QUEEN & SLIM: OS CINEMAS E NARRATIVAS DAS VIVÊNCIAS NEGRAS

Mateus Ferreira
Revista Negra Trama
4 min readApr 6, 2020
Daniel Kaluuya e Jodie Turner-Smith como Slim e Queen, um casal que vira, meio sem querer, um símbolo de resistência negra

Foram meses de espera até finalmente conseguir assistir ao longa de Melina Matsoukas (a mente por trás do clipe Formation) e, devo dizer, este filme me recompensou cada segundo de busca incessante por legenda e/ou torrent. É um fenômeno!

Tudo no filme de Melina funciona quase que perfeitamente, óbvio que tenho dois ou três desagrados, talvez mais de um incômodo com alguma cena no meio o no fim, mas não vou me apegar a detalhes assim, não neste texto. Este texto foi feito para Melina, Peele e Jenkins, por isso será dividido em duas partes.

Enfim, vamos ao filme…

A narrativa, que me dei a liberdade de definir como uma potente história de afeto, é intensa, visceral, imprevisível, melódica, bela, apaixonante, desesperadora, angustiante e sensível, tudo ao mesmo tempo e regida com primor. A direção de Melina Matsoukas parece se dedicar a fazer com que o espectador sinta tudo o que é possível sentir a partir da experiência dos dois personagens principais. Um exemplo é a primeira sequência do filme, frenética e rodeada de acontecimentos terrivelmente angustiantes e dolorosos, mas sempre intercalada com pequenos momentos de afeto, um olhar sincero e rápido, palavras de conforto, um toque suave na nuca ou simplesmente deitar-se ao lado de alguém; sopros de vida no meio de uma luta por sobrevivência.

Há de se destacar também as técnicas e construções dentro das imagens da diretora, em que todas as cenas do filme parecem fotografias potentes, até mesmo as dolorosas, como se pudéssemos dividir os acontecimentos em denúncias de um genocídio e o poder de afetos ou atos simples de coragem vindos de um preto para o outro. Destaco aqui a cena em que os dois personagens principais estão trocando olhares suaves ao mesmo tempo em que as imagens se dividem em inúmeros tons de marrom e verde. Pause o filme aqui e terá um quadro extraordinário.

O elenco é impecável por ser sensível ao transpassar o texto do roteiro para a cena. Daniel Kaluuya(Slim) entrega novamente um personagem capaz de expressar milhares de coisas sem dizer qualquer palavra, ao passo em que Jodie Turner-Smith(Queen) emprega sensibilidade e complexidade a uma personagem difícil. Os olhos dessa mulher estão sempre marejados, como se houvesse dor, mas não tivesse tempo ou liberdade para senti-la. É importante destacar que todos os personagens negros deste filme, mesmo os que aparecem em poucos minutos, tem tempo para serem desenvolvidos, sem cair em estereótipos simples, mostrando o quão complexo e plural é o povo negro.

Por fim, este é um dos melhores filmes de 2019/20 (não sei como está rotulado neste sentido de datas), harmônico e sensível quando tem que ser, sem esquecer da importância e da dolorosa história que tem para ser contada. Espero que o futuro nos reserve algumas outras produções de Milan Matsoukas.

Na segunda parte deste texto, sinto dizer que não tenho em mim a intenção de ser dócil ou gentil, me perdoem também se estiver falando coisas óbvias, mas mesmo as coisas óbvias ainda precisam ser ditas.

Não é segredo para ninguém o quão racista e identitário pode ser o cinema e aqueles que o fazem e falo aqui de deslealdade, epistemicídio, genocídio intelectual e exclusão. Afirmo isto, pois nada mais explica a ausência de um filme potente como este em premiações e rodas de cinema se não a dedicação que o identitarismo branco tem em fazer com que narrativas negras sumam enquanto são esquecidas.

O que explicaria, por exemplo, a indicação de Ford vs Ferrari (2019) a melhor filme ao mesmo tempo em que de ‘US’(2019), de Jordan Peele, não figurou nem em menções honrosas? Ou o desprezo que tiveram por ‘Se a Rua Beale Falasse’ (2018), de Barry Jenkins, num ano em que pouquíssimos filmes conseguiram entregar, com maestria, a sensibilidade que Jenkins entregou?

Enquanto alguns concordam com este que vos escreve, outros, sempre agarrados aos olhares da crítica branca, afirmam que a razão para o sumiço destes diretores nos meios cinéfilos é a “inferioridade” de suas novas obras quando comparadas a obras passadas, como Peele com ‘Get Out’ (2017) e Jenkins com ‘Moonlight’ (2016). Contra esta afirmação, me vem um questionamento: Quem cobrou Scorcese por não repetir ‘Taxi Drive’ (1976) ? Ou Meireles por não repetir ‘Cidade de Deus’ (2002) ? Até mesmo Spielberg por não repetir ‘A Lista de Schindler’ (1993)?

Penso que, para além do apagamento e tentativa de exclusão, há também um medo branco de que estas outras narrativas sejam entendidas como complexas. Se entendermos que ‘Moonlight’ (2016) não precisa ser ‘Se a Rua Beale Falasse’ (2018) pelo simples fato de serem percursos e histórias distintas uma da outra, ou que ‘Get Out’ (2017) nunca será ‘US’ (2019) porque o primeiro é tão intimista, quanto o segundo é amplo e abrangente, entenderíamos, enquanto negros, que nossas narrativas são complexas e diferentes umas das outras. Então, não há uma “abertura” de premiações brancas para o diferente, há uma intenção de se apropriar de estéticas, escritas, tendências e conceitos ao mesmo tempo em que nos é posto a máscara da “representatividade”, para que fiquemos satisfeitos com este “reconhecimento bondoso” a cada 10 anos.

Enfim, esta segunda parte ficará incompleta por necessidade, ainda são mais questionamentos do que apontamentos certos, outros textos virão, mas termino com a minha proposta e pensamento: É bem possível que não estejamos entre os indicados a melhores do Oscar porque o identitarísmo artístico branco não está capacitado para entender qualquer complexidade que não seja a sua.

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