que esvaziava e esfriava João por dentro.

Dia após dia, tarde após tarde, noite após noite, João era tomado, esfriava, deixava de viver para sobreviver. Acostumou-se a ter medo e raiva dos números e de tudo que o ligava a eles. Acostumou-se a ter medo de tudo. Sentia que a única coisa que o acompanhava de verdade era a pergunta, por isso mesmo é que a repetia todo dia na frente do espelho: O que dá pra fazer em 23 minutos, meu deus, o quê?

João voltava para casa todo dia olhando cuidadosamente seu relógio, tinha que estar no ônibus das 18h para que às 19h30 já estivesse em casa, eram seus horários de segurança. O rapaz cumpriu regularmente suas próprias instruções por muito tempo até ser atravessado por uma inevitável noite de terça, não que fosse incomum ou assustadora, muito pelo contrário, era 13 de Dezembro e quase não haviam nuvens no céu, a temperatura agradava todos os inimigos do calor. Esta, definitivamente, era uma noite que se encaminhava comum, não fosse o relógio do celular apontar que eram 18h23 no exato momento em que o ônibus que transportava João bateu em um carro. O incidente demorou mais 23 minutos para ser resolvido, também levaram mais 23 minutos até conseguirem um outro ônibus para levar os passageiros acidentados. João, a esta altura, já estava sendo consumido agressivamente por todas os números e por uma única pergunta sem resposta: “ O que dá pra fazer em 23 minutos, meu deus, o quê? ”

Corriam as lagrimas pesadas, agora tão pesadas que afundavam o chão do ônibus novo. O rapaz clamava para que chegasse o seu ponto. O relógio apontou 21h. Chegou. Desceu as escadas de alumínio e, quando olhou a rua, assustou-se…estava absolutamente branca, clara e sozinha, mas era aquele o caminho a ser percorrido, descer e dobrar à esquina.

João corre desesperado para casa, ele sabe e lembra muito bem o que acontece a um preto naquela hora da noite, lembra dos números, lembra de tudo e lembra do medo.

Corria tão rápido que, se alguém o tivesse visto, certamente estaria dizendo por aí que o rapaz voava por cima das poças d’água que ameaçavam molhar seus sapatos. Mas João corria com medo do inevitável, afinal, ele sabe e lembra muito bem o que acontece a um preto naquela hora da noite, ainda mais um preto, coitado, que desce correndo uma rua tão clara.

É inevitável, João, e não dá para evitar o inevitável, por mais rápido que sejam os seus passos.

Então, já na esquina de casa, aconteceu…

João encontrou os olhos de Lídia, a preta que mora no final da rua e que voltou tarde da faculdade naquele dia…

Foram três tiros certeiros no peito do rapaz, apaixonou-se instantaneamente enquanto era fuzilado por olhos que faziam o tempo parar. E os olhos do rapaz, que tanto se enchiam de lágrimas pesadas, estavam molhados com algumas ondas leves e salgadas.

Paralisado, mas não de medo, perplexo, mas já esquecendo, mesmo que por um momento, aqueles números assustadores, o rapaz escutou, enquanto caminhava para o portal de casa:

“Ei João, boa noite, cuidado que correndo assim você acaba caindo…”

Observou Lídia indo embora e sentiu que aquela pergunta assustadora ganhou uma resposta, exatamente às 21h23.

Então, O que dá pra fazer em 23 minutos, meu deus, o quê?

“Deu pra te ver chegando em casa, deu pra sentir umas coisas boas”.

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