Reza pro chão — I

Marina Maia
Revista Negra Trama
2 min readJan 16, 2022

Obá sentia a fluidez descer pelo pescoço como um bom alívio. Era um refresco para a cabeça que recebia aos poucos a pequena queda d’água mediada pelos crespos cabelos luzidios. O homem de veste preta derramava sobre ela aquela dose de água, que era uma miniatura dos banhos de rio que a refrescavam, afinal fazia grande calor naquele dia.

O ensaio de banho, no entanto, veio acompanhado, dias depois, das ordens e impedimentos. Ela não entendia as palavras daquelas pessoas de pele pálida, mas olhar é linguagem universal; enquanto eles reproduziam em seus irmãos aqueles mesmos movimentos, entre molhar os orí e simular uma cruz em suas testas, a mulher observava aqueles olhos estranhos cor-de-nuvem. Não como as que recebiam as manhãs nos montes altos de outros tempos e espaços, mas do tipo fumaça, como as que queimavam as casas de sua família antes da infeliz travessia.

Aquela mesma água, por fim, regou o trabalho forçado nas terras alheias, que cresceu como hospedeiro em árvore frutífera. Todos estavam acostumados a cuidar da terra, mas foi a primeira vez que o sangue misturado ao processo não trazia vida. Era incompreensível ter um chão do qual não se sabe cuidar; sequer saber o que vinga ou não. Ela e os irmãos cuidavam de tudo, davam tudo para a terra prosperar e nada recebiam, além de castigos quando se recusaram a continuar o trabalho infundado.

Para Obá e os seus, tudo havia sido sagrado um dia; do chão que se pisava ao ar em tudo. Era doloroso ver a capacidade daqueles povos alheios, de tudo sucumbir. A terra, apesar de farta, aparava um ẹjẹ inconsequente. O que era gerado dela não alimentava seus genitores. Do contrário, a fome aumentava à medida que os brancos trocavam aqueles frutos por necessidades vis. O sol queimava mais aquelas peles, a ponto de nem aquela farta escuridão suportar tanto calor. Dormia-se pouco, e só podiam sonhar acordados; mesmo a doença não tinha direito a partir, o que tornava a morte cada vez mais precoce para aquele povo, sem direito a cura. Aqueles outros foram capazes de degradar a Omi, água que, antes alívio, levou consigo até seus nomes. Obá, cada vez mais distante de casa, via o tempo apartar-se da vida.

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Marina Maia
Revista Negra Trama

Negra-vida — Cearense, professora de muita coisa, em constante formação; amante das literaturas que me falam.