Qual a cor de nossos olhos d’água?

Marina Maia
Revista Negra Trama
5 min readMay 30, 2020

Durante maior parte dos anos de graduação em Letras (ainda inconclusa), briguei com muitos e muitas pela presença de escritores e escritoras negros e negras no currículo do curso. Dentre os diversos nomes “esquecidos” pelo cânone literário, o de Conceição Evaristo era o que mais me fazia falta. Eu não entendia o porquê de alguém com uma escrita tão potente, não ser lida em todas as etapas daquela experiência acadêmica.

No início, ainda com a inocência da “educação libertadora” que prometia a universidade e apesar dela, eu já desconfiava da origem daquele problema. Afinal, aquela mulher negra representa mais da metade da população de seu país, sendo essa orgulhosa ou não de suas origens. Não fazia muito sentido que aquela voz fosse menor que a de alguns clássicos escritores que versavam re-pe-ti-das vezes sobre sei lá quem de algum lugar do Brasil. Evaristo sempre me soou uma artista além-sala de aula, mas nunca soube como provar isso.

Assim como acontece com todas as outras personagens de outras obras de Conceição Evaristo, as personagens presentes em Olhos d’água são tão reais quanto as pessoas reais que nós conhecemos. Não à toa, ao lermos os contos, lembramos de nossas mães pretas, dos primos, das tias, avós, de nossos vizinhos da rua de baixo, do cobrador do ônibus, do funcionário do local onde estudamos. Lembramos, porque é neles e deles onde está a Memória dessa escritora.

Por isso, foi seu Cláudio, funcionário da universidade onde estudo, quem me fez entender a força de “Maria”. Após a leitura que fiz do conto para ele, foram suas lágrimas contidas e envergonhadas que me disseram para eu nunca esquecer os homens negros que estão à minha volta, porque eles sempre vão precisar dos afetos que, muitas vezes, serão tudo o que eles terão. (Mas esse assunto eu guardo para outra oportunidade)

Olhos d’água, além de dar nome ao livro, é também o nome do primeiro conto, e apesar de sempre ter gostado muito desse título, nunca havia percebido a importância de buscar a resposta para a pergunta tantas vezes colocada: “Qual a cor dos olhos de minha mãe?”. Em minha experiência de leitura mais recente, pude dividir com Guilherme Domingos (um amigo muito querido) e direta/indiretamente com suas tias e mãe, os sentimentos sobre aquela escrita. Como não podia ser diferente, essa pergunta me veio como um forte vento a cada linha e cada palavra. Qual a cor daqueles olhos? Percebi, assim como na leitura que fiz para seu Claudio, que é preciso procurar a resposta naqueles e naquelas que vieram antes da pergunta.

Guilherme enviou o texto para sua mãe e para suas tias e pediu que elas falassem um pouco sobre o conto, afinal, ele tem a consciência — e não se cansa de lembra-la — que foi graças a essas mulheres pretas, principalmente de sua avó, Aurora Domingos, que a vitória frente a miséria tornou-se possível. Por isso o movimento do retorno, mesmo que através de um texto, a águas que correm e limpam faz-se necessário, pois é em sua fonte que o sentido de Ubunto apresenta-se em sua plenitude. Em todos os relatos de resposta ao pedido, a memória estava fortemente presente. Independentemente de como elas decidiram se expressar, as lembranças que compartilharam entre si estavam ligadas à vida que aquelas mulheres dividiram. Estavam sempre ligadas às alegrias e dores pelas quais passaram, sempre juntas. Ainda como elas aprenderam, juntas, serem filhas, irmãs, amigas e mães, ao mesmo tempo.

Os relatos daquelas mulheres me explicaram que lembrar da cor dos olhos é lembrar das pessoas que os carregam. Desde a tia Rosemeire, que viu aquelas palavras como um grito, por isso lembrou do menino João Pedro; até a tia Maria Cecília, recordando o mingau de fubá e tutu de feijão que sua mãe lhe dava, mas que não tinha tempo de parar e deixar que seus olhos fossem calmamente observados. É lembrar também da preocupação da tia Cristiane com as marcas da pele alheia, que se esticava para guardar o futuro presente.

Talvez, enxergar a cor dos olhos de quem somos, é abraçar o passado compartilhado. É saber que mesmo nos olhos cansados, voltados para a terra, ainda existem vulcões cheios de vida e força. É também saber entender a importância das poucas palavras da Rosangela, porque assim como embaixo das águas dos olhos, existe o silêncio, mas existe toda a força que um rio calmo pode esconder; não por vergonha ou medo, mas por saber que resistir à vida sempre foi a única possibilidade.

A cor dos olhos d’água se dá pelo seu curso; pelo trajeto que águas anteriores percorreram. Lembrar a cor dos olhos requer lembrar os caminhos. Requer reconhecer a luta para “Assentar, estabilizar, reunir, juntar, materializar, dar forma, tornar firme”, como o título desse vídeo que o Guilherme também fez questão de compartilhar.

(https://drive.google.com/open?id=1q0oMprBdhyQPxUv9pE6GdX3QJwDLY1B3)

A trajetória de famílias negras brasileiras necessita que se aprenda estabelecer o ritmo das vidas ao seu redor, pois inevitavelmente percebemos que não é possível viver sem passado. As nossas cores e as de nossos olhos; dos olhos de nossas mães, são os cursos de nossas águas, desde as nascentes.

Saber acompanhar os espelhos d’água seculares, nos mostra porque a trajetória de famílias negras da Zona Leste de São Paulo, tem tanto em comum com a de famílias das periferias de Fortaleza. Talvez porque em todos os lugares em que estivermos, saber onde estão nossas nascentes torna os caminhos mais seguros para se chegar onde deseja. As palavras de Conceição nos arrastam para o entendimento de nosso próprio lugar.

“Vi apenas lágrimas e lágrimas” e aquela era a resposta; seja das personagens (avó-mãe-filha), seja das tias-mães que aprenderam ao longo de toda a vida a cuidar e serem cuidadas. Em todas as tentativas de lembrar aqueles olhos, o que sempre é recordado são os fatos e acontecimentos que marcaram aquelas trajetórias; e é inexplicável a sensação de poder falar de criação e vida indistintamente. A negra-mulher Conceição Evaristo tem esse poder!

Hoje, sem muito esforço, percebo que a universidade não é suficiente para uma escrita ancestral como de Conceição Evaristo, que é capaz de dar às nossas memórias o direito de lembrar, rememorar e reinventar nossa trajetória.

As palavras de Conceição nos arrastam para o entendimento de nosso próprio lugar, o que explica a pouca valorização dessa mulher em ambientes que jamais se importaram com cursos d’água.

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Marina Maia
Revista Negra Trama

Negra-vida — Cearense, professora de muita coisa, em constante formação; amante das literaturas que me falam.