O “negão” do filme

Sinfrônio
Revista Negra Trama
4 min readJul 18, 2020

Quem nunca presenciou alguém se referir a uma personagem negra de um filme como “o negão amigo do protagonista”; “a negona (quando tem)”; “aquele negão lá” ou até mesmo “o neguinho”?
Mesmo com os pouquíssimos destaques nas maiorias dos filmes — sejam nacionais ou estrangeiros — atores e atrizes negros não parecem merecer uma atenção mais detalhada de suas personagens para o público, já que o mesmo nem se dá ao trabalho de decorar, ao menos, o nome do tal “negão” e da tal “negona”.

Quando o ator e diretor de cinema Tyler Perry fundou o primeiro estúdio de cinema voltado para o público negro, a Tyler Perry Studios, e afirmou que não tinha intenção em escalar atores brancos para papéis principais em seus filmes, houve uma revolta entre os internautas nas redes sociais. Algo semelhante também aconteceu com o também ator e diretor Jordan Peele que deu uma declaração parecida. E outros atores e atrizes que também partilharam da ideia, sofreram algumas represálias. Quando essas pessoas têm esse tipo de posicionamento e ideia, é porque elas entendem a importância que é termos filmes dirigidos por nós, conosco e para nós, o público negro.

Quando estreou o filme Corra (2017) do diretor Jordan Peele, que trazia pessoas brancas como vilãs e os negros como mocinhos, foi um grande sucesso — tanto de público quanto de crítica — e não tinha como fechar os olhos para o que estava sendo feito. De gênio ao novo nome do gênero terror nos cinemas, Jordan Peele, que antes fazia esquetes de comédia, foi sendo conhecido pela população negra como o incrível diretor de cinema que é. E o resto do mundo e a academia teve que engolir e aceitar esse fato, o premiando com o Oscar de melhor roteiro original, no ano seguinte.
Menos de um ano depois, o filme Pantera Negra (2018) do diretor Ryan Coogler saiu nos cinemas e, assim como o filme citado anteriormente, também foi um sucesso. Então, logo as pessoas começaram a comentar sobre o primeiro filme sobre um super-herói africano e com um elenco majoritariamente negro, então, finalmente nós negros pudemos ter um filme onde nos reconhecíamos, um filme onde falava, mesmo que vagamente, sobre problemas que nós passamos, um filme com pessoas parecidas com nós. Foi um alvoroço. Mas não bastou muito para aparecerem pessoas que diziam que o filme era exagerado, separatista por conta de algumas piadas presentes na trama, e mal produzidas com a desculpa de que chamaram um diretor jovem e militante demais. “O pantera negra não tem nada a ver com política.”
Chegamos no ano de 2019 e a atriz e diretora Ava Duvernay nos apresenta a minissérie Olhos que condenam que denuncia a coerção e prisão injusta de 5 jovens negros em Nova York, sob crime de estupro de uma jovem branca no ano de 1989. Durante os episódios que se seguem, nós acompanhamos o que aconteceu com cada um dos jovens, Kevin Richardson, Raymond Santana, Antron McCray, Yusef Salaam e Korey Wise, sendo esse último a ter um episódio inteiro dedicado ao tempo em que passou encarcerado. Não menos justo, já que o mesmo passou mais tempo preso, em relação aos seus colegas injustiçados, por ser maior de 16 anos. Na produção, temos figuras públicas como o atual presidente estadunidense Donald Trump acusando e condenando os jovens sem ao menos ter provas concretas, o que nunca teve, de ter cometido tal ato. O Último episódio que se detém à história de Korey Wise é de uma sensibilidade e preocupação com o que aquele jovem, hoje homem, passou, ainda que inocente, tão grande que jamais um olhar de uma pessoa branca conseguiria produzir. É aí onde está a importância de sermos representados por nós mesmos, pelos nossos. Além de ser o centro da história, nós seremos bem tratados e respeitados pelo o que somos.

Logo, em um mundo onde temos personagens negros sendo hostilizados a ponto de nos remeter à nossa própria realidade, ter o mínimo de representatividade, de verdade, produzida por pessoas que são iguais a nós, tem um significado que muitas pessoas jamais irão entender, pois o que pra nós, ainda, é exceção, pra eles sempre foi regra. A cada vez que temos alguma produção que fala por nós e para nós, há um sentimento de pertencimento. Ali eu existo de verdade, e não uma versão fantasiosa do que eu poderia ser. Ali eu sou. Todo aquele estereótipo de negro sábio que chega na hora certa em prol do homem branco, que no fim leva todo o crédito, já não existe. Lá, nós somos humanizados, nós somos filhos e filhas, pais e mães responsáveis, marido e mulher que se amam, há cumplicidade entre os nossos e somos nós quem enfrentamos nossas lutas, sempre buscando conhecimento ancestral, sem jamais deixa-lo de lado na hora da nossa vitória.
São por esses e outros valores que esses atores e diretores lutam pra nos dar esse espaço mais que merecido. Porque além do racismo que enfrentamos diariamente, nós somos maiores que ele. Nós éramos antes dele existir. Nós sempre seremos.

Então, qual o motivo que leva às pessoas que nem lembram o nome do personagem negro do filme se revoltar tanto com isso? A resposta é bem simples: Protagonismo.
Porque estão acostumados a ver alguém parecido com eles à frente do campo de batalha, invadindo aldeias indígenas (como os filmes de western), explodindo carros, demolindo prédios para salvar a mocinha ou o país. E se alguém ousar interferir no seu mundo perfeito do herói branco, vai ter que sofrer com as consequências.

Nunca mais! Hoje nós temos e teremos mais dos nossos pra nos representar.

Jefferson Sinfrônio

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